Autor Tópico: Liberalismo Social, conhece?  (Lida 20822 vezes)

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Rhyan

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Liberalismo Social, conhece?
« Online: 21 de Março de 2006, 04:54:17 »
Então conheça!

    O liberalismo social ou novo liberalismo, um desenvolvimento do liberalismo no início do século XX, tal como outras formas de liberalismo, vê a liberdade individual como um objectivo central. A diferença esta no que se define por liberdade, para o liberalismo clássico, liberdade é a inexistência de compulsão e coerção nas relações entre os individuos, já para o liberalismo social a falta de oportunidades de emprego, educação, saúde, etc., podem ser tão prejudiciais para a liberdade como a compulsão e coerção.

    Derivado disto, os liberais sociais estão entre os mais fortes defensores dos direitos humanos e das liberdades civis, embora combinando esta vertente com o apoio a uma economia em que o Estado desempenha essencialmente um papel de regulador e de garantidor que todos têm acesso, independentemente da sua capacidade económica, a serviços públicos que asseguram os direitos sociais considerados fundamentais.

    A palavra social é utilizada nesta versão do liberalismo com um duplo sentido. Um primeiro como forma de diferenciação dos grupos que defendem correntes do liberalismo como o liberalismo clássico, o neoliberalismo e o libertarianismo. Um segundo como forma de vincar os ideais progressistas ao nível da defesa das liberdades individuais e em oposição às ideias dos defendidas pelos partidos conservadores.

    O Liberalismo Social é uma filosofia política que enfatiza a colaboração mútua através de instituições liberais, em oposição à utilização da força para resolver as controvérsias políticas.

    Rejeitando quer a versão pura do capitalismo, quer os elementos revolucionários da escola socialista, o liberalismo social coloca a sua ênfase nas liberdades positivas, tendo como objectivo aumentar as liberdades dos mais pobres e desfavorecidos da sociedade.


    1 O Liberalismo Social no Mundo
    2 Diferenças Relativamente à Social Democracia
    3 Pensadores Liberais Sociais
    4 Ligações externas


    O Liberalismo Social no Mundo
    Angola: Partido Liberal Democratico
    Estados Unidos: Os liberais sociais podem pertencer ao Partido Libertário (à sua ala esquerda) ou ao Partido Democrata;
    Reino Unido: Os liberais sociais situam-se na ala direita do Partido Liberal Democrata;
    Canadá: Os liberais sociais estão na ala esquerda do Partido Liberal, na ala direita do NDP e no Partido Os Verdes;
    Alemanha: Ala esquerda do Partido Liberal Democrático (FDP);
    Finlândia: Associação Liberal Social Finlandesa;
    Bélgica (parte flamenga): Spirit;
    Holanda: D66;
    Dinamarca: Partido de Esquerda Radical;
    Suécia: Partido Popular do Povo;
    Eslovénia: Partido Liberal Democrata da Eslovénia;
    Noruega: Venstre
    Portugal: Movimento Liberal Social
    Brasil: Partido Social Liberal, Partido do Movimento Democrático Brasileiro;
    Croácia: Partido Liberal Social Croata
    Lituânia: Nova União dos Liberais Sociais
    Moldóvia: Partido Liberal Social
    Moçambique: Partido Social-Liberal e Democrático
    Tunísia: Partido Liberal Social

    Diferenças Relativamente à Social Democracia

    A diferença fundamental entre o liberalismo social e a social democracia está na visão que cada uma destas ideologias tem relativamente à natureza humana e aos valores morais. A social democracia tem uma visão da sociedade comunitária, os social democratas acreditam no direito moral da maioria para regular tudo e todos. Os liberais sociais vêm a democracia e o parlamentarismo apenas como um sistema político que merece a sua confiança. Para os socais liberais a democracia não é o valor mais elevado. Os liberais sociais vêm antes como prioriária a liberdade, o indivíduo e a propriedade privada. Os liberais sociais querem acreditar nos seres humanos: os indivíduos devem ser capazes de decidir sobre o rumo da sua própria vida e não necessitam de ser conduzidos em direcção à felicidade. Já os sociais democratas acreditam no controlo e muitas vezes desejam conduzir pessoas para o padrão médio da sociedade. A democracia representativa serve em grande parte para colocar em prática a visão social democrata da sociedade e do ser humano.
    Pensadores Liberais Sociais

