Autor Tópico: Repercursão do Hoax de Sokal no Brasil  (Lida 877 vezes)

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Repercursão do Hoax de Sokal no Brasil
« Online: 08 de Setembro de 2006, 00:20:20 »
http://physics.nyu.edu/faculty/sokal/folha.html#abramo


Citação de: Cláudio Weber Abramo
O telhado de vidro do relativismo

Cláudio Weber Abramo

Folha de São Paulo, 15 setembro 1996
Nunca, na história da filosofia, uma vitória foi tão completa como a que goza hoje a epistemologia pós-moderna, em especial sua vertente relativista. Por meio da expansão cognitiva imbricada no indeterminismo quântico e na teoria do caos, a ciência pós-moderna abole o conceito de realidade "física" e privilegia a não-linearidade e a descontinuidade. Ao mesmo tempo, por meio do (meta)cruzamento dos conceitos, desconstrói e transcende as distinções metafísicas cartesianas entre humanidade e Natureza, observador e observado, sujeito e objeto. Baseia sua perspectiva ontológica sobre a trama dinâmica das relações entre o todo e as partes; no lugar de essências individuais fixas, conceitualiza interações e fluxos.

É finalmente reconhecida a relevância do simbolismo e da representação, que liberam as ciências da camisa-de-força das fronteiras interdisciplinares e propiciam a transgressão criadora. Torna-se cada vez mais aparente que os objetos naturais são construídos social e linguisticamente, o que dissolve sua putativa concretude. A "realidade objetiva", autoritária e elitisticamente imposta pela ciência tradicional, mostra ser o que sempre foi: uma ilusão ideologicamente imposta por um establishment científico a serviço de interesses retrógrados.

Em nenhum lugar esse movimento pode ser identificado mais claramente do que na teoria quântica da gravitação. Pesquisas recentes nessa área, alimentadas pela metacrítica do desconstrutivismo, têm liberado a investigação científica de seus velhos pressupostos objetivistas e, em consequência, trazido a física para uma crescente harmonização com as humanidades. Tão íntima é essa aproximação que, por exemplo, as teorias psicanalíticas de Jacques Lacan encontram confirmação em investigações realizadas no terreno da teoria quântica de campos. E é sintomático observar a dívida da nova física para com o trabalho de pensadores desconstrutivistas, como é exemplo paradigmático a teoria da estrutura e dos signos no discurso científico, de Derrida.

Tão extensa e fundamental é a revolução por que passa a teoria quântica da gravitação que abole até o conceito de existência que forma a base da tradição filosófica ocidental. Por isso, não surpreendentemente, são muito profundas suas implicações culturais e políticas. No entanto, o desabrochar dessas implicações numa práxis política progressista ainda dependerá de extenso trabalho teórico, a começar pelo fundamento mais íntimo do empreendimento científico, a matemática. Uma ciência liberadora do homem não poderá se completar na ausência de uma profunda revisão do cânone matemático dominante desde Galileu: notoriamente capitalista, patriarcal e militarista.


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Neste ponto convida-se o eventual leitor a uma reflexão. O que se acabou de ler é ou não é plausível à luz do que se lê por aí? Não terá ele encontrado em leituras recentes o vocabulário, as referências cruzadas e o particular modo de inferência presentes no acima?

"Fluxo", "ênfase dialética", "não-linearidade", "teoria do caos", "indeterminismo quântico", "metacruzamento", "emancipação cognitiva", metacrítica" compõem um léxico decerto familiar. Também é familiar a justaposição desse léxico numa sintaxe, digamos, fluxional: a uma frase se sucede outra, e outra, e outra, dando lugar a um "texto", objeto e fim da novel área dos "estudos culturais". Lógica, fundamentos, encadeamentos inteligíveis, pertinência, nem pensar.

No caso em questão, o "texto" afirma, entre outras barbaridades, que a realidade física não existe e que um terreno de investigação que lida com o micromundo (a teoria quântica de campos) estaria não só fruindo inspiração dos escritos de Derrida como propiciando suporte às especulações de Lacan e, ainda, fornecendo suporte a uma "física libertária" com "profundas" implicações para a cultura e a prática política! Afirma que os fundamentos da matemática são "capitalistas, patriarcalistas e militaristas"!

Ora, pois, se dirá, apresentar o "texto" acima como paradigma do que se publica na área dos "estudos culturais" é um exagero de má-fé. Nenhuma publicação respeitável poderia considerar seriamente a aceitação de tamanhas absurdidades em suas páginas.

Não foi, porém, o que aconteceu na prática. Explica-se: o "texto" em questão não foi inventado para a presente ocasião. Trata-se de um resumo (um pouco "desconstruído" e levemente adicionado de divertimentos próprios) de artigo lunático que os editores da prestigiosa revista "Social Text", "vade mecum" dos "estudos culturais" norte-americanos, aceitaram para publicação em uma edição especial (primavera/verão 96) dedicada à filosofia e à sociologia da ciência.

O autor da peça (intitulada "Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity" _Uma Transgressão de Fronteiras: em Direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica) é Alan Sokal, professor de física da Universidade de Nova York. Poucas semanas após a publicação do artigo na "Social Text", outra revista, "Lingua Franca", trouxe (edição de maio/junho de 1996) um pequeno escrito do mesmo Sokal em que ele denuncia seu próprio "texto" e explica a operação:

"Há alguns anos, venho me preocupando com um declínio aparente nos critérios de rigor intelectual vigorantes em determinados rincões das humanidades acadêmicas norte-americanas. (...) Para testar esses critérios, decidi fazer um experimento modesto (embora admitidamente incontrolado): será que uma revista de primeira linha na área dos 'estudos culturais' _cujo coletivo editorial inclui luminares como Fredric Jameson e Andrew Ross_ publicaria um artigo abundantemente preenchido com absurdidades, caso (a) soasse bem e (b) alimentasse os preconceitos ideológicos de seus editores? Infelizmente, a resposta é afirmativa".

