Autor Tópico: DA NECESSIDADE DO CETICISMO  (Lida 808 vezes)

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Offline SuperBia

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DA NECESSIDADE DO CETICISMO
« Online: 03 de Maio de 2006, 22:43:00 »
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DA NECESSIDADE DO CETICISMO

Gustavo Bernardo

 Publicado em
Jornal do Brasil - Idéias, 12/03/2005.

 

A crítica ao ceticismo encontra boa síntese na sentença de Affonso Romano de Sant’Anna: “Os céticos não fazem história: contemplam-na à distância, comodamente, instalados na sabedoria do não correr riscos” (O Globo, 15/04/1999). De fato, é corrente a noção de que os céticos não acreditam em nada e nada fazem para mudar o estado das coisas que criticam. Assim é fácil, diz o vulgo. Suponho, no entanto, que não seja tão fácil. Eu, por exemplo, gostaria de ser cético quando crescesse, mas sei que, perto dos 50 anos, ainda me falta muito. A necessidade de crença e de ilusão é muito forte: me engana que eu gosto, como se diz. É essa necessidade que produz utopias, civilizações e religiões: aposta-se no incerto, decretando-o “certo”.

Como os céticos desconfiam de utopias em geral, o cronista afirma com razão que os céticos não fazem história. A história, no entanto, precisa dos céticos. As utopias políticas e religiosas degringolam facilmente em sistemas totalitários e excludentes, terminando por negar o fundamento generoso que as animara. O cético é como se fosse um grilo falante, criquilando ao pé do ouvido do rei ou do bispo: tem certeza disso? A guerra é necessária? Vossa Excelência precisa mandar vossos jovens à morte ou ao assassinato? O que vos move é a pátria ou o lucro do poder? A perseguição é necessária? Vossa Eminência precisa desvalorizar a crença ou descrença alheia? O que vos move é a fé ou o balido do rebanho?

Mas esse grilo é muito chato, ele faz perguntas demais. Assim o templo não fica pronto, o presidente não se reelege, nossa verdade não se torna a verdade de todos. Alguém pode por favor esmagar o grilo na parede? Argh, que nojo, também não precisava esmagar com tanta força. E havia como esmagar delicadamente?, continua a perguntar, mesmo agonizante, o nosso cri-cri.

Não sou o grilo. Como disse, gostaria de ser cético quando crescer, o que significa que não cresci ainda. Mas lembro a frase completa do grande dogmático francês: dubito ergo sum, vel quod item est, cogito ergo sum. Na sua língua: je doute donc j’existe, ou ce qui est la même chose: je pense donc j’existe. Na nossa língua: “duvido, logo existo, ou, o que é o mesmo, penso, logo existo”. A formulação ampliada, da qual costumamos repetir apenas o finalzinho, consta da última obra de René Descartes, o diálogo La recherche de la vérité – “A procura da verdade”. Embora ele mesmo tenha recorrido à dúvida metódica para ao final acabar com todas as dúvidas, acabou por admitir que duvidar é igual a pensar. Em outras palavras: quem não duvida, não pensa.

Entretanto, em pleno século XXI, já não estaríamos próximos da verdade final, dada pela junção iminente da mecânica quântica com a cosmologia? Ainda há necessidade da dúvida? Sim, e talvez mais do que antes. Segundo o físico brasileiro Marcelo Gleiser, o nível do conhecimento científico vem diminuindo a olhos vistos, apesar da influência crescente da ciência na vida do cidadão (Folha de São Paulo, 09/01/2005). Há fascínio com as aplicações tecnológicas, mas a base científica dessas aplicações fica esquecida em meio à vontade do “quero ter um DVD”. A separação entre tecnologia e consumidor leva ao esquecimento do conhecimento. Não será coincidência que o abismo entre complexidade da ciência e compreensão do público ocorra ao lado do aumento de uma religiosidade tão intolerante quanto mais se elogie a ignorância. A imposição política de valores religiosos restringe a liberdade de pensamento. O criacionismo, que nega a teoria da evolução para explicar tudo por Adão e Eva, ganha força no Brasil e nos Estados Unidos.

Um bom cético põe em dúvida até a teoria da evolução: primeiro, por subentender o progresso linear na natureza; segundo, por ser uma teoria, ou seja, uma aproximação da verdade que não deve ser tomada como verdade em si. Mas aceita essa aproximação como o que de melhor temos para pensar a natureza, enquanto que a obrigação do ensino do criacionismo nas escolas implica grave retrocesso. Uma bela metáfora, a do Genesis, é transformada, com o perdão da palavra, em estupidez.

Conta-se que, quando o general romano voltava da vitória, desfilava numa biga ao lado de um grilo falante que lembrava, ao pé do ouvido, suas derrotas e fraquezas, portanto, sua humanidade. Como os generais, os cientistas também correm o risco de se deixarem tomar pela arrogância ao descobrirem alguma coisa importante, esmagando as dúvidas que foram essenciais até então. O astrônomo Carl Sagan lembrava que há duas atitudes centrais para o método científico: o ceticismo e a admiração. Sem admiração, isto é, sem a capacidade de se espantar, não se pode fazer ciência. Sem ceticismo, isto é, sem o grilo falante interior, também não se pode fazer ciência.

O ceticismo funciona como uma salvaguarda política e científica. Os antigos diziam que o ceticismo é uma espécie de terapia, curando a razão ensandecida dos perigos da auto-referência. Não à toa Sextus Empiricus, seu principal divulgador no princípio da Era Cristã, era um médico. Ora, salvaguardas semelhantes existem em todas as religiões. Na Bíblia, lemos em Êxodo 20, 6: “não pronunciarás o nome do Senhor teu Deus em vão, porque o Senhor não deixará impune quem pronunciar seu nome em vão”.

