A ironia está no sobrenome

por Robert Locke em 15 de junho de 2005
Resumo: O libertarianismo tem muito a dizer a respeito da liberdade mas pouco a dizer a respeito de como lidar com ela.
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As pessoas de espírito livre, os ambiciosos, os ex-socialistas, os usuários de drogas e os sexualmente excêntricos frequentemente se atraem pela filosofia política do libertarianismo, idéia segundo à qual a liberdade individual deveria ser a regra básica da ética e do governo. O libertarianismo alivia a culpa de seus crentes naquilo que a sociedade atual condena, como ganhar mais dinheiro, fazer mais sexo ou tomar mais drogas. Ele provê uma fórmula eticamente consistente, um sistema politicamente rígido, um fundamento na história americana e aplicações das eficiências capitalistas por toda a sociedade. Embora contenha boas doses de verdade, o libertarianismo, como um todo, não passa de um erro sedutor.
Há vários tipos de libertarianismo: desde o libertarianismo da lei natural (o menos doido) até o anarco-capitalismo (o mais doido), sendo que alguns desses tipos evitam as críticas a seguir. Mas muitos ainda estão sujeitos a elas e alguns dos tipos mais bem sucedidos – recentemente ouvi falar que liberalismo clássico é libertarianismo – pertencem a uma certa região cinzenta onde não está muito claro se são libertários ou não. Mas, já que 95% do libertários que se vê em coquetéis, páginas editoriais e no Capitólio são libertários “de rua”, recuso-me a permitir que os libertários façam uso do truque sofístico de usar um versão refinada de sua doutrina para defender seu libertarianismo vulgar, quando são desafiados filosoficamente. Já vimos os marxistas fazerem isso.
Isso não é surpresa, uma vez que o libertarianismo é basicamente o Marxismo da Direita. Se o marxismo é a ilusão de que é possível governar uma sociedade puramente à base de altruismo e coletivismo, então o libertarianismo é a ilusão-espelho de que é possível governar uma sociedade puramente à base de egoísmo e individualismo. Na verdade, para funcionar, a sociedade precisa tanto de individualismo quanto de coletivismo, tanto de egoísmo quanto de altruísmo. À exemplo do marxismo, o libertarianismo provê a falsa segurança intelectual de uma explicação a priori completa do bem político, sem dedicar-se a investigações empíricas. Assim como o marxismo, o libertarianismo procura reduzir a vida social à economia. E, como o marxismo, o libertarianismo tem seus mitos históricos e um dom especial em fazer seus seguidores sentirem-se como almas eleitas, livres das regras morais da sociedade.
O problema fundamental do libertarianismo é bem simples: a liberdade, embora seja uma coisa boa, não é a única coisa boa na vida. A simples segurança física pessoal, que até um prisioneiro pode ter, não é liberdade e, no entanto, não conseguimos viver sem ela. A prosperidade está ligada à liberdade já que ela nos torna livres para consumir mas não é a mesma coisa; é possível ser rico e ao mesmo tempo oprimido como, por exemplo, a esposa de um magnata dos tempos vitorianos. A família é uma das coisas menos livres que podemos imaginar. As satisfações emocionais que extraímos da família derivam de relacionamentos dentro dos quais já nascemos, sem esolha, ou dos quais dificilmente conseguimos escapar com facilidade ou justiça. Mas segurança, prosperidade e família são justamente o grosso da felicidade da grande maioria das pessoas e as questões principais das quais se ocupam os governos.
Os libertários tentam contornar o fato de que a liberdade não é o único bem ao tentarem reduzir todos os outros bens por meio do conceito de escolha, afirmando que as coisas são boas porque as escolhemos. Logo, a liberdade supostamente abarca todos os outros bens. Mas isso viola o senso comum ao negar que as coisas possam ser boas por natureza, não importa se foram escolhidas ou não. Os alimentos nutritivos são bons para nós mas não porque escolhemos comê-los. Levada às últimas conseqüências lógicas, a redução do bem ao livremente escolhido significa dizer que não há escolhas inerentemente boas ou ruins, pois um sujeito que escolheu passar a vida jogando futebol de botão viveu tão dignamente quanto um Washington ou um Churchill.
Além disso, a redução de todos os bens às escolhas individuais pressupõe que todos os bens são individuais. Mas alguns bens, como segurança nacional, ar puro ou cultura saudável são inerentemente coletivos. É até possível privatizar alguns bens, mas somente alguns, e os resultados poderão ser comicamente ineficientes. Você realmente conseguiria volver todos os poluentes às suas respectivas fábricas e processar os donos das fábricas?