Além de expor a debilidade das práticas pós-modernas, Sokal tinha uma motivação política para a peça que pregou. A dissolução da idéia de que o ser humano pode obter conhecimento objetivo a respeito do mundo, preconizada pelo relativismo, bem como a noção pós-moderna de que aquilo que possamos afirmar sobre a realidade não passa de "constructos", solapam os esforços de elaborar uma crítica progressista da ordem social. Como se tornou impossível desmoralizar as maluquices pós-modernas por meio do debate racional, Sokal induziu o alvo a atirar no próprio pé.

Ele estruturou seu artigo a partir da justaposição de fontes genuínas. Mesclou referências científicas verdadeiras a inacreditáveis absurdos sobre a física e a matemática provenientes de luminares pós-modernos como Deleuze, Derrida, Guattari, Lacan, Lyotard, Stanley Aronowitz (membro do corpo diretor da revista, citado nada menos que 13 vezes) e Andrew Ross (responsável pela edição do número em que o artigo apareceu, citado quatro vezes).

Por que o experimento de Sokal funcionou? Conforme ele aponta em um "Pós-escrito" enviado à "Social Text" após a eclosão do escândalo, a chave do sucesso foi o fato de seu artigo mimetizar as características do gênero "pós-moderno":

"Uma mistura de verdades, meias-verdades, um-quarto-de-verdades, falsidades, inferências inválidas e sentenças sintaticamente corretas, mas carentes de qualquer sentido. (...) Também empreguei outras estratégias consagradas (embora às vezes inadvertidamente) no gênero: apelos à autoridade em lugar da lógica; especulações apresentadas como ciência estabelecida; analogias forçadas e mesmo absurdas; uma retórica que soa correta, mas cujo significado é ambíguo; e confusões entre os significados técnico e corriqueiro das palavras".

O episódio lança luz sobre os costumes de uma certa casta acadêmica que tem contribuído fortemente para o estado de deliquescência em que se encontra a vida intelectual. Mesmo após a exposição do vexame, os editores da "Social Text" perseveraram nas mesmas práticas que os haviam levado ao ridículo. Num editorial cheio de subterfúgios publicado na Internet e depois na edição de julho/agosto 96 na "Lingua Franca", Bruce Robbins e Andrew Ross, co-editores do número fatídico, justificam assim o fato de o artigo ter passado por seu crivo:

"Concluímos que se tratava de uma tentativa esforçada de um cientista profissional de encontrar na filosofia pós-moderna algum tipo de afirmação para desenvolvimentos em seu próprio terreno. (...) Caso viesse de um humanista ou cientista social, o artigo de Sokal teria sido considerado um tanto obsoleto (fica-se imaginando as sandices que seriam exigidas para poder ser classificado como "up to date"...). Tratando-se de artigo de um cientista natural, julgamos ser plausivelmente sintomático de como alguém como Sokal poderia aproximar-se do campo da epistemologia pós-moderna, isto é, procurando desajeitada, mas assertivamente, capturar o 'clima' ('feel') da linguagem profissional da área, escudando-se ao mesmo tempo numa armada de notas de rodapé para aliviar sua sensação de vulnerabilidade. Em outras palavras, lemos o artigo mais como um ato de boa-fé quanto ao tipo (de escrito) que poderia valer a pena encorajar, do que como um conjunto de argumentos com que concordássemos. (...) Seu estatuto como paródia não altera substancialmente nosso interesse na peça como documento sintomático. De fato, a conduta de Sokal se transformou rapidamente em objeto de estudo para aqueles que estudam o comportamento de cientistas".

Fora o autoritarismo paternalista transparente nessas palavras, consegue-se ver claramente por que "Social Text" aceitou o artigo, como aceitara e encorajará outros, tão hilariantes como o de Sokal, embora genuínos: porque considera a presença de um "clima" condição suficiente para definir a pertinência à "linguagem profissional da área". Foi essa exatamente a hipótese formulada por Sokal em seu experimento, e confirmada pelo ato de publicação.

Observe-se, ainda, como opera o processo de regeneração perpétua característico do pós-modernismo: já tentam transformar o caso em objeto de estudo, em que Sokal passa a desempenhar o papel de rato de laboratório para experiências sobre uns cientistas pobres coitados incapazes de ler filosofia (a filosofia lá deles, bem entendido).

Quanto aos cientistas propriamente ditos, que passam a existência em busca de explicações sobre o funcionamento do mundo e têm coisa mais séria com que se preocupar, a "filosofia pós-moderna" não pode passar de piada. E foi assim, como uma piada até previsível, que o "caso Sokal" foi recebido por essa comunidade. (A edição de agosto do "New York Review of Books" traz artigo do físico Prêmio Nobel Steven Weinberg em que se analisam pacientemente os erros científicos e filosóficos cometidos pelos "pós-modernos" retratados no artigo de Sokal.) Nas humanidades, território de caça por excelência do pós-modernismo, a coisa pegou mais fundo.

Sokal informa via e-mail que "o escândalo parece estar tendo algum efeito em nosso pequeno mundo acadêmico _especialmente nas humanidades e nas ciências sociais, que afinal constituíam o alvo do experimento. Já se programaram inúmeros debates para o início do ano acadêmico, neste mês (fui convidado para mais de dez, em universidades de todo o país). O escândalo deu origem a uma discussão em que começam a ser ouvidos outra vez os velhos argumentos racionalistas contra o pós-modernismo. Enfim, suspeito que um certo tipo de prosa ininteligível e recheada de jargão tenha recebido um golpe mortal, pois os comitês universitários de promoção acadêmica estarão muito menos intimidados do que já foram por 'teorias' aparentemente profundas, mas incompreensíveis".