    Alguns pensadores liberais sociais importantes são:
    Alexis de Tocqueville (1805–1859)
    John Stuart Mill (1806–1873)
    Thomas Hill Green (1836–1882)
    Lujo Brentano (1844–1931)
    John Atkinson Hobson (1858–1940)
    John Dewey (1859–1952)
    Friedrich Naumann (1860–1919)
    Leonard Trelawny Hobhouse (1864–1929)
    John Maynard Keynes (1883–1946)
    Bertil Ohlin (1899–1979)
    John Hicks (1904–1989)
    Norberto Bobbio (1909-2004)
    Miguel Reale (1910– )
    John Rawls (1921-2002)
    Karl-Hermann Flach (1929–1973)
    Richard Rorty (1931– )
    Ronald Dworkin (1931– )
    José G. Merquior (1941–1991)
    Dirk Verhofstadt (1955– )
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Ligações externas
Movimento Liberal Social - movimento político Português.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Liberalismo_Social
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Offline Sr. Alguém

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Re: Liberalismo Social, conhece?
« Resposta #1 Online: 21 de Março de 2006, 13:39:59 »
   Será que o PSL vai ter um candidato proprio para presidente?
    Se o Garotinho for candidato pelo PMDB não voto de jeito nenhum!
     :x
Se você acha que sua crença é baseada na razão, você a defenderá com argumentos e não pela força e renunciará a ela se seus argumentos se mostrarem inválidos. (Bertrand Russell)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Humanismo_secular
http://pt.wikipedia.org/wiki/Liberalismo_social

ukrainian

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Re: Liberalismo Social, conhece?
« Resposta #2 Online: 21 de Março de 2006, 22:02:21 »
Tarefas da crítica liberal

José Guilherme Merquior

As idéias e as formas
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981


 

I.                    Ideologia e Intolerância

 

Porque se encontram em risco dois valores fundamentais: a independência do espírito e a objetividade do conhecimento – necessitamos, com urgência, de uma crítica liberal. Liberal, por propugnar um tipo de sociedade. No reino da censura e no império ideocrático, não pode haver independência intelectual; só na república das liberdades floresce a autonomia do espírito, a altivez da palavra, a bravura da opinião. Porém na república das liberdades, a cidadania da crítica é incapaz de reverência a priori ante quaisquer poderes estabelecidos. Ela pode respeitar tradições, mas não saberia sacralizar a Ordem, como se a prezasse mais que a sua nativa audácia, o seu direito natural à insubmissão. Por isso é de fato liberal, jamais, substancialmente, conservadora.

Entretanto, há liberalismo e liberalismo. Entre suas versões contemporâneas, qual será a posição da consciência liberal num contexto social como o brasileiro? Aqui a primeira coisa a notar é a diversidade do tempo social. Qualquer que seja o sentido da voga neoliberal em outros quadrantes, entre nós não pode haver liberalismo autêntico que não seja, essencialmente, um social-liberalismo. E isso já impõe a serena ultrapassagem da antiga querela contra o Estado. Num país com as nossas carências de capitalização e de serviços sociais, o antiestatismo sistemático não tem como ser um combate liberal, pelo simples motivo de que sua aplicação atrofiaria ou imobilizaria no Estado um dos principais, senão o principal instrumento de criação efetiva de liberdades – de oportunidades concretas de vida e de avanço para a maioria esmagadora da população. A crítica “liberal” que não tem olhos de ver isso não é crítica – é preconceito; não visa a promover a liberdade – visa a preservar o privilégio. Somente um social-liberalismo racional impedirá nossos liberais de reviver caricaturalmente um sectarismo “patrício” objetivamente reacionário. Bertrand Russell, num passo de sua Autobiografia, satirizou seus ancestrais whigs por acreditarem que tudo que se fizesse contra os reis era bom, exceto se fosse feito por padres... De muitos neoliberais modernos se poderia dizer que julgam bom tudo que se faça contra o Estado – sem lembrar que precisamos do estado, inclusive para criar uma robusta sociedade civil. O bom combate liberal não é contra o Estado – é contra certas formas de apropriação do Estado.