Trata-se do mais sábio mandamento de Deus. Do meu lugar agnóstico, suponho que possa ser interpretado como: “não digas que Eu farei o que tu é que queres fazer, como por exemplo exterminar os teus inimigos”. Da mesma maneira, rezar a Deus (ou a um santo, seu preposto) para passar em determinado concurso, ou fazer com que determinada moça se apaixone por mim, implica desrespeito flagrante ao mandamento. Se o Todo Poderoso me atender, prejudicará quem merece passar no concurso ou tornará infeliz a moça: imagine obrigá-la a se apaixonar por um panaca que não liga para os verdadeiros sentimentos da mulher a quem diz amar.

Quem não quiser ser analfabeto científico no mundo em que a ciência é onipresente, precisa continuar perguntando como funciona o DVD. Quem não quiser mais se apoiar em Deus para justificar sua ignorância, precisa voltar a fazer a pergunta teológica de sempre: se Ele é onipotente e benevolente ao mesmo tempo, por que o Mal? A tsunami? A morte de uma criança?

A dúvida precisa ser tão estimulada quanto protegida. Continuo em dúvida sobre o funcionamento do DVD e sobre os desígnios de Deus, mas me mantenho vivo e livre se não paro de fazer perguntas.

 

http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/editor42.htm
"Desgraça pouca é bobagem.."

Offline Marcos Antônio Alcântara

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Re: DA NECESSIDADE DO CETICISMO
« Resposta #1 Online: 04 de Maio de 2006, 12:27:28 »
É interessante o fato de Nietzche ter admirado pessoas como Pascal ou São Francisco de Assis. No entender do filósofo, estes pobres homens, cheios de boas intenções não tiveram culpa de serem enganados por pessoas espertas, que os usaram para divulgar a Igreja. Estes homens jogaram fora as suas vidas, perderam o amor à Terra, a natureza dos sentimentos, a ingenuidadde das atitudes, passaram a ser crime, pecado, afronta. O homem criou, em si, o purgatório de sua vida. E o vale de lágrimas de vida não fora Deus que o criara. Essa acusação era outra infâmia. O homem - verdadeiro satã - criara seu próprio inferno, porque se negava a si mesmo. No entanto, para Nietzsche, o céu está no homem, como o inferno está também. É só saber procurá-lo. ainda na visão do pensador, o cristianismo foi o mais baixo nível da evolução descendente do tipo divino. Para o cristão, segundo ele, essa terra é o "pecado", é o "diabo". Nietzsche pregava aos homens a compreensão da necessidade eugênica da vida, o que hoje, aliás, é um cânone do mundo civilizado. Mas as crenças religiosas ensinaram o homem a amaldiçoar a Terra. A lição do bom viver não ficou esquecida pelo filósofo, quando ensina que o homem deve vencer cada uma de suas derrotas e suplantar os empecilhos e obstáculos. E somente nessa hora os homens poderão contemplar o mundo com um olhar ghoeteano cheio de amor e de boa vontade para com seus semelhantes, por que nessa hora já não mais conhecerá o domínio do ressentimento. Nitzsche, o cético, o agnóstico, o ateu, foi necessário ao mundo, por que revelou-nos com coragem a farsa que são as religiões.
Também sou ateu. Sai do armário há cinco anos e estou doido para fazer parte deste grupo. Espero que não seja um grupo tão fechado como o dos religiosos.

Offline Marcos Antônio Alcântara

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Re: DA NECESSIDADE DO CETICISMO
« Resposta #2 Online: 04 de Maio de 2006, 13:38:10 »
No mês de janeiro recebi o informativo "Cogito", dos alunos da UERN (Universidade Estadual do Rio Grande do Norte). Era este o primeiro jornalzinho editado no ano de 2005 pelos universitários macauenses. O artigo de capa, escrito por Raul, conta que Isaac Newton, tentando mostrar a um cético que o mundo teria tido um criador, obteve sucesso ao mostrar-lhe um brinquedo que imitava a organização entre os planetas que giravam em torno do sol. O cético, segundo Raul, chegou a acreditar em Deus. Daí Raul aproveitou para perguntar aos leitores do jornalzinho: "E você a que conclusão chegas?". A minha conclusão é a mesma de Mikhail Bakunin que afirma: "Se a ordem é natural e possível no Universo, é porque o Universo não é governado por nenhum sistema criado anteriormente e imposto por um poder supremo. A hipótese teológica de uma legislação suprema leva a um absurdo evidente, e à negação da ordem e da própria natureza. As leis naturais são reais apenas enquanto forem inerentes à natureza, isto é, enquanto são fixadas por uma autoridade. Estas leis são somente simples manifestações, ou modalidades descontínuas do desenvolvimento das coisas e a combinação de fatos variados, transitórios, porém reais. Juntos constituem o que denominamos "natureza". A inteligenvia humana e a ciência observaram estes fatos e os controlaram experimentalmente. Então reuniram-se num sistema e os denominaram leis. Mas a própria natureza não tem leis. Ela age inconscientemente, representando em si própria a infinita variedade dos fenômenos, que surgem e se repetem de acordo com a necessidade. Graças a esta inevitabilidade de ação é que a ordem universal pode existir e de fato existe".
Também sou ateu. Sai do armário há cinco anos e estou doido para fazer parte deste grupo. Espero que não seja um grupo tão fechado como o dos religiosos.

 

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