Receia-se que o otimismo de Sokal quanto à academia norte-americana não possa ser transferido para paragens remotas como o Brasil, em que a vida intelectual morreu por suicídio. É muito provável que continuemos a nos deparar com "textos" eivados de uma mixórdia de indefinidas categorias filosóficas misturadas a mal digeridas menções à teoria da relatividade geral, ao indeterminismo quântico, à teoria do caos, ao teorema de Gõdel, tudo servindo de suporte a especulações de modo geral ininteligíveis e, quando inteligíveis, gritantemente implausíveis, a respeito da psique, da função da forma na arte e de todo e qualquer assunto que dê na telha de seus perpetradores.

Se por aqui alguma coisa mudar não será por efeito de algum processo de discussão (pois debater é coisa que nossa intelectualidade, rendida sem luta ao relativismo e à complacência, só faz "in extremis"), mas porque alguém reparará tardiamente que desconstruções, "textos", "pós-modernismos" e quejandos terão caído de moda. Será uma conversão como tantas outras por que passaram, sem nexo e sem razão.



Cláudio Weber Abramo é bacharel em matemática e mestre em filosofia da ciência. Foi editor de Economia da Folha e secretário-executivo de redação da "Gazeta Mercantil". É sócio da Weber Abramo, Penz Assessoria de Comunicação.

E-mail wabpnz@ams.com.br

Agradeço a Alan Sokal a paciência de leituras e discussões progressivas em torno do presente artigo, do qual é, em essência, o verdadeiro autor (exceto quanto aos últimos parágrafos). Principalmente, agradeço a realização de uma antiga fantasia.


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Leia um trecho do artigo

ALAN SOKAL

Desse modo, a relatividade geral nos obriga a adotar noções radicalmente novas e contra-intuitivas a respeito do espaço, do tempo e da causalidade; por isso, não surpreende que tenha provocado profundo impacto não apenas nas ciências naturais como também na filosofia, na crítica literária e nas ciências humanas.

Por exemplo, num célebre simpósio realizado há três décadas sobre "Les Langages Critiques et les Sciences de l'Homme", Jean Hyppolite levantou uma questão incisiva sobre a teoria da estrutura e dos signos no discurso científico, de Jacques Derrida.

A perspicaz resposta de Derrida foi ao âmago da relatividade geral clássica: "A constante einsteiniana não é uma constante, não é um centro. É o próprio conceito de variabilidade _é, finalmente, o conceito do jogo. Em outras palavras, não é o conceito de alguma coisa _de um centro a partir do qual um observador pode dominar o campo_, mas o próprio conceito do jogo".

Em termos matemáticos, a observação de Derrida liga-se à invariância da equação de campo de Einstein sob difeomorfismos (auto-aplicações da variedade espaço-temporal infinitamente diferenciáveis mas não necessariamente analíticas) não-lineares do espaço-tempo. O ponto-chave é que esse grupo de invariância "age transitivamente": isso significa que qualquer ponto do espaço-tempo, caso exista, pode ser transformado em qualquer outro. Dessa forma, o grupo de invariância de dimensão infinita dissolve a distinção entre observador e observado; o de Euclides e o G de Newton, antes imaginados constantes e universais, são agora percebidos em sua inelutável historicidade; e o observador putativo se torna fatalmente de-centrado, desconectado de qualquer ligação epistêmica com um ponto do espaço-tempo que não pode mais ser definido apenas pela geometria.


Alan Sokal é professor de física na Universidade de Nova York. Tem colaborações científicas na Itália e no Brasil (Universidade Federal de Minas Gerais). Durante o governo sandinista, ensinou matemática na Universidade Nacional da Nicarágua. Junto com o belga Jean Bricmont escreve "Les Impostures Scientifiques des Philosophes (Post-)Modernes" _em que se examinam as bobagens matemáticas de Lyotard, Baudrillard, Deleuze, Guattari e Virilio.


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Além das referências do texto, o "caso Sokal" apareceu nas primeiras páginas do "New York Times", do "International Herald Tribune" e do "Observer". Naturalmente, está dando origem a considerável trânsito de e-mails na Internet. Home pages que vale a pena visitar:

http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/index.html (página de Sokal na New York University)
http://www.nyu.edu/pubs/socialtext (página da "Social Text")
http://weber.u.washington. edu/~jwalsh/sokal/ (referências sobre o caso, compiladas por Jason Walsh, da Universidade de Washington)


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Re: Repercursão do Hoax de Sokal no Brasil
« Resposta #1 Online: 08 de Setembro de 2006, 00:21:25 »
Citação de: Roberto Campos
A brincadeira de Sokal...

Roberto Campos

Folha de São Paulo, 22 setembro 1996
"O imbecil coletivo... é uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior, que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras".Olavo de Carvalho

Uma divertida, mas muito oportuna tempestade, ainda agitando os subúrbios da vida acadêmica americana. Um físico, dr. Alan Sokal, professor da New York University, publicou na edição da primavera/verão da "Social Text", uma revista esquerdista de crítica cultural, dedicada sobretudo ao "pós-modernismo", um enroladíssimo ensaio intitulado "Atravessando as Fronteiras: em Direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica"! Logo depois, Sokal publicou em outra revista, "Língua Franca", um artigo sob o título de "Um Físico faz Experiências com Estudos Culturais".

Neste, ele explica que o texto mandado para "Social Text" era uma paródia às custas dos praticantes dos "estudos da ciência"; não mais que uma piada repleta de frases sem sentido, para dar a impressão de que estava questionando a validade da mensuração da "realidade" física...