            Todavia, a luta liberal é sobretudo contra o partido da intolerância. Velha habitante da mentalidade de direita, esta passou a prosperar, nas esferas intelectuais, no território do radicalismo de esquerda. Existem hoje, no Brasil, como em vários outros países, uma séria distorção na intelectualidade tida e havida por “progressista” – a ambição de se fazer passar por intelligentsia, isto é, por camadas intelectuais rejeitadas pela sociedade. O intelectual radical ou radicalizante brasileiro pertence, em regra, a círculos profissionais – o magistério superior e os media, por exemplo – que provêm quase totalmente da classe média. Dentro desta, esses círculos profissionais formaram entre aqueles que, em conjunto, mais se beneficiaram da considerável expansão de renda com que nossas camadas burguesas foram brindadas nas duas últimas décadas; e além disso, sempre que sua situação salarial se deteriorou, esses mesmos setores revelaram – como era de esperar, tratando-se de estratos bem articulados e bem representados – notável capacidade de reivindicação ou protesto, freqüentemente ouvidos e satisfatoriamente atendidos. Não esqueçamos que, na terra dos privilégios, o último deles está longe de ser o privilégio do protesto. Quanto ao status que lhes confere uma sociedade que multiplicou universidades e expandiu notavelmente sua rede de meios de comunicação de massa, até o mais bisonho dos sociólogos reconheceria que é bastante elevado. O professor e o jornalista possuem entre nós muito mais prestígio social que em vários países ocidentais, já mais plenamente industrializados e modernizados.

            Por que, então, tantos intelectuais se comportam como uma ressentida intelligentsia? Por que investem, não só contra o governo ou o regime, mas contra a própria ordem liberal-burguesa que coexiste, sem se confundir, com o autoritarismo político em recuo e a estrutura social oligárquica na defensiva? Por que – sobretudo – tantos desses radicais adotam posturas perfeitamente sectárias, chegadas ao ritual policialesco do “patrulhamento” ideológico?

            E não nos venham dizer que se trata de falar em proveito do povão. Em seu sofrido viver, o povão se cansa de dar sinais de ser um bravo reformista, e não um radical, certamente porque seu realismo visceral sabe que a solução está no progresso e não no Apocalipse; e em todo caso os intelectuais em estado (d’alma) de intelligentsia jamais se preocupam em consultar as massas quando enchem a boca com seu sagrado nome. Fora da solidariedade concreta de uns poucos, engajados em meritórias atividades humanitárias votadas ao alívio da penúria entre o lumpemproletariado urbano, é evidente que o socialismo da nossa para-intelligentsia é uma pura atividade mental, quase sempre virgem de todo cheiro de povo. Persiste, portanto, a pergunta: por quê?...

            A resposta a essa indagação constituiria um fascinante estudo de psicologia social, que não nos compete esboçar aqui. Mas de imediato, um grande efeito dessa radicalização intolerante se torna visível: a sonegação do debate ideológico. Ela ganha principalmente a forma de uma substituição da controvérsia objetiva, quero dizer, do exame dos argumentos contrários, por uma recusa tácita do debate por meio de acusações ou insinuações contra o adversário. Desse modo, se alguém critica o pensamento radical, esse alguém não verá seus argumentos enfrentados – mas se verá rapidamente desqualificado por alegações referentes à sua condição social ou até a sua conduta moral. Desqualificado o crítico, não vale a pena discutir o que ele diz – e os sectários podem continuar refestelados nas suas dogmáticas certezas de preguiçosos mentais e palmatórias do mundo. “Fulano disse x, beltrana escreveu y? Esqueça x e y: fulano não passa de um burguês conformista ou oportunista; não vê que ele trabalha para o governo? -  e fulana é condicionada, não é à toa que seu marido é empresário”, etc...

