Isso sim é programa social de verdade.
O "Fome Zero" americano
Domingo, 27 de agosto de 2006
O sistema deixa de lado o assistencialismo e busca criar oportunidades de trabalho. Eis um bom exemplo para o Brasil copiar
Felipe Seibel
Os Estados Unidos estão comemorando neste mês o aniversário de dez anos da implantação de uma das mais bem-sucedidas e engenhosas políticas sociais do mundo. Batizada de workfare ("caminho para o trabalho", numa tradução livre), a política em questão é uma forma diferente de ajudar os desempregados das camadas mais pobres da sociedade. Nada de assistencialismo -- a idéia é capacitar a população carente para que possa encontrar emprego. Pelas regras do workfare, o Estado americano se compromete a ajudar os mais pobres, mas nenhum outro programa exige tantas contrapartidas em troca do cheque do seguro-desemprego. Além de assegurar a saúde dos filhos e a freqüência deles à escola, os beneficiados são obrigados a participar de seminários de capacitação profissional e outras atividades que têm o objetivo de facilitar sua reintegração ao mercado de trabalho. Os que não cumprem essa agenda têm o auxílio cortado. Quem consegue emprego com remuneração suficiente para cobrir as necessidades da família também deixa a rede de proteção. Quando o salário ainda é muito baixo, o sistema de benefício social complementa a renda. Cada trabalhador pode recorrer ao mecanismo de socorro por um prazo máximo de cinco anos.
O saldo do programa é impressionante. Ao longo de uma década, o número de famílias que recebem benefícios sociais nos Estados Unidos caiu de 5 milhões para 2 milhões. Nesse mesmo período, aumentou a participação no mercado de trabalho das pessoas que historicamente mais dependem dessa ajuda. Entre as mães com filhos até 1 ano de idade, por exemplo, o índice de pessoas empregadas subiu de 60% para 70%. Segundo especialistas, a relação entre os fatos não é mera coincidência. "O workfare resolve dois problemas enormes", afirma o sociólogo José Pastore, um dos maiores estudiosos do Brasil em mercado de trabalho. "Alivia os ombros do Estado, que não suporta mais arcar com a pesada conta do pagamento dos benefícios, e diminui o desemprego."
O workfare nasceu nos Estados Unidos com base em idéias dos políticos do Partido Republicano, tradicional adversário de programas assistencialistas. Por ironia, os democratas, historicamente mais resistentes a mudanças na concessão de benefício social, implementaram a nova política durante o governo do presidente Bill Clinton. A iniciativa foi movida a puro pragmatismo -- hoje há 3 milhões a menos de famílias penduradas no sistema social, o que gera economia de 37 bilhões de dólares por ano no pagamento de benefícios. Os republicanos não só mantiveram a política ao chegar ao poder como continuam preocupados em melhorar o sistema (ou endurecê-lo ainda mais, na visão dos críticos).
De acordo com projeto de lei que aguarda aprovação do Senado, o beneficiário só terá direito ao salário-desemprego integral se cumprir uma carga mínima de 40 horas semanais com trabalho e cursos profissionalizantes (a exigência hoje é de 30 horas). O principal defeito apontado pelos opositores do workfare é que, pressionadas pelos prazos do sistema, as pessoas acabam aceitando subempregos, o que não ajuda a tirá-las da linha da miséria. Para o governo, pior do que ter um emprego com baixo salário é não ter nenhum. Além disso, argumentam os defensores da idéia, mesmo que as vagas sejam de segunda linha, elas podem funcionar como porta de entrada para os desempregados iniciarem uma nova carreira.
O sistema americano está sendo observado com muita atenção por outros países, sobretudo na Europa, onde boa parte das economias perde competitividade e já não suporta mais manter a generosa teia de bem-estar social bancada pelo Estado, o chamado welfare state. A Inglaterra foi um dos primeiros países a escapar dessa armadilha, nos tempos da dama de ferro Margaret Thatcher, no final da década de 70. Atualmente, é também o que tem o modelo mais parecido ao do workfare americano. Batizado de New Deal, foi implantado pelo primeiro-ministro Tony Blair, em 1997. É voltado principalmente para desempregados entre 18 e 24 anos. De acordo com a lei, para ter acesso ao seguro-desemprego, o jovem deve fazer uma entrevista numa das agências estatais de emprego, onde receberá ajuda de um conselheiro por quatro meses para obter um trabalho. Caso não consiga nada nesse período, terá de trabalhar como voluntário na manutenção de edifícios públicos ou fazer novos cursos de capacitação profissional, entre outras opções.
