A metafísica concreta do medo
Para alguns teóricos – como os discípulos de um Carl Gustav Jung – o imaginário é um tipo de todo uniforme e regular. Como uma paisagem sem acidentes, a planície perpétua do imaginário se estenderia de um ponto geográfico a outro, de uma mente a outra e, em alguns casos, de um povo a outro: um conto popular aqui se repetindo como narrativa oral acolá. Trata-se de uma teoria fascinante, mas cujo encanto é superficial: apesar de todas as semelhanças, o “terreno” do imaginário não é regular, muito menos uniforme. Mas qual seria a explicação para determinados padrões constantes na esfera da atividade imaginativa humana além da crença em um repositório de formas, qual guarda-roupa imaginativo universal, à disposição em algum ponto esquecido da psiquê? É evidente que Jung pensava em um repositório codificado naquilo que, para sua mente de médico e cientista do início do século XX, constituía a única possibilidade de armazenamento de informações culturais de uma forma mais visceral: o sangue e o solo (ou, resumidamente, a raça). Nesse caso, explicações que utilizam um background menos determinista são bem mais interessante: as narrativas se repetem, em parte, porque os fenômenos que as originaram – ainda como mitos de origem, ritual e evocação – são semelhantes em todos os quadrantes do mundo, especialmente a experiência decisiva da morte. Além disso, a descrição do universo exterior ao indivíduo, que, para ser controlado – e distinguido do interior –, exige um esforço sistemático de enquadramento de todos os seus fenômenos. Diferentes linguagens surgem nesse processo, tanto para fenômenos cotidianos e já controlados pela experiência, como para fenômenos novos e ainda não adequadamente classificados em todas as instâncias possíveis da experiência. O florescimento dessa linguagem supernatural – utilizemos esse nome – logo toma de assalto o imaginário e consolida as imagens prototípicas – e não arquetípicas – que, em pouco tempo, serão de conhecimento e usufruto de todos de dada cultura.
É assim que surgem fantasmas e assombrações de mortos no Japão e no Haiti, na Alemanha e na Patagônia. Mas cada história é distinta, embora seja axiologicamente a mesma: os jumbees haitianos não são iguais ao mito do Doppelgänger alemão. As marcas do desenvolvimento histórico de cada cultura humana marca a distinção dos seres imaginários e sua dispersão pelo mundo.
No Japão, a tradição ainda oral e folclórica ligada a seres sobrenaturais – demônios, raposas (lá consideradas seres místicos), fantasmas e aparições – sempre foi abundante, fosse de corte religioso (alegorias morais budistas) ou profano. Esse rico material foi compilado, ampliado, editado e manipulado muitas vezes desde o início da cultura escrita no Japão: um dos mais criativos e inventivos foi Ueda Akinari (1734-1809). Seus Contos da Chuva e da Lua (em japonês, Ugetsu Monogatari, cuja publicação data de 1776) que retomam o formato dos contos compilados clássicos (os monogatari) mas atualizando-lhes a forma, está a par e passo do ressurgimento, pelas mãos de autores como Jacques Cazotte, da literatura fantástica no Ocidente, pois o clássico de Cazotte nesse gênero, Le Diable Amoureux, foi publicado em 1772. Mas nos contos de Akinari, o fantástico que lemos é de uma natureza diferente. É bem verdade que ainda estão lá as aparições, os fantasmas, as possessões, os demônios, as vinganças post mortem. Mas o universo fantástico dos contos de Akinari é, ao mesmo tempo, mais vago (muitas traduções utilizam o adjetivo “vago” na tradução de Ugetsu Monogatari) e muito menos ambíguo. Por sua natureza vaga, o conto sobrenatural japonês – ao menos, em seu formato “clássico” ou diretamente vinculado aos ciclos narrativos medievais do Japão – alcança dimensões muito mais amplas, ultrapassando até os níveis alegóricos: isso permitiu que o cineasta Kenji Mizoguchi realizasse uma leitura fílmica extremamente particular de Ugetsu Monogatari que, de certa forma, ainda preservou muito da atmosfera do livro.