O que doeu para burro (não é jogo de palavras...) é que a revista "Social Text", que hospedara essa brincadeira, havia conquistado certa reputação de seriedade na linha culturalista de esquerda. Tornara-se uma espécie de último refúgio intelectual dos resíduos de um radicalismo acadêmico que ainda floresce em áreas menos iluminadas das chamadas "ciências sociais". Há muito tempo, os cientistas das disciplinas "duras" vem sentindo crescente desgosto com o facilitário, a parolagem e as pretensões intelectuais dessa turma "engajada".

Ninguém se esquece do que aconteceu nos tempos áureos do socialismo de Stálin. Nessa época, a teoria da relatividade era ciência "burguesa" e "judaica"; a cibernética era banida por motivos parecidos (o que atrasou enormemente a tecnologia soviética) e a genética mendeliana dava Gulag ou pior (porque contrariava o suposto socialista da "hereditariedade dos traços adquiridos").

Essas histórias, é verdade, são antigas, mas o vício do patrulhamento, pela submissão da idéia à ideologia, parece gostoso demais às esquerdas, em que conseguem alguma parcela de poder. Aqui nas terras de Macunaíma, muita gente foi patrulhada e perseguida, não raro da maneira mais calhorda _tudo, é claro, em nome da "boa causa". Há patrulhadores contumazes: Antonio Callado, por exemplo, na literatura, e Emir Sader, nas ciências sociais.

O primeiro buscou vetar a publicação no Jornal do Brasil de artigos de Olavo de Carvalho, um filósofo de grande erudição, e o segundo investiu contra José Guilherme Merquior, que foi indubitavelmente o sociólogo de maior densidade cultural da jovem geração brasileira e o que mais se projetou internacionalmente.

A brincadeira de Sokal não mereceria talvez mais que uma gargalhada, se os colaboradores do "Social Text" não tivessem perdido a esportiva e falado em "quebra de ética" e outras coisas feias, armando uma verdadeira guerra contra os chamados "conservadores na ciência". Na verdade, eles confessam que haviam tomado o artigo de Sokal como uma tentativa séria de um físico para encontrar na "filosofia pós-moderna" algum apoio para os desenvolvimentos na sua ciência.

E algumas afirmações do editor da revista, professor Stanley Fish, da Duke University, acabaram soando quase tão engraçadas quanto as de Sokal: "Os sociólogos da ciência, diz ele, não estão tentando fazer ciência, mas sim encontrar uma rica e poderosa explicação do que significa fazê-lo"... (sic)

Essa tentativa de auto-justificação espicaçou irritações acumuladas e atiçou um fogo de morro-arriba nos círculos acadêmicos pelo mundo afora. Não é de hoje, naturalmente, que pensadores sérios reclamam contra o facilitário com que praticantes das chamadas "ciências sociais" _e da filosofia_ abusam dos critérios de racionalidade e da semântica, às vezes em defesa de interesses ideológicos imediatistas.

O grande lógico-matemático Carnap, por exemplo, desancou asserções sem sentido de filósofos então na moda. Tudo isso, porém, faz parte do jogo, e não despertaria atenção se não fosse a crescente falta de desconfiômetro intelectual dos "radicais chiques", "engajados", negando validade aos esforços de conhecimento objetivo das ciências e pregando descaradamente como "ciência" seus próprios preconceitos políticos e ideológicos.

A discussão estourou feia por outros campos. Por exemplo, um jornalista trouxe à baila que, em alguns casos, estava sendo ensinado que Cleópatra e Sócrates eram ambos negros, que a filosofia e a ciência gregas haviam sido roubadas da África e que Aristóteles roubara a sua filosofia da biblioteca de Alexandria.

Tolices como essas mal escondem um viés paternalista insultuoso, que só desserve à causa da justiça à raça negra. Não sem razão, o super-radical líder negro americano Farrakhan, que fez a recente notável marcha sobre Washington e que prega, inclusive, uma estrita separação em relação aos brancos, rejeita esse bom-mocismo e reclama dos seus correligionários uma "auto-afirmação séria".

Para nós, acostumados a um grau de descaramento muito mais grosso por parte dos nossos radicais e corporativos, as diluídas repercussões do caso que nos estão chegando podem parecer diversão de Primeiro Mundo. Mas, por trás de tudo isso, há perguntas válidas. Será tudo tão relativo que nada de objetivo se possa afirmar sobre o mundo real? Está o cientista obrigado pelas regras lógicas e éticas da consistência, ou o "engajamento" será o mais importante de tudo? Será toda a "verdade" sempre "política" e "ideológica", ou os princípios da Razão podem levar-nos a um conhecimento cada vez mais amplo, acessível a todos e por todos aferível?

Não há respostas absolutas para essas indagações. Mas todos nós temos de manter alguma relação com aquilo que podemos chamar de "mundo real". Mesmo um engajado "sociólogo da cultura", por mais enroscado que esteja na "desconstrução pós-moderna", ao apertar o botão da luz espera que a lâmpada acenda, e, ao virar a chave do carro, espera sem sombra de dúvida que as "relativas" leis da física e da química e a matemática em que são formuladas não pararão de funcionar naquele exato momento.

Por outro lado, o esforço de "desconstrução", como todos os esforços críticos, pode ser útil para balizar nosso pensamento e mostrar alguns dos nossos limites. Que não são muita novidade, aliás. Há 25 séculos, os gregos quebravam a cabeça com paradoxos não diferentes daqueles sobre os quais se debruçariam os matemáticos e lógicos Whitehead e Russell e, mais recentemente, Gõdel.

Os economistas, esses então, vivem com permanente enxaqueca, porque lidam com matérias que são, ao mesmo tempo, próprias da matemática e da física, da história e da cultura. Ou seja, de um lado há o risco do buraco negro de um excessivo grau de abstração; de outro, o lameiro do facilitário com que os malandros se valem das "ciências sociais". Com pequenas perversidades de um lado e de outro. Por exemplo, Paul Krugman, o economista (é claro...), recentemente contou a anedota do professor de economia hindu que assim tentava explicar aos alunos a reencarnação: "Se vocês forem sérios, aplicados, fizerem bem os seus deveres, na próxima encarnação voltarão como físicos. Se forem malandros e relaxados, voltarão como sociólogos"...