            Um ingênuo pensaria que quem assim procede é um pária do regime, um destituído total, um feroz e vingativo justiceiro. Vai-se ver e se trata da figura de proa de um departamento de ciências sociais na universidade, do artista de sucesso, do colunista regiamente pago do jornal da grande cidade – e assim por diante. O sectarismo raramente vem das vítimas; a intolerância persecutória não é obra de ex-perseguidos. Daí mal se poder fugir à suspeita de que o dedodurismo radical é, no fundo, um tremendo álibi – o álibi da má consciência de quem denuncia o Sistema como o Mal absoluto e no entanto, graças a ele, compra seu novo carro, sua residência secundária ou suas caríssimas sessões de análise. Houve tempo em que ser radical era entreter o desejo de tomar as coisas pela raiz. Hoje, porém, o radical intolerante não quer compreender – contenta-se, como o mais vulgar dos moralistas, com repreender. Talvez, acusando o mundo, ele consiga esquecer sua profunda inautenticidade objetiva.

            A primeira tarefa da crítica liberal – sua missão política – é, portanto, a resistência à intolerância. Mas há outra, mais sutil, mas não menos urgente: a sua missão epistemológica, que consiste na defesa de padrões objetivos de conhecimento. Para ela é que nos voltaremos a seguir.

 

 

II.                 O Delírio Irracionalista

 

            A missão “política” da crítica liberal é combater a intolerância ideológica. Sua tarefa epistemológica – sua missão no campo do conhecimento – é restaurar o sentido da objetividade. Um dos maiores vícios da frívola mentalidade “humanística” de nossos dias consiste na tendência a promover a permissividade epistemológica a pretexto de virtuosa tolerância ante a diversidade de opiniões. Mas a verdade é que, enquanto a tolerância frente à multiplicidade de posições e correntes ideológicas é um inestimável valor social, a indulgência indiscriminada face a teorias e interpretações é uma autêntica abdicação intelectual. Devemos, como Voltaire, defender até o fim o direito dos outros à discordância – mas isso absolutamente não implica que se renuncie ao direito de julgar as idéias conforme critérios rigorosos de observância lógica e veracidade empírica.

            Tal direito, nas mãos de quem quer que professe a pesquisa da realidade, natural ou social, se converte num dever da inteligência. O humanistazinho que vem nos dizer que a obra de Kafka é “polissêmica” e que, “portanto”, cada uma de suas contraditórias interpretações é “tão válida quanto a outra” não é um tolerante simpaticão – é um pobre de espírito ou um medroso mental, alguém incapaz de cumprir uma das mais nobres entre as aspirações humanas: a de procurar a verdade. Ninguém, é certo, pode ser legitimamente considerado “dono da verdade” – exceto a própria realidade, o princípio perfeitamente objetivo do conhecimento do real. Não levar isso em conta é confundir liberdade crítica com licença relativista. A obra de Kafka é sem dúvida polissêmica e até ambígua; mas seus níveis de sentido são suficientemente hierarquizados para que uns valham mais que os outros e algumas de suas “leituras” são, simplesmente, falsas – desmentidas pela verdade do texto e do seu contexto cultural. Portanto, todas as interpretações não se equivalem.

            Um dos cavalos de batalha do relativismo humanista é a denúncia do “dogmatismo” da certeza científica. Como se, depois de Popper, ainda coubesse identificar conhecimento objetivo e certeza inconcussa – exatamente o que nega a teoria popperiana da falsificabilidade das hipóteses científicas, de resto aprimorada pelas análises de outro epistemólogo da London School of Economics, Imre Lakatos.

            Outro cavalo de batalha humanista é uma refutação irrefletida da tese da unidade da ciência, também xingada de preconceito “positivista”. Os humanistas contemporâneos são quase todos adeptos de uma concepção culturalista, antinaturalista, do saber – devotos de Dilthey na filosofia de ontem, ou de Habermas, na de hoje. No entanto, quando examinamos os argumentos correntes contra a aplicabilidade de critérios científicos às humanidades, deparamos é com uma vasta coleção de equívocos. Mencionemos apenas três. Não é possível – alega-se – analisar de modo científico uma obra de arte, ou um acontecimento histórico, porque a sua característica número um é a unicidade; ora, a ciência busca leis, e diante dela é preciso repetir o sábio dito de Goethe: “individuum est ineffabile”. Infelizmente para os humanistas, se a ciência recuasse tanto diante do único e do irrepetível, a geologia não seria uma ciência natural... Bom, replica o humanismo epistemológico – mas e a experimentação? não podemos experimentar com os fatos sociais, logo não podemos verificá-los cientificamente. Decerto – só que tampouco se experimenta em astronomia, a própria disciplina que hospedou a formação galileana da ciência moderna... Último argumento: a complexidade das variáveis que entram em jogo nos fenômenos sociais. E todavia, elas não são menos numerosas, nem menos complexas, no terreno da meteorologia. Moral: a menos que esteja disposto a acolher geologia, astronomia e meteorologia entre as humanidades, o humanista se acha obrigado a renunciar aos tabus da unicidade, do experimento e da complexidade como álibi para eximir o humano dos critérios de análise científica.