Por outro lado, a ambigüidade é deslocada e repostulada em outros termos: não se trata da dúvida diante da existência ou não de uma acontecimento sobrenatural, mas diante da amplitude das conseqüências que esse súbito entrecruzamento de distintos universos (o factível e o sobrenatural) pode ter: assim, as personagens coabitam com aparições de mortos, em edifícios arruinados, por anos, até descobrirem o engodo e perceberem como a realidade sonhada e a realidade vivida parecem compartilhar da mesma matéria. Nessa situação, tais personagens tendem a repensar sua vida antes e depois do embate fantasmagórico: muitos enlouquecem, outros saem fortalecidos e profundamente mudados, física e mentalmente. Mas a aura alegórica não anula a materialidade da ameaça que a aparição sobrenatural representa para as personagens: os fantasmas exigem sacrifícios em forma de carne e sangue – ou sanidade. Esse universo – que logo chegou ao campo visual graças aos trabalhos de artistas como Hokusai – no qual a vida vivida pode ser a vida sonhada e no qual ambas possuem peso semelhante e materialidade inegável sobreviveu e continua marcando a ficção terrorífica japonesa mesmo nos dias de hoje: sucessos como Ringu apresentam todas as características que enumeramos aqui, atualizadas com o registro tecnológico. Mas ainda existe os non sequitur de tramas que não obedecem uma lógica narrativa que obedeça o primado da verossimilhança, a natureza ilusória da vida diante do peso material do sobrenatural, a mortal substância de uma ameaça que, aparentemente, parece saída de uma alucinação. As noções budistas de que a realidade circundante ao homem é mero embuste serviriam de combustível para lendas, elas mesmas perfeitas narrativas de terror, por sua vez adaptadas para o cinema por Kaneto Shindo, Onibaba (1964) e Kuroneko (1968), transformando-se rapidamente em filmes demiúrgicos e renovadores das matrizes dos filmes de terror, gênero em constante risco de recair na banalidade
Donos de formas teatrais extremamente estilizadas e complexas – como o teatro nô, kabuki e bunraku –, os japoneses sofisticaram, pelo viés minimalista, a máscara de seus monstros através da expressividade pura. Essas máscaras, muitas delas de fato assustadoras, constituem – com suas cores, traços, estilização etc. específicos – um dialeto sígnico, fluente para os iniciados e evidente para aqueles que assistem a peça pela primeira vez. Essa excelência na representação por expressões se manteve no cinema: mesmo em alguns episódios da série popular National Kid, com todo seu non sense involuntário, uma máscara de maquiagem branca e negra, destacada pela expressividade do ator, indica claramente ao espectador a presença de um vilão razoavelmente terrível. A estilização persiste como traço por excelência de filmes de terror japoneses modernos: tanto Ringu quanto Ju-on têm seus momentos culminantes quando a aparição se arrasta, de modo anti-natural, para agarrar a presa humana. Mas, talvez, os dois momentos máximos de estilização visual do horror no cinema japonês sejam o já citado Ugetsu Monogatari na adaptação de Mizoguchi e Kwaidan de Masaki Kobayashi (1964). Nesse sentido, Kwaidan surge não apenas como a mais bela experiência visual do cinema de terror japonês, com uma fotografia colorida de elaboração e beleza barrocas, mas como um dos mais interessantes e originais filmes de terror dos anos 1960, rivalizando qualitativamente com as grandes e demiúrgicas obras produzidas nessa década, que serviriam de parâmetro – e como fonte de imitações – de sucessivas gerações de cineastas do cinema de terror: Psycho, de Alfred Hitchcock (1960); Pepping Tom, de Michael Powell (1960); The Innocents, de Jack Clayton (1961); The Haunting, de Robert Wise (1963) e Rosemary\’s Baby, de Roman Polanski (1968).
