ERRO DE PORTUGUÊS NÃO EXISTE, SÓ EXISTE PRECONCEITO LINGÜÍSTICOPublicado originalmente como Mitos e Preconceitos
no jornal O Estado de Minas em 18/03/2000
MARCOS BAGNO
Existe um tipo de preconceito extremamente forte e vigoroso na cultura brasileira: o preconceito lingüístico. O preconceito lingüístico é o lado visível e palpável da ideologia elitista, oligárquica e conservadora que impera na nossa sociedade, que está muito longe de ser uma sociedade plenamente democrática, bastando lembrar que o Brasil é o campeão mundial da desigualdade econômica, com a pior distribuição de renda do planeta. A gramática tradicional é um dos tesouros preciosamente guardados pelos defensores dessa ideologia. A língua apresentada ali é a suposta língua de uma elite dominante, que detém o poder político, a riqueza econômica e o prestígio social dentro da sociedade brasileira. Não é de admirar, portanto, que o Brasil tenha a 10a economia do mundo, mas que ocupe, ao mesmo tempo, o 7o lugar entre os países com maior número de analfabetos em todo o mundo. Afinal, não interessa à pequena elite que controla essa economia poderosa o acesso de uma multidão de pobres aos bens econômicos e culturais que ela defende com garras e dentes. Quem não pertence a essa elite, ou seja, quem não domina o código lingüístico dela, é imediatamente acusado de falar uma língua "feia", "corrompida", "pobre", "estropiada". Toda ideologia, para se manter no poder, gera e alimenta uma série de preconceitos. Todo preconceito se constitui de um conjunto de mitos, de fantasias, de idéias prontas que são absorvidas pelo senso comum da sociedade. Esses mitos se impregnam de tal maneira na cultura de um povo que derrubá-los se torna uma tarefa quase impossível.
No que diz respeito ao preconceito lingüístico que existe no Brasil, é possível detectar vários desses mitos. Aqui estão alguns deles:
- o português do Brasil apresenta uma unidade surpreendente;
- brasileiro não sabe português;
- só em Portugal se fala bem português;
- português é muito difícil;
- as pessoas sem instrução falam tudo errado;
- o lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão;
- é preciso falar assim porque se escreve assim;
- a língua da juventude de hoje é pobre e cheia de erros;
- os estrangeirismos vão acabar com a língua portuguesa;
- a televisão está arruinando a língua de Camões;
- é preciso saber gramática para falar e escrever bem;
- o domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social...Infelizmente, a nossa tradição de ensino da língua está impregnada dessa ideologia geradora de preconceito, que dificulta o acesso das classes desfavorecidas à norma lingüística padrão.
Quando um aluno falante de alguma variedade não-padrão chega na escola ? trazendo a sua fonética, sua sintaxe, seu vocabulário, sua lógica de uso bastante diferentes da língua ensinada pelos professores ?, esse aluno certamente sofre um choque cultural, pois é obrigado a assimilar conteúdos e a ler textos veiculados numa variedade de língua que não corresponde à sua realidade lingüística quotidiana, habitual, familiar. Alguns especialistas chegam mesmo a afirmar que a língua ensinada na escola é uma língua "estrangeira". A escola, porém, não se dá conta desse choque, e isso por uma simples e triste razão. Nossa educação, além de ideologicamente elitista, se baseia no mito mais pernicioso entre os que compõem o preconceito lingüístico: o mito da unidade lingüística do Brasil. Lendo as gramáticas e boa parte dos livros didáticos de português, a gente tem a impressão de que a língua portuguesa é a mesma desde o surgimento da humanidade há um milhão de anos, e que vai continuar a mesma daqui a outro milhão. A língua é apresentada como uma entidade monolítica, compacta, sólida, inabalável, atemporal, absoluta, eterna e imutável. Um exemplo muito recente do vigor desse mito se encontra no projeto de lei do deputado Aldo Rebelo, do PCdoB-SP, que quer aplicar multas a quem usar termos ou expressões de origem inglesa! No texto do projeto encontramos a seguinte afirmação: "um dos elementos mais marcantes da nossa identidade nacional reside justamente no fato de termos um imenso território com uma só lingua, esta plenamente compreensível por todos os brasileiros de qualquer rincão, independentemente do nível de instrução e das peculiaridades regionais de fala e escrita. Esse ? um autêntico milagre brasileiro ? está hoje seriamente ameaçado".
