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O mais frio dos monstros
« Online: 21 de Março de 2006, 21:56:45 »
O mais frio dos monstros

José Guilherme Merquior

O argumento liberal
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1985


            O estado – escreveu Nietzsche – é o mais frio de todos os “monstros”, de todos os vastos aparelhos sociais montados pela civilização contra os impulsos vitais do homem. Em Basiléia, o jovem helenista Nietzsche fora aluno do grande historiador Jakob Burckhardt, um dos criadores do conceito de Renascimento. No seu livro pioneiro sobre a Renascença italiana, berço do estado moderno, Burckhardt descrevera o estado como “obra de arte”, plasmada pela política desenvolta dos primeiros príncipes maquiavélicos. Mais tarde, porém, ao esboçar sua filosofia da história, o velho Burckhardt generalizou seu desencanto com a Realpolitik de Bismarck, contemplando no estado um constante inimigo da cultura. De “obra de arte”, o estado teria passado a atuar contra o espírito. Contra a Vida, emendaria Nietzsche.

            O século XIX nos legou pelo menos dois tipos de estadofobia: essa linha estético-vitalista e a tradição anarcoliberal. No primeiro caso, acusa-se o estado de reprimir os instintos; no segundo, de oprimir os indivíduos e as massas. O liberalismo burguês condenava o estado forte por motivos libertários. O anarquismo, nesse ponto endossado por Marx, insistia em fundir o ideal libertário com princípios igualitários: sem igualdade social, toda liberdade individual lhe parecia ou falsa ou opressiva.

            Hoje, o pensamento radical de maior prestígio casa duas espécies de estadofobia. Nos teóricos da escola de Frankfurt, Adorno ou Marcuse, o elemento anárquico da utopia marxista se conjuga com uma crítica freudo-nietzschiana da repressão instintual. Ironicamente, a mesma reprise do tema do “monstro frio” veio a ser entronizada pelas baboseiras da nouvelle philosophie – o apogeu da forma pateta de ser antimarxista. Na filosofia peso-mosca de André Glucksmann, abençoada pela irresponsabilidade de Foucault, nos sofismas pirotécnicos de Bernard-Henri Lévy, o estado faz figura de vampiro e bicho-papão. O estado – e o estado revolucionário em particular – encarna a razão repressiva, o “terrorismo da ciência”, na ridícula frase do nouveau philosophe lacaniano Jean-Paul Dollé. Assim como, para Heidegger, a salvação do homem passava pela ruptura com a expansão planetária da técnica, indiretamente legitimada por toda a metafísica ocidental, para Glucksmann e Lévy, só nos salvaremos quando rompermos com a dominação do estado, preparada pela filosofia autoritária dos Hegel, Marx e Nietzsche. De conseqüências autoritárias no caso de Hegel e Marx; de aspirações autoritárias no de Nietzsche, profeta da vontade de poder.

            É perfeitamente lícito sustentar que a aplicação das idéias de Marx conduz necessariamente ao autoritarismo; é até possível argumentar que algumas de suas idéias (por exemplo, sobre igualdade, divisão do trabalho, dinheiro) brigam, em última análise, com os seus propósitos emancipatórios. Mas jogar no mesmo saco o estadólatra Hegel e o democrata ingênuo que há em Marx, juntamente com o autoritário, mas antiestatista e anti-racionalista Nietzsche, não é análise filosófica, e sim puro confusionismo ideológico. No frívolo filó da nouvelle philo, libertarismo de soçaite, tudo que cai é peixe.