Não pretendo tirar conclusões, porque prefiro não apanhar nem de um lado nem de outro. Já sofri a minha quota de patrulhamento. Mas, que seria bastante útil um pouco mais de rigor no discurso brasileiro, seria. Só haveria ganhos se começássemos a praticar a semântica do sujeito-verbo-predicado, em vez do nosso tropical desrespeito pelas palavras e pelo fato de que, por trás delas, tem de haver certo sentido nas coisas...



Roberto Campos, 79, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).

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Re: Repercursão do Hoax de Sokal no Brasil
« Resposta #2 Online: 08 de Setembro de 2006, 00:22:38 »
Citar
A razão não é propriedade privada

Alan Sokal

Folha de São Paulo, 6 outubro 1996
A Folha de 22/9 trouxe artigo de Roberto Campos sobre uma ''brincadeira'' de minha autoria no qual o autor expõe _como é seu direito_ sua análise do caso e de seu significado político. No entanto, em seu zelo de interpretar a controvérsia decorrente numa camisa-de-força de esquerda/direita, Campos distorceu os meus motivos políticos _claramente declarados, aliás_, recrutando-me contra a minha vontade para sua cruzada ideológica direitista.

A história é conhecida. Submeti à ''Social Text'', revista norte-americana de crítica cultural identificada com a ''esquerda pós-modernista'', um artigo paródico no qual afirmava que a ''ciência pós-moderna'' aboliria o conceito de realidade objetiva e, desse modo, sustentaria intelectualmente o ''projeto político progressista''.

O artigo foi preenchido de citações perfeitamente genuínas de proeminentes intelectuais norte-americanos e franceses _Stanley Aronowitz, Sandra Harding, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jacques Lacan, Gilles Deleuze e dúzias de outros_ escrevendo bobagens sobre a matemática e a física, tudo acompanhado de blandícias rasgadas.

Os editores da ''Social Text'' aceitaram e publicaram o artigo, sem perceber que se tratava de uma paródia. Logo depois, revelei a ''brincadeira'' em outra revista, ''Lingua Franca'', em que expliquei os meus motivos intelectuais e políticos.

A ''confissão'' desencadeou uma torrente de reportagens na mídia do mundo anglo-saxão e de outros países. Os temas subjacentes têm se tornado objeto de inúmeros debates nos círculos universitários norte-americanos.

Segundo Roberto Campos, o caso demonstraria a falência intelectual da esquerda, reduzida à ''parolagem e às pretensões intelectuais''. Mas será que é mesmo assim? Embora o pobre leitor do artigo de Campos não o suspeitasse jamais, eu pertenço à esquerda _entendida amplamente como corrente política que condena as injustiças e as desigualdades do sistema capitalista e que procura eliminá-las, ou pelo menos minimizá-las.

Sem dúvida, a esquerda mundial está passando por uma crise intelectual e estratégica, provocada não tanto pelo colapso do comunismo _sistema opressivo que a esquerda democrática sempre condenou_, mas pela crescente globalização do capital e a consequente dificuldade de sujeitá-lo a controle democrático.

Foi nesse contexto que escrevi a paródia: não com a intenção de ridicularizar a esquerda, mas de fortalecê-la por meio da crítica de seus excessos.

Pois excessos têm sido cometidos, sobretudo nos Estados Unidos, onde a esquerda sempre foi marginal e marginalizada, excluída da responsabilidade cotidiana de elaborar um programa político, de defendê-lo e, eventualmente, de implementá-lo.

Nessa situação de impotência, exacerbada nos anos 80 e 90, a esquerda norte-americana se fragmentou. Reduzimo-nos a uma coleção de lutas setoriais _negros, latinos, mulheres, gays, operários_, todas valorosas, mas sem ligação estratégica entre si.

Pior, uma parte da esquerda intelectual fechou-se no ambiente universitário, em que as lutas intestinas da profissão substituíram a verdadeira política: na frase memorável do sociólogo Todd Gitlin, ''marcharam sobre a Faculdade de Letras enquanto a direita tomava a Casa Branca''.

Foi num meio acadêmico cada vez mais voltado para si próprio que, com base em idéias originalmente frutíferas e libertadoras _feminismo e multiculturalismo, por exemplo_, se construiu um novo escolasticismo, representado especialmente pela corrente pós-moderna. Esta, porém, nunca constituiu a totalidade, nem mesmo a maioria, da ''esquerda acadêmica''.

Para cada artigo sobre a transgressividade sexual de Madonna, publicaram-se cinco analisando rigorosamente a desigualdade salarial entre mulheres e homens. Para cada livro escrito em incompreensível jargão desconstrucionista, editaram-se dez de fascinante história social.

Por esse motivo, a reação à minha ''brincadeira'' nos meios esquerdistas norte-americanos foi bem o contrário do que Roberto Campos _cegado por seus preconceitos e imaginando ''patrulhadores'' do politicamente correto atrás de cada esquina_ faz crer. Com exceção daqueles mais diretamente afetados _aqueles apanhados com as calças nas mãos_, a vasta maioria da esquerda intelectual norte-americana apoiou minha intervenção.

Assim, por exemplo, escrevendo em ''The Nation'', a cronista Katha Pollitt opinou que ''essa demonstração do alto coeficiente de vazio nos estudos culturais _o modo como combina a submissão disfarçada à autoridade com o mais alucinado radicalismo de fachada_ é mais do que oportuna''.