            Notem que não estou propondo desvalorizar nada em favor do científico. Não me passa pela cabeça, por exemplo, requerer a cientificização da moral ou reger a arte, como outrora quis a utopia dos naturalistas à Zola, pelos ditames da ciência. É preciso deixar bem claro que o cientificismo, o imperialismo ideológico da ciência, não é científico. De resto, historicamente, o cientificismo é uma perversão da metafísica, não o produto bastardo de nenhuma ciência.

            Como prova de que nossa defesa da ciência não é imperialista, direi uma palavra acerca de um fenômeno curiosamente ligado a pressupostos cientificistas, e não obstante negligenciado pelo humanismo reinante. Trata-se do modo de educação estética que tende a prevalecer em nossa sociedade. Na sociedade burguesa tradicional, a familiarização do indivíduo com a chamada alta cultura – a alta literatura, a música erudita, as belas-artes – se processava primordialmente, senão exclusivamente, fora da universidade. Ninguém ia “aprender” literatura na faculdade de letras; lá no máximo – e graças à erudição filológica vigorosamente acumulada desde a era romântica – se podia aprender muito sobre literatura. Hoje, em contraste, tudo se passa como se o aluno chegasse literariamente virgem ao primeiro ano dos cursos de letras. Em outros termos, o futuro especialista é geralmente um inculto, cuja instrução não mais se nutre de uma prévia educação. Pode alguém se admirar de que semelhante “idiot savant”, surdo à música de um bom verso, insensível a um só tempo à ars e à sofisticação humana dos grandes textos literários, presa da insegurança da sua inciência, mergulhe no fetichismo dos modelinhos pseudo-rigorosos de “análise” do que ele jamais assimilou? Ouçamos o protesto de Roger Shattuck, corajoso desmistificador do ensino das letras nos Estados Unidos: “hoje em dia espera-se dos estudantes uma leitura mais extensa e mais cuidadosa da teoria literária e metodologia do que de obras literárias”.

            Imaginem que Shattuck chega a recomendar, como remédio para a institucionalização da barbárie no ensino de letras, que se reviva o incrível hábito de ler, e ler em voz alta, os clássicos antigos e modernos!... Onde iríamos parar se o senso de literatura partir da leitura, da vivência do poema ou do livro?... Como sabemos, em nossa gloriosa civilização universitária, a ingênua palavra “leitura” virou um pedante sinônimo de exegese. Críticos que não sabem ler (e muito menos escrever, o que não os impede de galgar até mesmo a direção de alguns departamentos de letras) perpetram “leituras” e mais “leituras” sobre o que tresleram, para os que não leram... Vivemos sob o império da estranha raça dos hermeneutas apedeutas.

            Max Weber, que ninguém jamais ousou considerar um simplório na matéria, aconselhava a preocupação com o método, em ciências humanas, a fugir da “pestilência metodológica”. O problema é que, na atual situação das humanidades, seu conselho é dificílimo de aplicar. O reino do “publish or perish” – da publicação competitiva, da tese pela tese, antítese do verdadeiro estudo, da corrida ao grau e do psitacismo doutoral – encoraja e estimula o pseudo-especialismo, e não há pseudo-especialismo sem idolatria do método e fanatismo do modelo.