            De outro lado da Mancha, o frenesi antiestatista é infinitamente mais terra a terra: nada de injuriar a Razão ocidental, como em Frankfurt ou Saint-Germain-des-Prés. Afinal, o elder statesman da nova estadofobia britânica é F. A. Hayek, pai do neoliberalismo econômico, muito austríaco e demasiado economista para se permitir posar de irracionalista profissional. Na geração moça, o paladino do antiestatismo é o inquieto Paul Johnson, o ex-trabalhista convertido à ortodoxia neoliberal. Johnson era conhecido como diretor do New Statesman e historiador diletante do cristianismo. É sua, por exemplo, a tese de que os ingleses sempre foram criptopelagianos, isto é, seguidores secretos de Pelágio, que negou o pecado original e a corrupção das criaturas. Pessoalmente, tendo a concordar, sobretudo por causa daquela perspicaz definição do inglês: “o inglês é um self-made man que venera o seu criador...” Há quatro anos, Johnson misturou alhos e bugalhos num livro polêmico – Enemies of Society – em que, não obstante, desfechou pancadas certeiras em teóricos delirantes do tipo Marcuse, Laing ou Fanon. Mas seu ataque em regra contra o estado só saiu em 1980, sob o título de The Recovery of Freedom.

            Johnson apresenta várias acusações contra o estado moderno. Primeiro, a idéia de que o governo deve ser o principal ou o único promotor do bem-estar coletivo se baseia na premissa, inaceitável, de que os problemas humanos possam ter soluções únicas. Segundo, a expansão do estado significa, necessariamente, o aumento da taxa de compulsão na vida social. Terceiro, o estado é – ao contrário do mercado – um instrumento econômico ineficiente. Daí o quarto inconveniente: como bem viu Adam Smith, o estado, em vez de produzir, só sabe é consumir a riqueza. Smith pensava em Versalhes e na sua prodigalidade parasitária; mas Johnson acha que o mesmo vale para as burocracias previdenciárias do nosso tempo. Quinto, o burocrata estatal contemporâneo é por definição um ideólogo igualitarista que, até mesmo para desviar a atenção de seu próprio poder e desperdício, promove ideais de igualdade compulsória que acarretam uma verdadeira “legitimação da inveja” como paixão coletiva. Esses venenos psicológicos liberados pelo gigantismo estatal seriam altamente propícios ao crescimento da violência e da agressividade entre os diversos grupos sociais contemporâneos.

            Examinemos rapidamente o requisitório de Johnson. A idéia tecnocrática do governo como única agência do bem-estar coletivo não põe em causa o estado, mas apenas o estatismo, o que é muito diferente. Evidentemente, é possível defender o estado sem querer fazer dele uma solução infalível, e menos ainda uma panacéia, a Solução universal. Vejamos o segundo argumento. Longe de significar um aumento automático da compulsão, o desenvolvimento progressivo do estado, nos regimes liberais democratizados, foi o grande veículo histórico de uma palpável ampliação e diversificação das liberdades e dos direitos, notadamente no terreno das oportunidades educacionais, da proteção da saúde e da velhice, e do direito de cada um (e de cada família) à subsistência. O estado não só compeliu (quando o fez) – ao contrário, removeu obstáculos e reduziu impedimentos ao exercício concreto de várias dimensões da liberdade; sua obra integradora e emancipadora compensou de sobra e ultrapassou bastante os aspectos compulsórios envolvidos na sua expansão “tentacular”.