A historiadora Ruth Rosen considerou que ''a paródia de Sokal desvendou a hipocrisia praticada por esses pretensos revolucionários culturais. Afirmam querer democratizar o pensamento, mas escrevem propositalmente num jargão exclusivo para uma elite de iniciados. Pretendem que sua obra seria transformativa e subversiva, mas permanecem obsessivamente focados na construção social e linguística da percepção humana, não na dura realidade da vida das pessoas''.

A revista esquerdista ''In These Times'' editorializou que ''a relação entre esses esquerdistas acadêmicos e a sociedade norte-americana se assemelha cada vez mais àquela dos monges clausurados falando e escrevendo para si mesmos em latim. Ao contrário da vociferação conservadora contra a subversão marxista das universidades, o trabalho desses acadêmicos nada ameaça senão a possibilidade de renascimento de uma esquerda intelectualmente vigorosa''.

Todos esses comentadores reconheceram a crise intelectual e estratégica da esquerda e insistiram na necessidade de enfrentá-la com um trabalho sério, baseado nos fatos, na ciência e na razão. Pois a razão e a honestidade intelectual não são propriedade privada nem da esquerda nem da direita.

Num passado não tão distante, as ditaduras militares, desde a Guatemala até a Terra do Fogo, torturavam e assassinavam em nome da ''liberdade'' (a liberdade do lucro, bem entendido). Hoje em dia, o Fundo Monetário Internacional organiza a redistribuição da riqueza dos pobres aos ricos, destruindo as economias do Terceiro Mundo em nome do ''estabilizá-las''. Os sacerdotes do Deus Mercado inventam belos encantamentos para disfarçar seus efeitos sobre os seres humanos.

Não foi por acaso que George Orwell, quem, mais do qualquer outro nesse século, desmascarou e condenou a desonestidade política, viesse de onde viesse, foi sempre um homem da esquerda.

A esquerda começa a reconhecer seus erros _que foram tantos_ e a renovar-se intelectualmente. A direita terá a mesma coragem?



Alan Sokal é professor de física da Universidade de Nova York (EUA). Foi professor de matemática na Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (verões de 1986-88). Tem colaborações científicas em diversos países, incluindo o Brasil (Universidade Federal de Minas Gerais).

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Re: Repercursão do Hoax de Sokal no Brasil
« Resposta #3 Online: 08 de Setembro de 2006, 00:23:31 »
Citar
As razões do relativismo civilizado

Jesus de Paula Assis

Folha de São Paulo, 6 outubro 1996
"Insisto em que todos os escritores que pretendam informar seus leitores fiquem longe da filosofia ou que, pelo menos, não sejam intimidados ou influenciados por causadores de confusão como Derrida..." Paul Feyerabend "Killing Time", cap. 15.



Alan Sokal é um nome em alta nas ciências humanas. Em abril, pregou uma surpreendente peça na revista norte-americana ''Social Text'' na qual, supostamente, pôs a nu a fragilidade do pensamento relativista. A polêmica foi trazida aos leitores da Folha pelo Mais! de 15/09/96. Deixando de lado o pitoresco da história toda, a farsa de Sokal mostra que existe, de fato, ao lado do evidente embuste de uma certa autoproclamada esquerda pós-moderna, uma profunda incompreensão quanto ao que sejam os estudos em filosofia da ciência e qual seu papel para o entendimento da atividade científica.

Primeiro, os fatos. Alan Sokal é professor de física na New York University e remeteu para publicação na revista acadêmica ''Social Text'' um artigo com o incrível título "Transgredindo Fronteiras, Rumo a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica". Sua pretensa argumentação era que as recentes pesquisas em gravidade quântica _um ramo nascente em física teórica_ já teriam profunda influência política libertadora sobre a cultura, pondo definitivamente de lado o que hoje se aceita como método científico (identificado, portanto, com o pensamento conservador). O artigo contém exatas 109 notas de rodapé, nas quais aparecem de Derrida a Paulo Freire. Nenhuma citação foi inventada; todas estão exatamente como figuram nos originais.

Os editores de ''Social Text'' aceitaram o texto para publicação sem reservas. Dias depois, Sokal publicou na revista ''Lingua Franca'' outro artigo, no qual esclarecia que "Transgredindo.." era uma piada.

De fato, apesar das citações corretas, "Transgredindo..." não contém qualquer argumento bem encadeado. São citações esparsas, misturando incorreções científicas e históricas (estas sim, propositadamente inventadas) com a linguagem fátua que caracteriza uma fração do pensamento epistemológico contemporâneo.

Até aí, boa ironia, que não faz mal a ninguém, salvo às incautas vítimas. Mas elas que se danem. O problema começa quando se procura em Sokal informação sobre quem é realmente o objeto da ironia. Aí, a coisa muda de figura. No mesmo saco, aparecem Derrida, Lyotard e Latour, mas também filósofos como Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, articuladores, estes sim, de um pensamento relativista "civilizado", diferente do pensamento (se é que a palavra cabe) relativista ensandecido ou propositadamente obscuro dos outros autores.

Sokal _no artigo publicado em ''Lingua Franca''_ argumenta que "teorizar acerca da 'construção social da realidade' não vai nos ajudar a encontrar um tratamento efetivo para a Aids ou a projetar estratégias para evitar o aquecimento global". E dai? Essa constatação trivial invalidaria esses estudos? Não mais do que afirmar, também trivialmente, que estudos em sismologia não vão ajudar a achar a cura para a Aids. Mas Sokal pensa de forma diferente: está sugerindo que nenhum estudo externo sobre a ciência tem sentido.

Para chegar a isso, usa uma estratégia falha. Logo no início de "Transgredindo...", cita Thomas Kuhn e Paul Feyerabend como autores que "duvidaram da credibilidade da metafísica newtoniano-cartesiana", o que é, no mínimo, grosseiro. Daí, conclui que a idéia de que exista um mundo exterior a nossos pensamentos já não pode ser sustentada; liga tudo isso a Derrida, Lyotard, Ross, Latour e companhia, e conclui afirmando que toda essa tradição intelectual nos força a tomar uma nova direção quanto ao que devemos considerar "ciência". "Social Text" engoliu tudo (com gosto, frise-se) e publicou o artigo.

