Recentemente Rafael Galvão publicou em seu blog um texto, daqueles de prender a atenção: "
o sumiço das bichas"
Ele sustenta que a representação dos gays nos filmes atuais oscila entre dois opostos: a bicha louca e o bicha mui macho. A última parece à sociedade mais aceitável porque, apesar de ser sabido que mantém relações sexuais com gente do mesmo sexo, não rompe com os papéis tradicionais do gênero. Assim, a construção de uma representação menos "pesada" dos gays, aproximando-os dos heteros normais formadores de opinião, continua sendo uma forma de discriminação.
Grosso modo, preconceito, da maneira como o entendemos, não é a mera constatação da diferença, mas a sensação, que ela gera, de superioridade do grupo a que pertencemos. O preconceito contra homossexuais é, evidentemente, filho do preconceito contra mulheres. O homem gay é um ser tão passivo, tão submisso, tão penetrável quanto a mulher; ele estraga a reputação do gênero masculino, sempre transcendente e ativo e desbravador; ele é inclusive pior que a mulher, que não recebeu da natureza um corpo de homem, com todos aqueles seus predicados: ela está determinada pela natureza a ser passiva, a ser inferior, mas o gay escolhe um caminho desviante, ele é anormal, uma aberração.
O "fenômeno Brokeback Mountain" não é novidade. Pelo menos não no caso do homossexualismo feminino. Nas representações pornográficas do sexo lésbico, tradicionalmente figuram mulheres super-femininas. A penetração, quando acontece, é executada por um acessório, por um brinquedo. Nem mesmo a Inquisição católica conseguiu determinar se o sexo lésbico constituía ou não pecado de sodomia (mesmo quando utilizados acessórios com fim de penetração); justo eles, que encanavam com qualquer coisa além do papai-e-mamãe. Isto deixa evidente que, nem mesmo naqueles tempos, o lesbianismo é considerado sexo. É visto, no máximo, como "bricadeira" (como diriam nossos inquisidores, "molície") por não conter a relação de dominação que existe no sexo hétero.
Quando Beauvoir sustenta que "não se nasce mulher: torna-se mulher", a idéia é justamente esta. Oras, não há nenhum conflito natural criado pelo gene Y. O conflito encontra-se no papel social atribuído aos indivíduos dos gêneros masculino e feminino. Certamente a natureza tem a sua parcela de participação na maneira como a sociedade se organiza, porém isso não significa em absoluto que esta influência deva ser tomada como correta eticamente - lembremo-nos de nosso velho conhecido, o estupro. São dois domínios diferentes, a natureza e a civilização.
Nascer macho ou fêmea - isto é um dado, em que não cabe juízo de valor. Ser educado como homem ou mulher, agora sim. Um XY que não aja como homem (inclusive, que não pratique o heterossexualismo) não é Homem. O mesmo vale para as XX.
Eu venho de uma escola de pensamento feminista que não encara o ato sexual como relação de dominação, ao contrário do que sustentam as feministas velha-guarda. O fazer sexo é a procura por prazer sensual e/ou filhotinhos, nada mais e nada menos. Ninguém tem direito de legislar sobre o que se faz da porta do quarto pra dentro (ou fora, quem sabe), nem mesmo o movimento feminista - muito menos ele. A dominação está fora da cama; está na exigência de que a mulher tem que ser dona de casa, obedecer ao pai e ao marido, ter filhos. Ou seja, na expectativa que a sociedade tem em relação à mulher, e nos mecanismos que usa para fazer a mulher cumprir com aquela expectativa, a fazê-la se enquadrar no "eterno feminino". Então parece que, hoje em dia, esta mentalidade é corrente entre as pessoas educadas:
o que você faz na cama não me interessa porque não interfere em nada na minha vida. De fato. Mas a dominação, onde se fala dela? Esta, sim, interfere muitíssimo na vida de todos.
Ser gay, assim como ser mulher, não é SOMENTE a maneira como se faz sexo. Aliás, este deve ser o aspecto mais banal da coisa - em português claro: dar o cu é o de menos e ser gay é um estilo de vida.
Podemos aceitar aqueles que se parecem conosco, que agem como nós, que cumprem com as expectativas que temos de que se comportem conforme a identidade de gênero que estabelecemos e mantemos. Mas que fazer com o hetero que se veste de mulher, com o transexual, com a bicha à barbie, com a sapatona que não se depila? O que fazer com estes que desafiam as nossas classificações, que tornam muito mais difícil o exercício de qualquer controle?
Criar e aceitar um estereótipo normalizado dos gays é uma pequena concessão que fazemos, nada mais, a este comportamento ainda desviante. Aprendemos apenas a diferenciar o que é público e privado, onde se pode meter o bedelho e onde não se pode. Isso não nos faz mais liberais, mais democráticos, menos preconceituosos.
Estamos tentando anular a particularidade dos homossexuais, achando que dar o cu é um detalhe. Não é.
1)Colegas, estou tentando voltar a escrever e temo que ainda não tenha me reacostumado. Talvez não esteja ainda com a fluência necessária, mas eu gostei.
2) da série "
as já clássicas considerações etimológicas rizkianas": o termo "viado" vem de "desviado". MEU TUDO A VER.