            Mas será que tudo isso foi mesmo conseguido ao preço da ineficiência econômica? Onde o estado tentou se substituir globalmente ao mercado, não há dúvida. Não foi bem isso que ocorreu, porém, onde ele se limitou a prover aquilo que o mercado, por si só, nunca esteve em condições de realizar. Não consta, por exemplo, que a esplêndida dinâmica industrial do Japão tenha sido prejudicada pelo amplo controle estatal da economia; nem que o nosso BNDES – o maior banco de investimentos governamental do mundo – tenha sido estranho ou infenso à industrialização brasileira. Da infra-estrutura do transporte e da pesquisa aos desafios da educação básica, muitos são os domínios em que as carências da sociedade e os problemas de formação do capital simplesmente reclamam a ação do estado, inclusive para que o mercado possa crescer e funcionar. E a verdade é que as alternativas maniqueístas, apontando no estado o bem ou o mal absoluto na economia, são excessivamente simplistas. O aparelho industrial de direção bem estatizada da França é, em conjunto, bastante ágil e produtivo; mas o da Índia não é. Quer dizer, o decisivo são as modalidades do fenômeno (além do seu contexto sociopolítico e institucional), não sendo possível partir a priori para juízos positivos ou negativos, na base de uma variável única e genérica. Se é certo que uma economia que se deseje totalmente estatizada  é uma receita segura de emperramento e ineficiência, a desestatização completa é, no mundo moderno, uma completa miragem – e nos países em desenvolvimento, o caminho da injustiça e da estagnação. O antiestatismo de Smith se justificava, porque seus alvos eram os Versalhes pré-desenvolvimentistas. Mas quem se atreveria a dizer que o estado econômico moderno é, na média do seu desempenho histórico, um ente versalhesco? De resto, quando se tratava de necessidades básicas de subsistência, o próprio Smith preconizava a intervenção previdenciária do estado. É uma pena que os nossos neoliberais fiquem, em matéria de perspicácia econômica e sentido humanitário, tão atrás de Adam Smith!

            Quanto à “legitimação da inveja”, é preciso aprender a viver com ela. Conforme reparou Tocqueville, a emulação dos indivíduos em torno de status é, na sociedade democrática, algo inerente ao demônio do progresso. Mas é também  um mal suportável, bem compensado pelas múltiplas e valiosas vantagens do progresso, especialmente no tocante ao incremento dos direitos e liberdades e à ampla extensão do número de seus beneficiários. A sociedade liberal democrática não é, nem se propõe ser, moralmente perfeita – ela é apenas institucionalmente mais humana. E a violência? Será que ela de fato é, no nosso mundo, função da presença do estado, como pretendem romanticamente Paul Johnson e os nouveux philosophes? Não estaria ligada, isso sim, à falta, ou insuficiência da legitimidade do estado? Não é este o problema crônico do antigo estado espanhol em certas regiões, ou do estado italiano perante certos grupos sociais; problema esse muitíssimo agravado pela influência – precisamente – de ideologias antiestado?


            Pois o estado moderno – convém não esquecer – não é só uma superempresa, nem mesmo uma superclínica: é também, e antes de tudo, a lei do homem livre, uma instituição jurídica alicerçada num sentido coletivo de justiça e validade. Por isso é que o fundador do pensamento democrático, Rousseau, apesar de tremendamente individualista, exaltou o estado, incorrendo na abominação de anarquistas como Proudhon. O estado como ideal de justo convívio que Rousseau buscou na sua reinterpretação democrática da idéia de contrato social pode ser considerado um eco moderno da velha distinção platônica entre o poder tirânico, que é pura coerção, e o poder político, que é autoridade livremente consentida (Platão, Político, 276). O funcionamento político do estado de direito é poder político nesse nobre sentido platônico; sentido que se encontra em profunda harmonia com outra noção clássica: a de que há uma objetividade essencial na equação lei=justiça, na lei enquanto reflexo de uma ordem justa inscrita na própria natureza das coisas (Platão, Leis, 1.X, 890).

            Nem se diga que esse valor ético só existe no plano do ideal. Em boa medida, ele habita a realidade das instituições. Por maior que ainda seja a distância entre seus princípios universalistas e as diferenças sociais de acesso à tripulação da máquina estatal e ao consumo de seus produtos materiais e psicológicos, somente o estado, em nossa época, parece manter o espaço normativo dentro do qual a liberdade vive da lei, e fora do qual todo arroubo libertário termina em licença predatória, pronta para o recurso à violência. Há suficiente terror nesse nosso fim de século para que se possa deixar sem resposta a leviandade dos que caluniam aquela parte do corpo social em que melhor se conseguiu subordinar a força ao direito e dar, ao direito, força. Poucos “monstros” sociais saberiam ser tão úteis ou tão virtuosos.





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Re: O mais frio dos monstros
« Resposta #1 Online: 21 de Março de 2006, 21:57:39 »
Enfim um liberal. :)

 

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