"Transgredindo..." afirma portanto que existe uma tradição coerente que liga Kuhn a Derrida e isso, simplesmente, não é verdade. O fato de os editores de ''Social Text'' ratificarem a existência dessa linha de argumentação (tanto que publicaram o texto) não ajuda, não a torna real.

Uma coisa é dizer que a ciência natural assenta em bases que têm condicionantes históricos e sociais (relativismo civilizado); outra, é dizer que esses condicionantes são totalmente responsáveis pelo conteúdo das asserções científicas (relativismo enlouquecido). Dizer que a ciência acumula resultados, mas que os problemas sobre os quais se debruça não são sempre os mesmos é civilizado; dizer que cada campo de estudo é fechado em si próprio e que não existe qualquer termo de comparação entre eles, devendo todos, portanto, ser julgados em pé de igualdade, é bárbaro. Existe quem defenda essa barbárie, quem também veja machismo na matemática, em afirmações como 1+1=2. Mas frise-se que bárbaros existem em qualquer meio e são uma praga da qual a física também não está isenta.

Na verdade, a peça que Sokal chama de "modesto experimento" é completamente enviesada. ''Social Text'' é uma obscura revista norte-americana, um gueto da pós-modernidade que professa o que se chama acima de relativismo enlouquecido. Do fato de se dizerem relativistas (sem mais adjetivos), não segue que o sejam. Não mais do que a afirmação de alguns políticos de que são marxistas impute automaticamente toda bobagem que digam a Marx. Se Sokal tivesse remetido "Transgredindo..." para uma revista científica de primeira linha (como ''Synthese'' ou ''Social Studies of Science'', só para citar dois exemplos), revistas que aceitam e publicam artigos de tendência argumentativa relativista (civilizada), é quase certo que o destino de suas páginas seria o lixo. Mas isso enfraqueceria seu "modesto experimento". Mas então, que experimento é esse que escolhe um adversário fraquíssimo e obscuro, vence-o e afirma que a vitória implica a derrocada de tudo o que (mesmo remota e enviesadamente) é defendido pelo oponente? Procurando um pouco, não seria difícil para Sokal achar uma pequena revista de física, a qual publicaria um artigo seu eivado de bobagens, unicamente por ser ele professor de uma universidade prestigiosa. E o que isso provaria? Que a física contemporânea deveria ser desacreditada? É evidente que não. O "modesto experimento", assim, deve ser colocado exatamente como é: modesto, modestíssimo. Provou que uma revista obscura e sem importância é também intelectualmente fraca. Parabéns.

Apesar disso, da evidente fragilidade de toda argumentação _isto é, do artigo original, mais o artigo que entrega a farsa_, não faltam entusiastas. Steven Weinberg, Prêmio Nobel de Física, saúda Sokal, dizendo que ele teria desnudado uma perniciosa tendência que mina a ciência contemporânea ("New York Review of Books", 8/8/96 e 3/10/96). Ou seja, desbancado o relativismo (o civilizado sai pelo ralo junto com o resto, claro), quem pode, portanto, com autoridade, falar sobre ciência? Apenas cientistas naturais ou filósofos que concordem inteiramente com eles. É o que Sokal tem em mente quando escreve que "teorizar acerca da 'construção social da realidade' não vai nos ajudar a encontrar um tratamento efetivo para a Aids...". Existe implicada na afirmação uma grosseira confusão entre ciência e estudo sobre ciência. Uma ciência natural (a física ou a biologia) estuda o mundo natural, procura determinar regras que tornem esse mundo compreensível e que tenham certo caráter preditivo. A sociologia da ciência ou a filosofia da ciência não tomam como objeto de estudo o mundo natural, mas a própria atividade científica. Portanto não há nada de surpreendente em que estudos em filosofia ou em sociologia da ciência não tragam a cura para a Aids. O que surpreende é que haja quem se entusiasme com uma conclusão tão pueril.

No fim de contas, o "modesto experimento" acaba sendo usado para invalidar toda uma importante tradição de pesquisa. Se se quer compreender a ciência contemporânea, é preciso levar em conta que o significado da expressão "atividade científica" varia com o tempo. Conforme a época, diferentes são os problemas estudados, diferentes são os métodos usados para pesquisá-los e diferentes são os valores atribuídos a cada enfoque. Se não se levar isso em consideração, corre-se o risco de julgar que o mundo sempre foi visto com os mesmo olhos e que só o presente fornece explicações aceitáveis para os fenômenos naturais. Pacientes estudos históricos foram mostrando essas variações de matiz entre problemas e métodos usados em diferentes épocas e tradições. Esses estudos acumulados pedem alguma explicação: como definir, então, a atividade científica?

Se nem sempre os problemas e os métodos foram os mesmos, deve-se concluir que a imagem em que a ciência natural (mais especificamente, a física) aparece como um contínuo que acumula teorias é falsa e torna-se tarefa importante encontrar algum modelo alternativo para compreender seu desenvolvimento. No extremo oposto, não se pode considerar cada época (ou cada teoria) um todo fechado em si mesmo, incomunicável, pois isso iria de encontro ao fato mais que evidente de que existe uma continuidade histórica de pesquisa científica. É assim razoável supor que o caminho está em encontrar um modelo para o desenvolvimento científico que leve em conta tanto o que existe de comum como o que existe de incomensurável entre diferentes épocas e disciplinas científicas, que veja as continuidades, mas que não deixe de consignar os pontos irredutíveis e intraduzíveis presentes em qualquer transição entre teorias científicas. E esse passo rumo à civilidade _entendida aqui como o esforço honesto para compreender melhor a cultura_ é descartado simplesmente porque alguns grupos de autores são propositadamente obscuros ou delirantes e porque um subgrupo destes caiu em uma bem-tramada emboscada.