O que as pesquisas sociolingüísticas revelam, porém, está muito longe de ser esse suposto "milagre". Existem sérias dificuldades de compreensão entre falantes de variedades cultas e não-cultas, e os falantes das variedades não-cultas deixam de usufruir de uma série de direitos simplesmente por não terem acesso à norma lingüística empregada pelas instituições em sua comunicação com os cidadãos. Será que todos os brasileiros, os camponeses sem-terra, os mendigos sem-teto, os moradores das periferias e das favelas das grandes cidades conseguem entender plenamente um noticiário como o Jornal Nacional da Rede Globo? A televisão chega a quase todas essas pessoas, mas a educação necessária e indispensável para a plena absorção das mensagens veiculadas pela televisão não chega. É uma grande ilusão acreditar, portanto, que no Brasil só se fala uma língua. E, pior ainda, acreditar que essa língua é a língua das gramáticas normativas e dos textos literários clássicos.
Dessa ilusão é que resulta o grave problema do ensino da língua na escola. Não existe apenas a difícil relação entre norma-padrão e variedades não-padrão. Existe também uma relação igualmente espinhosa e complicada, que é a da norma-padrão com o ensino dessa mesma norma. Afinal, como é que foi determinado esse suposto padrão que é ensinado na escola? Será que ele corresponde realmente à língua empregada pelas camadas cultas da nossa população? Como é possível que milhões de brasileiros terminem seus estudos primários e secundários, e depois de onze anos ou mais de educação formal continuem a dizer que "não sabem português"?
O que se verifica é que mesmo os falantes cultos, aquelas pessoas que têm acesso às regras padronizadas, incutidas no processo de escolarização, se mostram muito inseguras no momento de usar essas regras conservadoras. Porque não basta ensinar a gramática normativa na escola. É preciso definir de maneira mais democrática qual deve ser a norma a ser apresentada na escola. É urgente empreender uma crítica profunda desse padrão. Uma norma que ainda obriga os alunos a decorar as formas verbais correspondentes ao pronome vós; que ainda apresenta a mesóclise como uma opção possível para a colocação pronominal; que obriga a decorar regências verbais que não correspondem à gramática do português brasileiro (assistir "ao" filme); que não admite a função de sujeito para o pronome se (e verbo no singular) em construções do tipo "aluga-se salas"; que condena a "mistura de tratamento" sem reconhecer que todo o quadro pronominal do português do Brasil já se transformou há muito tempo... é uma norma-padrão que tem muita coisa inútil, irrelevante, obsoleta. E é o não-respeito a essa inutilidade obsoleta que é classificado de "erro"...
A noção de "erro de português", tão impregnada em nossa cultura, não tem o menor fundamento científico. Ela é puro folclore, uma crendice que, examinada à luz da ciência, perde toda a razão de ser. Tudo o que se chama tradicionalmente de "erro" é, na verdade, algum fenômeno de variação e/ou mudança lingüística perfeitamente explicável do ponto de vista científico. Só que a explicação científica também desmascara os mecanismos de exclusão social dos falantes das variedades não-padrão. Reconhecer a língua dos pobres e analfabetos como uma língua digna de estudo e de respeito representa um grave perigo para a ordem social vigente. Por isso tanto empenho em preservar a noção de "erro de português". Hoje não é mais possível desconsiderar todos os progressos científicos da Lingüística e continuar ensinando de acordo com os preceitos e preconceitos da milenar Gramática Tradicional, que se tornou apenas um dos muitos campos de investigação dos lingüistas. A velha divisão entre "certo" e "errado" tem de ser guardada nos arquivos da História, junto com as concepções astrônomicas que afirmavam que a Terra é plana e ocupa o centro do universo, e com as crenças da biologia arcaica de que as moscas nascem da carne podre... Foram passos dados na evolução do saber do homem, que já progrediu muito de lá para cá e não pode nem quer ficar parado no tempo. Achar que uma determinada forma lingüística é mais "certa" que outra é a mesma coisa que achar que os homens são mais inteligentes que as mulheres, que os homossexuais são "doentes", ou que os brancos merecem mandar nos negros...