            Gerald Graff, um professor da Northwestern University que tem assombrado Berkeley com sua audaciosa repulsa aos credos críticos em voga, julga que o “boom” da “desconstrução” dos Derrida e Paul de Man está em conexão estreita com o “furor publicandi” acadêmico. De fato, o sistema do “publish or perish” acarreta fatalmente o colapso de padrões rigorosos de avaliação da produção crítica universitária, já que a quantidade de publicações é por si só incompatível com uma qualidade intelectual superior. Nessas condições, porém, uma escola de crítica que ataca como repressiva (e “logocêntrica”) a própria idéia de interpretação correta parece condenada ao triunfo. A anarquia da exegese, o obscuro e monótono ritual da “desconstrução”, confere status filósofico ao triste resultado da inchação universitária.

            Os pseudo-especialismos não são bobos: na maioria dos casos, se apresentam como exemplos de fecundidade “interdisciplinar”. Mas só um inocente não veria que sua verdadeira relação com outras disciplinas – com a filosofia, a lingüística ou as ciências sociais, ou com outras disciplinas, como a psicanálise – é uma relação de pilhagem e não de intercâmbio ou assimilação. Desde a maré estruturalóide, a crítica saqueia teorias alheias com muito mais arbitrariedade que discernimento. A conseqüência não é nenhum cruzamento cognitivo digno desse nome e sim um contágio esclerosante de elucubrações mistificatórias – a farra da teorização irresponsável.

            Todo esse manso delírio irracionalista se vê reforçado pelas premissas irracionais da mentalidade literária identificada, epigonicamente, com o alto modernismo europeu. Graff tem sido um dos críticos da principal dessas premissas: a confusa noção de que a realidade não tem sentido, mas a literatura encarna um conjunto de vagos “valores” de suprema importância na luta contra o curso alienante da história... Em suma: o que venho chamando, desde O Fantasma Romântico, de guerra do modernismo contra a modernidade. Poderíamos considerar a apologia do “método mítico” da literatura moderna, feita por T. S. Eliot em seu célebre artigo de louvor ao Ulisses de Joyce (1923), como o arquétipo desse posicionamento. Segundo Eliot, a vantagem do método mítico (minimizado por Pound em sua apreciação, também positiva, de Joyce) estava em seu poder de negação “da anarquia e da futilidade de nossa época”. Falando claro: o mundo moderno não passa de um lixo...

            À saída do trauma da Grande Guerra, esse tipo de visão niilista da história moderna era pelo menos compreensível. Mas o anátema contra a civilização brandido hoje pelos neomodernistas de plantão, os modernosos arautos da contracultura e de suas rebeliões prêt-à-porter, não tem sequer essa desculpa: já não é mais possível convencer ninguém de que a maneira mais inteligente de reagir ao processo histórico é o acesso histérico de intelectuais preconceituosamente sublevados contra a sociedade de massas.

            O que a ideologia humanista mobiliza contra os valores da civilização ocidental é que é, isso sim, um efeito mórbido da sociedade de massas – o despreparo e a incultura das submassas intelectuais no supermercado universitário. Nele, o ensino das letras e o aprendizado das ciências humanas ao mesmo tempo se imuniza contra a crítica racional e se compraz em agredir irracionalmente a sociedade, a começar pelos seus aspectos historicamente mais progressistas: a ciência e as instituições liberais. A contra-elite “humanista”, cujo amor pelo povo pode ser medido pelo desdém com que ela julga as massas inteiramente “alienadas”, abandona alegremente o cuidado racional com a objetividade do conhecimento em troca de um profetismo apocalítico, tão leviano quanto imaturo.

            Marginais burocráticos, rebeldes estatutários, mandarins “heréticos” (mas espantosamente conformistas), esses intelectuais aspirantes a intelligentsia constituem um crescente “clero” leigo, que atraiçoa o pensamento crítico em nome de um radicalismo ritualista. Na aurora da escolástica, a teologia buscou uma aliança com a razão: fides quaerens intellectus. No crepúsculo da consciência “vanguardista”, das seitas radicais em arte e política, é o oposto que se verifica – o intelecto se despede da razão, e lhe prefere as crendices de uma mentalidade apocalítica transformada em jargão do espírito desempregado: intellectus quaerens fidem. É tempo de lembrar aos funcionários do humanismo de apostila que o único compromisso da inteligência é com a razão, e que o humanismo é algo demasiado valioso para ser confiado ao desvario dos humanistas.

 

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