Mas devemos ser equilibrados: não apoiar a evidente fatuidade de ''Social Text'' e dos autores que a orbitam, nem se entusiasmar com o modesto experimento de Sokal. E esse ponto de equilíbrio se nutre das boas lições do relativismo. Mas apenas do civilizado.

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Re: Repercursão do Hoax de Sokal no Brasil
« Resposta #4 Online: 08 de Setembro de 2006, 00:24:40 »
Citação de: Olavo de Carvalho
Sokal, parodista de si mesmo

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 21 outubro 1996
De cada nova série de vexames, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal

Tendo enviado a uma revista sociológica de esquerda um artigo de puro ''nonsense'' em jargão academês, para ver se o publicavam, o físico Alan Sokal acrescentou ao seu currículo o título de humorista. A ''Social Text'', caindo no engodo, ainda se melou toda ao procurar se justificar.

Mais que para simples divertimento, a proeza serviu para mostrar a inépcia intelectual da esquerda acadêmica. Roberto Campos, em artigo publicado na Folha (22/9), sublinhou o valor do experimento, que evidenciara a nudez real de uma das comunidades mais pretensiosas deste mundo. É surpreendente que agora apareça Alan Sokal dizendo (6/10) que Campos o interpretou pelos olhos ''de um cego preconceito''.

''A paródia'', proclama Sokal, ''não teve a intenção de ridicularizar a esquerda, mas de fortalecê-la pela crítica de seus excessos. Com exceção daqueles mais diretamente afetados _daqueles apanhados com as calças na mão_, a vasta maioria da esquerda intelectual norte-americana apoiou minha intervenção.'' O grosso da esquerda ''começa a reconhecer seus erros, a se renovar intelectualmente'', e Campos é que distorceu tudo ao enxergar no caso um vexame global.

Mas essa argumentação é um tanto bizarra. Um autor que desejasse edificar o pecador pela crítica de seus excessos, sem torná-lo alvo de riso, faria dele objeto de exortação, de análise ou coisa assim. Jamais de paródia, um gênero que consiste precisamente em expô-lo ao ridículo pela imitação de seus trejeitos. Quanto a saber se o objeto da paródia sairá enfraquecido ou fortalecido, nenhum comediógrafo experiente buscaria controlar a esse ponto um efeito que depende inteiramente da livre reação moral da vítima. Ela pode aproveitar o estímulo para se regenerar ou então torná-lo ocasião de se expor a um ridículo maior ainda, exatamente como fez o diretor de ''Social Text'', arrastando de cambulhada, como bem viu Campos, muitas revistas congêneres. Se o ridículo produzido por Sokal foi impremeditado, isso só mostra que o humorista principiante está sujeito ao risco de se tornar personagem, no papel daquele marinheiro que, na privada, apertava o botão da descarga no preciso instante em que o navio era atingido por um torpedo.

Que alguns esquerdistas aplaudam ''ex post facto'' a paródia não prova que estejam livres dos vícios que ela denuncia. Prova apenas que não se solidarizam com colegas de militância apanhados em flagrante delito de vexame. Entregar os anéis para salvar os dedos não é nenhuma renovação intelectual, é apenas uma velha esperteza.

A esquerda, com efeito, tem vivido de denunciar seus próprios erros desde o dia em que, na Revolução Francesa, reconheceu a utilidade de guilhotinar um guilhotinador _um ato que elevou às nuvens o prestígio do movimento e lhe deu cacife para continuar guilhotinando a quem bem entendesse. Desde então, cada nova geração do esquerdismo nasce da orgulhosa proclamação do descrédito da anterior. O próprio marxismo emerge de uma crítica arrasadora dos erros da esquerda. De Robespierre a Alan Sokal, as moscas mudam, mas _como direi?_ a caravana passa: de cada nova série de vexames, horrores e fracassos, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal e imbuída de seu direito a infindáveis créditos de confiança, tanto mais renováveis quanto mais o débito entra sempre na conta da administração anterior. Sokal é apenas mais um oficiante do antigo ritual cíclico em que a esquerda se realimenta, dialeticamente, da sua própria negação.

Para cúmulo, Sokal procura minimizar o alcance de sua própria crítica, afirmando que só atacou uma minoria. Mas como explicar que a crítica a uma fração minoritária tenha provocado tamanha celeuma senão por essa fração ser representativa do todo? Sokal admite que seu artigo citava um rol de bobagens ditas ''por proeminentes intelectuais'' _e ninguém é proeminente por receber somente o aplauso da minoria. Derrida, Foucault, Lyotard, Lacan, Deleuze não são objetos de culto de um miúdo igrejório provinciano: são ídolos da ''intelligentsia'' mundial. Ridicularizados, comprometem necessariamente a falsa imagem de respeitabilidade intelectual da esquerda como um todo. Não há escapatória.

Sokal poderia ter preservado ao menos sua própria respeitabilidade, se não mostrasse ter a tradicional propensão da esquerda a julgar seus atos apenas pelas intenções alegadas, pulando fora da responsabilidade pelos efeitos reais, por mais previsíveis que sejam. Mas ele preferiu superar, como humorista involuntário, seus dons de parodista. Pois o ar de inocência com que um autor de paródia declara não ter tido intenção de ridículo faria dele um autêntico ''pince-sans-rire'', se não soubéssemos que ele acredita no que diz, e que, no caso, acreditar no que diz é admitir que não sabe o que faz.



Olavo de Carvalho, 49, jornalista, é autor de ''O Jardim das Aflições: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil'' e de ''O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras''.

 

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