Se é verdade que o padrão lingüístico será sempre um ideal, inatingível na prática em sua totalidade, também é verdade que a escola deveria se esforçar para que esse padrão absorvesse uma série de usos lingüísticos novos, perfeitamente assimilados pelos falantes cultos, e já consagrados até na literatura dos melhores escritores. Isso reduziria o abismo que existe entre o padrão lingüístico e o uso real da língua por parte dos falantes cultos. Além disso, é preciso também que, dentro da escola, haja espaço para o máximo possível de variedades lingüísticas: urbanas, rurais, cultas, não-cultas, faladas, escritas, antigas, modernas... Para que as pessoas se conscientizem de que a língua não é um bloco compacto, homogêneo, parado no tempo e no espaço, mas sim um universo complexo, rico, dinâmico e heterogêneo...
Nos dias de hoje, estamos presenciando um fenômeno bastante curioso no Brasil, no que diz respeito ao ensino da língua portuguesa. De um lado, temos o Ministério da Educação que, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, reconhece a existência do preconceito lingüístico e sugere uma abordagem mais científica, menos dogmática e mais democrática do fenômeno da variação lingüística. Do outro lado, temos uma onda de gramatiquice que invadiu os meios de comunicação, que descobriram que a velha gramática tradicional é um produto de consumo altamente vendável e lucrativo (por causa principalmente da baixa auto-estima lingüística que ela mesma cria na mentalidade das pessoas...). São programas de TV e de rádio, colunas de jornal e revista, páginas na Internet, CD-ROM, manuais de redação de empresas jornalísticas, etc. Para atender à demanda e para se ajustar à rapidez e superficialidade dos meios de comunicação, esses comandos paragramaticais (como eu chamo) fazem um enxugamento drástico das gramáticas normativas, reduzindo capítulos inteiros de discussão filológica séria a meia dúzia de fórmulas do tipo "diga X, não diga Y".
Muitos dos responsáveis por esses comandos paragramaticais nem sequer são professores de português: muitos são jornalistas, advogados, médicos, escritores, gente sem nenhuma preparação científica especializada para tratar dos assuntos que abordam. Outros, embora formados em Letras, não levaram essa formação adiante: não fizeram Mestrado nem Doutorado, não pertencem a nenhum grupo de pesquisa científica, não acompanham os desdobramentos teóricos e práticos da Lingüística. Pertencem à pré-história da lingüística brasileira. Apenas descobriram fórmulas inteligentes de transformar a Gramática Tradicional num fast-food atraente mas insosso, que não alimenta nada, apenas ilude o paladar!
O vigor dos preceitos e preconceitos tradicionais a respeito da língua pode ser verificado também, por exemplo, no fato de, a todo momento, os meios de comunicação divulgarem os avanços feitos por todas as demais ciências e nunca mencionarem os progressos das ciências da linguagem. Muito pelo contrário, eles só dão espaço aos porta-vozes do que há de mais conservador e atrasado em termos de concepção de língua.
Exemplos do tradicionalismo anticientífico dos meios de comunicação no que diz respeito à língua estão nos textos publicados por Pasquale Cipro Neto em alguns dos muitos jornais e revistas com os quais ele colabora. Na revista Cult, por exemplo, nos nos 23 e 26 (junho e setembro de 1999), ele chama os lingüistas de "deslumbrados". Em sua coluna da Folha de S. Paulo ele já acusou os lingüistas de serem "idiotas, ociosos" (20/11/1997) e também "defensores do vale-tudo" (28/5/1998). Para ele, as pesquisas lingüísticas são "devaneios" e os resultados obtidos com essas investigações são "balelas" (21/8/1998). É lamentável que uma pessoa com tamanha influência e com tanta capacidade de divulgação de idéias continue a defender e a vender uma visão tão deformada do que realmente é a ciência lingüística.
As pessoas realmente empenhadas numa prática de ensino democrática e em dia com a ciência têm de assumir uma postura crítica diante desses supostos mestres do certo e do errado que se tornaram os queridinhos da mídia. É preciso reagir contra essa nova onda de prescritivismo gramatical que em nada contribui para elevar a auto-estima lingüística dos brasileiros e que só serve para preservar os mecanismos já tão perversos de exclusão social que existem na nossa sociedade.
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