Os libertários estão certos quando dizem que nossa liberdade termina onde começa a liberdade do próximo mas eles subestimam a facilidade com que isso acontece. Mesmo que o princípio libertário “se você não agredir ninguém, faça do jeito que achar melhor” estiver correto, ele não autoriza o comportamento que os libertários reivindicam. Considere o caso da pornografia: os libertários dizem que ela deve ser liberada porque se alguém não gosta de pornografia, basta não escolher vê-la. Mas o que não é possível escolher é não viver numa cultura vulgarizada pela pornografia.
Na vida real, é raro os libertários viverem à altura de seus próprios princípios; eles tendem a se entregar às partes prazerosas e recusam-se a viver as partes mais difíceis. Eles zombam das leis anti-drogas mas continuam a receber os benefícios governamentais que consideram ilegítimos. Não se trata de uma falha acidental dos libertários mas algo intrínseco às doutrinas fadadas ao fracasso onde quer que sejam implementadas, exatamente como o marxismo.
Os libertários precisam enfrentar algumas questões difíceis. E se uma sociedade livre tivesse de implantar o alistamento militar obrigatório para permanecer livre? E se essa sociedade tivesse de barrar importações de petróleo de países inimigos para proteger a liberdade econômica de seus cidadãos? E se essa sociedade precisasse forçar seus cidadãos a se educarem para permanecer livre? E se essa sociedade precisasse forçar proprietários de terras a vender suas propriedades como precondição para permitir livre trânsito em rodovias? E se essa sociedade precisasse desprover seus cidadãos da liberdade de importar mão-de-obra barata a fim de evitar que estrangeiros pobres votem a favor de programas socialistas de redistribuição de renda?
Em todos esses casos, menos liberdade hoje é o preço a pagar por mais liberdade amanhã. A liberdade total hoje pode significar um esvaziamento do capital social acumulado e um acúmulo de problemas para o futuro. Portanto, mesmo que o libertarianismo seja verdadeiro em última instância, isso não prova que as políticas libertárias sejam recomendáveis para implantação hoje, em qualquer questão particular.
Além disso, se limitar a liberdade hoje pode significar um prolongamento dela amanhã, então limitar a liberdade amanhã pode significar um prolongamento dela depois de amanhã e assim por diante, de maneira que uma quantidade certa de liberdade pode, na verdade, ser perpetuamente uma liberdade limitada. Mas se liberdade limitada for a escolha certa, então o libertarianismo, que absolutiza a liberdade, está simplesmente errado. Se tudo o que precisamos é de liberdade limitada, então o mero liberalismo serve ou, melhor ainda, um conservadorismo burkeano que reverencie as liberdades tradicionais. Não é preciso abraçar o libertarianismo cabal só porque queremos uma porção saudável de liberdade, e a alternativa ao libertarianismo não é a URSS, mas as liberdades tradicionais da América.
A visão abstrata e absolutista que o libertarianismo tem da liberdade leva a conclusões bizarras. O libertarianismo degenera-se em idiotice total quando trata as crianças como adultos, apoiando a abolição da educação compulsória e de todas as leis direcionadas às crianças, como as leis contra o trabalho infantil e sexo infantil. O libertarianismo também é incapaz de lidar com os loucos e os senis.
Os libertários dizem que a tolerância radical, como a legalização das drogas, não ameaçaria uma sociedade libertária porque os usuários de drogas que causassem problemas seriam disciplinados pelo perigo de perderem seus empregos ou lares, caso as atuais leis não dificultassem as demissões e os despejos. Eles defendem que uma “ordem natural” surgiria a partir desses comportamentos sensatos. Mas não há provas empíricas de que isso realmente aconteça. Além disso, percebe-se que o libertarianismo é uma proposição do tipo tudo-ou-nada: se a sociedade continuar a proteger o povo das conseqüências de seus próprios atos, o libertarianismo aplicado a questões específicas não funcionaria. E, dado que a sociedade protege o povo de certa forma, o libertarianismo é considerado uma posição moral ilegítima até que a Grande Revolução Libertária estoure.
