Atoleiro iraquianoHélio Schwartsman, 40, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
Há três anos, George W. Bush, contrariando o Conselho de Segurança da ONU, o parecer de alguns de seus mais tradicionais aliados como a França e a Alemanha e a opinião de algo em torno de 85% da opinião pública planetária, lançava uma operação bélica para destronar Saddam Hussein. A resistência esboçada pelo ditador durou menos de três semanas, mas tudo o que o presidente dos EUA tem a exibir hoje, um triênio e centenas de bilhões de dólares depois, é uma tão monumental quanto vexatória coleção de fracassos.
Poucas vezes se viu um conflito tão mal planejado e executado. Para começar, todas as razões que Bush alegou para fazer a guerra se revelaram equívocos, quando não mentiras deliberadamente disseminadas para atrair o apoio de algumas nações.
O principal "casus belli" dos EUA eram as armas de destruição em massa que Saddam possuiria. Analisando retrospectivamente, vemos que elas não passavam de uma fraude criada pelos serviços secretos dos EUA e do Reino Unido para agradar seus superiores, dando-lhes um pretexto para o conflito. Surpreendentemente, foi o próprio Saddam quem ajudou a tornar a farsa verossímil. Aparentemente, ele acreditou até o último minuto que os EUA não o atacariam. Assim, evitou deixar claro que não possuía mais o gases químicos de que já se havia utilizado no passado. Temia informar seus inimigos regionais (Irã, Turquia, Arábia Saudita) do enfraquecimento de seu poderio militar.
Tampouco era verdade que o ditador iraquiano mantinha vínculos com a rede terrorista Al Qaeda, como os EUA acusaram em 2003. Pelo contrário, foi justamente a intervenção norte-americana que transformou o Iraque num pólo de atração de terroristas internacionais dispostos a travar um "jihad" contra os EUA.
Ainda há quem afirme entre os falcões de Bush que a intervenção foi um sucesso porque não se registraram novos ataques terroristas em solo americano. Não descarto que possa haver uma correlação entre os dois fatos. Com o Iraque convertido na Meca do terrorismo, talvez faltem agentes e logística aos grupos extremistas para lançar um atentado de grande porte nos EUA. Se for esse o caso, trata-se de uma "vitória" para lá de ilusória. A um alto custo financeiro e humano, incluindo as vidas de mais de 2.000 soldados, o que Washington está proporcionando ao inimigo é um excelente campo de treinamento. Ao fim e ao cabo do conflito iraquiano, seja ele qual for, as organizações criminosas reunirão mais expertise para perpetrar seus ataques criminosos. Isso sem mencionar que a intervenção militar ampliou notavelmente o ódio que grande parte do mundo islâmico nutre pelos EUA. Não parece exagero afirmar que a guerra tornou mais fácil para facínoras como Osama bin Laden recrutar jovens para missões suicidas.
Reconheça-se que a invasão livrou o Iraque e o mundo de Saddam Hussein, um ditador especialmente perverso numa terra fecunda em tiranos. Mas o fez de modo tão atabalhoado e eticamente discutível que mesmo essa boa nova fica parcialmente comprometida. Com efeito, a queda de Saddam deveria inaugurar para os iraquianos uma era de paz, prosperidade, democracia e respeito aos direitos humanos. O que vemos, entretanto, é um cenário muito diverso. Especialistas travam acres polêmicas para estabelecer se o Iraque está ou não em guerra civil. O debate é bizantino. A discussão se dá entre definir se o país já se encontra num processo de conflito generalizado entre os diferentes grupos étnicos ou se apenas se encaminha para tal situação. Não é preciso mais para provar o fracasso da intervenção que tinha entre seus objetivos promover a pacificação. De mais a mais, contam-se às dezenas os que morrem diariamente por força da violência inter-religiosa. Qual é a fração populacional de mortos necessária para configurar uma indiscutível guerra civil?
Também a prosperidade se revelou menos do que uma miragem. Embora o Iraque abrigue formidáveis reservas de óleo, a violência é tamanha e os atos de sabotagem tantos que o país não consegue retomar sua produção. Na verdade, não se conseguiu ainda nem reconstruir a infra-estrutura destruída na invasão de 2003.
Quanto à democracia, também aqui os resultados são mistos, tendendo a negativos. É ótimo que os iraquianos tenham ido às urnas e escolhido livremente seus representantes. Ocorre que eles votaram segundo as divisões étnicas e em meio a uma acentuada disputa federativa entre árabes xiitas e sunitas e curdos. Passados pouco mais de três meses do pleito legislativo, os iraquianos ainda não conseguiram formar um governo, num processo que está contribuindo para a escalada da violência.
Nesse contexto, o plano original dos EUA de transformar o Iraque num centro de irradiação da democracia para o Oriente Médio revelou-se um verdadeiro tiro pela culatra. Tudo o que o caso iraquiano pode ser considerado é um contra-exemplo, um caminho a evitar a todo custo. Há mesmo analistas que tributam à intervenção no Iraque o recrudescimento da violência no Afeganistão e a vitória do grupo extremista Hamas nas legislativas palestinas. De minha parte, prefiro considerar que foram principalmente razões domésticas que definiram o voto palestino.
Para agravar um pouco mais o quadro, os próprios soldados norte-americanos --as tropas que libertariam o país-- estão envolvidas em casos documentados de maus-tratos e tortura a prisioneiros iraquianos. As cenas de Abu Ghraib, somadas às excrescências jurídicas colocadas em prática em Guantánamo, acabaram por macular a posição dos próprios EUA como um Estado comprometido com os direitos humanos.
Essas e outras contradições não passaram despercebidas nem aos norte-americanos. Pesquisa feita pelo instituto Gallup por encomenda do jornal "USA Today" e da CNN em 2003 mostrava que apenas 4% dos entrevistados acreditavam que uma vitória dos EUA no Iraque era improvável ou impossível. Hoje, esse montante chega 41%.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u238.shtml