Até mesmo a Dinamarca, símbolo mundial da política social de gordos benefícios sociais aos excluídos, vem migrando para um modelo um pouco mais parecido com o americano. No país, a partir da década de 90, houve redução de nove para quatro anos no tempo máximo da concessão de benefícios. A exemplo dos Estados Unidos e da Inglaterra, eles só são pagos hoje aos cidadãos que participam de programas de recolocação profissional. O salário-desemprego também pode ser interrompido caso o beneficiário recuse ofertas de trabalho. Os resultados da política dinamarquesa têm sido tão positivos quanto os do workfare. Nos últimos anos, o número de beneficiários do seguro social caiu de 343 000 para 123 000, queda explicada em larga medida pelas pessoas que conseguiram voltar ao mercado de trabalho.
São iniciativas que precisam ser olhadas com atenção por aqui. Na história recente do Brasil, o que parecia ser uma grande novidade na área de assistência social revelou-se um enorme fiasco. Anunciado com tremendo estardalhaço, o Fome Zero era o carro-chefe do governo Luiz Inácio Lula da Silva. O projeto pretendia distribuir cartões-alimentação, com os quais os pobres poderiam sacar 50 reais por mês para a compra de comida (dentro de uma cesta básica definida pelo governo). A idéia mostrou-se cara, pouco eficaz e impossível de ser fiscalizada -- e acabou abandonada. Chama-se agora Bolsa-Família o projeto que unificou os quatro programas de transferência de renda existentes desde os tempos de Fernando Henrique Cardoso (Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Cartão-Alimentação e Auxílio-Gás). Além de racionalizar o sistema por meio de um cadastro único, o governo atual ampliou o valor dos benefícios. Hoje, o valor pago pelo Bolsa-Família varia de 15 a 95 reais -- era de 15 a 45 reais na época de FHC.
Apesar das melhorias implementadas, o Brasil segue na contramão mundial das tendências de políticas sociais. Enquanto economias muito mais robustas, como a americana e a inglesa, estão preocupadas em gastar menos dinheiro com benefícios e criar mecanismos para inserir rapidamente os excluídos no mercado de trabalho, o governo Lula multiplicou o dinheiro dos programas sociais, mas negligenciou as contrapartidas exigidas aos beneficiários. Em 2006, serão gastos na área 12 bilhões de reais, recorde histórico e quase o dobro do montante disponível há três anos. Parece altamente lógico investir o que for possível num país com o nível de miséria e de desigualdade do Brasil. Mas o mecanismo atual tem vários problemas. Até hoje, depois de quase dois anos de implementação do Bolsa-Família, o Ministério da Saúde ainda não tem dados de quase 60% das famílias que deveriam ser monitoradas na utilização dos benefícios. "As regras são frouxas e a fiscalização é muito falha", afirma Pastore.
Há outros furos importantes na atual política social brasileira. Existem atualmente 30 programas de transferência de renda no governo de Lula, mas nenhum deles vincula a concessão do benefício à participação da pessoa em programas de capacitação profissional. "Quando o auxílio não abre uma porta de saída do sistema, esse investimento deixa de ser política social e vira mero assistencialismo", afirma o economista Roberto Macedo, consultor do BID e do Banco Mundial. Não é de estranhar que, apesar do aumento do gasto na área social, a taxa de desemprego no país, na casa de 10%, tenha permanecido praticamente inalterada nos últimos quatro anos -- exatamente o contrário do efeito workfare nos Estados Unidos. Está aí, portanto, um bom tema para o debate dos candidatos à Presidência. Como combater com poucos recursos o imenso fosso social existente no país? Em vez de reinventar a roda, talvez seja o caso de simplesmente copiar uma idéia que está dando certo.
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Menos benefícios, mais empregos
Nos últimos dez anos, caiu o número de famílias que recebem benefícios sociais nos Estados Unidos...
1995 --- 5 milhões
2005 --- 2 milhões
...e aumentou a participação no mercado de trabalho das mães com filhos de até 1 ano de idade, um dos principais públicos do sistema de auxílio do governo
1995 --- 60%
2005 --- 70%
Fontes: Annual Report to Congress e Brookings Institution
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Devemos copiar o modelo americano?
Dois especialistas em mercado de trabalho comentam a viabilidade de o Brasil adotar uma política assistencial parecida à dos Estados Unidos
José Pastore, pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo
Sim
No Brasil, não há critérios muito específicos para a concessão de benefícios. O workfare é um sistema mais eficiente de distribuição de recursos sociais do que políticas como o Bolsa-Família
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Roberto Macedo, consultor do BID e do Banco Mundial
Sim
No Brasil, o governo exige poucas contrapartidas quando concede benefícios. O workfareresolve bem essa questão. Poderia ser implementado por aqui com base em testes piloto realizados em algumas cidades.