E será que a sociedade está realmente errada ao proteger o povo das conseqüências negativas de algumas de suas escolhas? Dado que é obviamente justo que as pessoas desfrutem dos benefícios de suas sábias decisões e sofram os fardos das decisões estúpidas, as sociedades decentes estabelecem limites a ambos os casos. Às pessoas é dado o direito de se tornarem milionárias, mas não são forçadas a morrer de fome. Elas são privadas dos benefícios extremos que a liberdade pode dar para que nos poupe dos fardos extremos. A alternativa libertópica pode até ser mais deslumbrante, mas é certamente mais cruel.
Empiricamente, a maior parte das pessoas não deseja a liberdade absoluta e é por isso que as democracias não elegem governos libertários. Ironia das ironias, o povo não escolhe a liberdade absoluta. Mas isso refuta o libertarianismo em suas próprias premissas, pois o libertarianismo define o bem como aquilo que é livremente escolhido e, mesmo assim, as pessoas não o escolhem. Paradoxalmente, as pessoas exercem sua liberdade de não serem libertárias.
O corolário político disso tudo é que nenhum eleitorado apoiaria o libertarianismo e, portanto, um governo libertário jamais seria implantado democraticamente mas teria de ser imposto por algum Estado autoritário, o que lança por terra a idéia libertária. O libertarianismo é baseado na convicção de que ele é a única filosofia política verdadeira e todas as outras são falsas. Ela impõe um certo tipo de sociedade, com todas as suas vantagens e desvantagens, na qual seus habitantes não estarão livres para alterá-la, exceto emigrando.
E se os libertários porventura conseguirem o poder, podemos esperar uma mistureba de políticas bizarras. Muitos apóiam a abolição da moeda emitida pelo governo em favor da moeda cunhada por bancos privados. Mas isso já foi tentado antes, em várias épocas, e não acarretou em nenhum paraíso de liberdade mas numa explosão de fraudes e desvalorizações, concentrando o poder financeiro naqueles poucos bancos que sobreviveram à inevitável agitação. Muitas outras políticas libertárias foram a pique no passado.
A razão pricipal para isso é a visão ingênua que o libertarianismo tem da economia, uma visão que parece ter parado de acompanhar o desenvolvimento do capitalismo desde aproximadamente 1880. Não é o caso aqui de refutarmos o laissez-faire simplista que eles defendem, mas é suficiente citarmos o caso do Japão, a segunda maior economia do mundo, que é uma das economias mais reguladas do mundo, enquanto nações cujas economias estão essencialmente desregulamentadas, como a Rússia, dificlmente poderíamos considerá-las paraísos. A crítica legítima à super-regulamentação não implica que o extremo oposto seja a solução.
A ingenuidade libertária se estende à política também. Os libertários frequentemente confundem ausência de intervenções governamentais com liberdade em si. Mas, sem um Estado suficientemente forte, a liberdade individual torna-se vítima dos indivíduos mais poderosos. Um Estado fraco e um Estado que respeite a liberdade não são a mesma coisa, conforme se vê em muitas tiranias caóticas do Terceiro Mundo.
Os libertários também são ingênuos no que se refere ao alcance e perversidade dos desejos humanos que eles propõem desatar. Eles não conseguem imaginar nada mais ameaçador do que um pouquinho de sado-masoquismo no domingo à tarde, seguido de uso recreativo de drogas e trabalho normal na segunda-feira. Eles acham que se as pessoas forem livres, então elas assumirão vidas que basicamente giram em torno de valores burguesas. Mas eles se esquecem que boa parte da população, se deixada completamente livre, se entregará à bebida, às drogas, não arranjará emprego e terão filhos fora do casamento. A sociedade depende de um certo auto-domínio inculcado se não quiser despencar para o barbarismo, e os libertários atacam justamente este auto-domínio. Ironicamente, essa atitude acarreta em substituir o auto-domínio interno pelo auto-domínio externo imposto pela polícia e pelas prisões, resultando em menos liberdade, não mais.
Esse desprezo pelo auto-domínio é símbolo de um problema mais profundo: o libertarianismo tem muito a dizer a respeito da liberdade mas pouco a dizer a respeito de como lidar com ela. Liberdade sem juízo é, na melhor das hipóteses, perigosa, e na pior das hipóteses, imprestável. O libertarianismo é filosoficamente incapaz de desenvolver uma teoria de como usar adequadamente a liberdade porque seu dogma principal é que todas as escolhas feitas livremente são iguais e ele é incapaz de abandoná-la, exceto à custa de admitir que há outros bens além da liberdade. Os conservadores que o digam.
Publicado por The American Conservative.
Tradução e adaptação: Edward Wolff.
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