Curiosamente na produção fílmica – anterior e posterior a Kwaidan – do diretor Masaki Kobayashi há poucos indícios de um interesse especial pelo fantástico. Alguns dos melhores filmes do diretor são dramas sociais terríveis ambientados ao final da “era dos samurais” (Seppuku), dramas históricos sobre lutas de diferentes clãs ao final da Idade Média japonesa (Jôi-uchi: Hairyô Tsuma Shimatsu) e mesmo dramas revelando o desumano tratamento que o exército nacionalista japonês dava aos chineses durante a Segunda Guerra Mundial (sua trilogia Ningen no joken ou, na tradução para o inglês, Human Condition, um de seus grandes êxitos comerciais e artísticos). Filmado logo depois de Seppuku, Kwaidan tomaria dois anos de trabalho de produção, em geral concentrado nos imensos estúdios da Toho: o diretor realista pode liberar completamente sua fantasia em composições magníficas que aludem aos grandes quadros da arte japonesa.
Se a escolha de um diretor tradicionalmente associado a películas de realismo social para a direção de um filme de terror fantástico foi curiosa, a obra original – adaptada por Yôko Mizuki – também possuía suas peculiaridades. Kwaidan: Stories And Studies Of Strange Things, foi uma coletânea de contos, publicada em 1905, amplamente baseados em contos sobrenaturais japoneses de diversas épocas coligidos pelo escritor Lafcadio Hearn. O tom geral da obra é assemelhado aos tomos dos irmãos Grimm coletando os contos populares da Alemanha e da Europa Central: algumas narrativas são adaptações diretas de textos mais antigos, retrabalhados (com a provável ajuda, nos aspectos específicos da tradução, da esposa de Hearn, Setsu Koizumi); outras, reminiscências pessoais do autor, baseados em histórias que ouvia cotidianamente; um terceiro grupo, lembranças de infância que Hearn transformou em ficção já aclimatada. Descendente de gregos e irlandeses, Hearn, após uma temporada nos EUA, migraria para Japão inicialmente como correspondente jornalístico. Logo, a paixão pelo país que descobrira o levaria a adotar uma identificação completa com ele: torna-se professor da Escola Normal de Matsue (posteriormente, as autoridades japonesas homenagiariam o escritor com dois monumentos nessa cidade) e, após se casar com a filha de samurais Setsu Koizumi, niponisa-se definitivamente, trocando o nome para Koizumi Yakumo ao obter a cidadania japonesa. Apesar dessa identidade e desse amor pela cultura japonesa, o autor ainda mantinha, talvez inconscientemente, o fascínio bem ocidental pelas ghost stories, tão populares a partir de meados do século XIX, trazendo-as das tradições orientais para um formato narrativo do conto de terror/conto popular, realizando um belo mix entre premissas e conteúdos de ambas as culturas.
É igualmente verdade que esse mix não estava livre de becos sem saída ideológicos, como a tendência forte nos ao exotismo gratuito que existe em suas narrativas orientais, ressaltada por críticos (um dos mais conhecidos foi George Orwell). É preciso ressaltar, contudo, que Hearn não é antropólogo, mas narrador: a paralaxe, a distorção de ponto de vista, que a própria escolha de um formato narrativo impõem, traz à tona o exotismo, pois, nos contos, mesmo paisagens cotidianas e prosaicas, alteradas pelo ponto de vista narrativo, são transfiguradas como exóticas. De qualquer forma, o filme de Kobayashi é a melhor resposta ao argumento raso de Orwell e sua ingênua visada anti-colonialista: nas mãos do diretor japonês, a narrativa adquiriu a fluidez visual da grande arte japonesa (poética, musical, visual, narrativa e, mesmo, caligráfica). Para aqueles que desconhecem a fonte do filme e a obra de Lafcadio Hearn, trata-se de uma obra visceralmente japonesa, no seu sentido mais tradicional que essa expressão pode ter.
A abertura do filme já sugere seu tom simultaneamente poético e sombrio: massas fluidas, líquidas, multicoloridas (tons de preto, azul e vermelho) deslizam por um fundo branco, enquanto os nomes da equipe e os títulos dos quatro contos são enumerados. Dos 20 contos que constam do livro de Hearn, Kobayashi e seu roteirista, Yôko Mizuki, escolheram dois, (os episódios restantes são visões pessoais do universo de Hearn) os quais puderam estender e “traduzir” com imensa eficácia cinematográfica ao longo dos 161 minutos de filme. O primeiro episódio é “O Cabelo Negro”: um jovem e empobrecido samurai abandona a esposa para assumir um cargo (e um matrimônio) bem mais vantajoso no interior. Mas a felicidade fornecida pelo conforto e pela riqueza parecem insuficientes para o samurai: ele despreza a nova esposa, recusando-se a compartilhar o leito nupcial. Findo seu tempo de contrato como funcionário, divorcia-se da nova esposa e volta para a antiga, cujo amor nunca esqueceu. A velha propriedade na qual morava parece um pouco dilapidada, mas o cômodo no qual a esposa trabalhava com seu tear manual parece não ter mudado absolutamente nada com o passar de tempo, o mesmo valendo para a esposa, cujo cabelo negro e denso continua sedoso e brilhante. A esposa regozija-se por ter seu amado de volta “nem que seja por poucos momentos”, mas o samurai assegura-lhe que a volta será “pela somatória de sete vidas”. Dormem naquele que foi o pobre leito nupcial, e a sugestão de que ambos estavam com bem pouco sono indica que o samurai e sua amada tiveram uma noite sexualmente ativa. Pois é um clima de insatisfação sexual que domina esse primeiro episódio: uma elipse, após o comentário do casal recém unido de que “não estavam com sono” e preferiam estar juntos, temos o rosto – satisfeito – do samurai atingido pelo sol da manhã. Só nesse momento percebe que a casa está completamente destruída e em ruínas miseráveis:
trata-se de um topos muito conhecido da narrativa sobrenatural japonesa, imortalizado no cinema pelas seqüências finais do episódio que costura as narrativas do já citado Ugetsu, de Mizoguchi, e que demarca a impossibilidade de se separar a realidade daquilo que é sonho (ou pesadelo), para além de qualquer efeito de ambigüidade tão apreciado no Ocidente. Mas as opções de Kobayashi nesse primeiro episódio de Kwaidan destroem esse frame de terror poético: o samurai, com uma perfeita máscara nô de loucura, vê o corpo morto da amada e seus cabelos, simulacro de serpentes, a perseguí-lo, dotando tudo de um equivocado ar involuntariamente cômico. Tratou-se de sobrecarregar a mensagem de índices fantasmagóricos, coisa que seria completamente dispensável, pois a fotografia e a inteligente manipulação de ruídos de áudio – os ruídos e a ação estão clivados, o que acentua a irrealidade da loucura que o marido testemunha nos momentos finais do episódio – já dotavam o clímax do episódio de toda aura sobrenatural que necessitavam.
No segundo conto, “A Mulher da Neve”, o melhor de todos em nossa opinião, temos uma explosão selvagem de visualidade feroz, expressionista. Trata-se de um universo complexo, com seus lagos gelados e tempestades de neve, inteiramente construído em estúdio. O céu que vigia os protagonistas do episódio é pintado com afrescos à la Dalí de olhos multicoloridos. A trama sonora, urdida pelo genial compositor Tôru Takemitsu – colaborador usual de grandes cineastas e responsável em parte pelo tremendo impacto renovador na cinematografia fantástica causado pelos filmes de outro grande realizador, Hiroshi Teshigahara – é mais discreta, mas usualmente eficaz. Não há sinal, nessa segunda narrativa, de dispositivos narrativos de sobrecarga, que empobrecem a conclusão do primeiro episódio: a trama flui sem interferências nem exageros caricatos. O episódio, aliás, segue bem de perto o conto de Hearn e é um exemplo magnífico de uma bela adaptação cinematográfica de um texto literário. As interferências e diálogos são resumidos ao mínimo funcional, fazendo valer o ditado japonês que Hearn cita nesse conto: “Quando há desejo, os olhos falam mais que a boca”. Esse fino jogo de olhares e desejo alcança o clímax na longa seqüência na qual a “senhora da neve”, transmutada em moça interiorana, lava os pés para adentrar o tatame central da casa de Minokichi: são olhares de desejo oblíquos e velados, além de sugestões de sedução veladas por rituais sociais.
