tendo perdido meu tempo lendo a porcaria mal-copiada do Spamtantino, tente ler o que segue sobre o livro de Faria, un tío un poco facha y muy tonto.
Estudo publicado na espanha e no chile acusa ex-presidente chileno de anti-semitismo e distorce as idéias de salvador allende sobre medicina higienista, eutanásia e homossexualismo.
Ainda guardamos na lembrança a confusão que Víctor Farías, professor da Universidade Livre de Berlim e ex-aluno de Martin Heidegger, causou no seio da comunidade intelectual francesa, ao publicar, em 1987, um livro no qual pretendia interpretar o conjunto da obra do filósofo alemão pelo apoio de Heidegger ao regime nazista. Sua metodologia era no mínimo discutível pois consistia em validar convicções íntimas sem questioná-las ao mesmo tempo que arrogava uma abordagem arquivística acadêmica.
Como de fato Heidegger havia sido nazista e, desde 1945, inúmeros trabalhos traziam novas provas disso, Farías obteve grande simpatia na França. Tomado por essa paixão de vingança, colocou na cabeça, em seu último livro, que iria dessacralizar a história de seu país de origem. Desta vez, pretendendo provar que Salvador Allende, morto em 11 de setembro de 1973, após ter combatido a junta militar dirigida por Augusto Pinochet, na realidade seria adepto da solução final, anti-semita, homofóbico e perseguidor das raças inferiores; enfim, um nazista disfarçado de socialista.
Para compreender como Farías pôde chegar a tal desvio, é necessário voltar a 1933. O jovem Allende, então com 25 anos, defende na Universidade de Santiago tese para a obtenção do diploma de medicina. Já engajado na esquerda socialista, ele havia escolhido como tema higiene mental y delincuencia. A dissertação está disponível no site da Fundação Salvador Allende (
www.mssa.cl/fundacion).
Como a grande maioria dos médicos higienistas de sua geração, formados na teoria da chamada "hereditariedade-degenerescência", importada para o continente latino-americano desde o começo do século XX, o jovem Allende acreditava que cada indivíduo desviante possuía "taras", ligadas tanto a uma condição dita "racial" quanto a traços de caráter ou ainda a doenças "hereditárias" (alcoo-lismo, tuberculose, doenças venéreas). Para tratar o conjunto dessas patologias que, pensava-se na época, levavam ao crime ou à delinqüên-cia, ele preconizava a criação de um higienismo de Es-tado. E para os homos-sexuais, propunha - citando o caso da escola alemã - um tratamento endocrinológico.
Na Alemanha, foram os médicos adeptos do iluminismo - Rudolf Virchow (1821-1902), por exemplo - que inventaram a biocracia, ou seja a arte de governar os povos pelas ciências da vida. Conservadores ou progressistas, esses homens de ciência haviam tomado consciência dos danos que a industrialização causava à alma e ao físico do operário explorado nas usinas insalubres. Hostis à religião, que segundo eles afastava os homens com falsos preceitos morais, queriam combater todas as formas de "degenerescência" ligadas ao capitalismo.
Haviam imaginado a utopia do "homem novo". E foram imitados por comunistas e fundadores do sionismo - Max Nordau, em particular, que via no retorno à Terra Prometida a única maneira de libertar os judeus europeus da degeneração infligida pelo anti-semitismo e pelo ódio de si mesmo nutrido pelos judeus. Favoráveis ao controle da procriação e à liberdade das mulheres, esses médicos elaboraram um programa eugenista pelo qual incitavam a população a se purificar através de casamentos controlados medicamente.
Conhecemos os seus desdobramentos. A partir de 1920, em uma Alemanha exangue e vencida, os herdeiros dessa biocracia deram continuidade a esse programa acrescentando a ele a eutanásia e práticas sistemáticas de esterilização. Assombrados pelo terror do declínio de sua "raça", inventaram a noção de "valor de vida negativa": a de indivíduos que sofrem de um mal incurável, a de doentes mentais e a das raças "inferiores".
A figura heróica de um homem novo, inventado pela ciência mais civilizada do mundo, era virada do avesso, com uma utilização imunda, a da raça dos senhores vestidos com uniforme da SS.
Em sua dissertação, Allende estudava teorias darwinistas adotadas no final do século XIX pelas mais eminentes autoridades médicas européias. Mas em nenhum momento reivindicava o eugenismo destruidor que se tornava o principal componente da biocracia nazista na Alemanha. Apenas uma vez empregou o termo "eutanásia" para designar o equivalente moderno da antiga rocha Tarpéia, de onde eram jogados os condenados à morte, em Roma.
E, aliás, foi da escola italiana, e não da alemã, que retirou a maior parte das suas referências, principalmente do célebre Cesare Lombroso (1836-1909), médico socialista originário da burguesia judaica de Verona, cujo pensamento havia marcado especialistas da antropologia criminal. Lombroso vinculou cada etnia a uma tipologia criminosa específica. Em O delito, suas causas e seus remédios (1899), descreveu os comportamentos delituosos dos árabes, beduínos, de certos índios e ciganos, em termos que, atualmente implicariam julgamento de caráter racial. E ainda acrescentou que a criminalidade específica aos judeus era a usura, a calúnia e a falsidade, aliadas à pequena ocorrência de assassinatos e delitos passionais.
É essa frase citada por Allende no penúltimo capítulo de sua tese que é explorada por Farías para acusá-lo de ter sido nazista desde 1933. Desconhecendo totalmente a história das múltiplas evoluções da biocracia pós-darwiniana, ele se dedica a uma interpretação retrospectiva que não se baseia em nenhum estudo crítico dos textos.
Convencido de ter identificado um verdadeiro nazista, Farías continua sua investigação afirmando que entre 1938 e 1941 Allende, então ministro da Saúde do governo da Frente Popular de Pedro Aguirre Cerda, redigiu um projeto de lei em favor da esterilização de doentes mentais semelhante ao da Alemanha hitlerista. O problema é que ao ler o texto desse projeto - que nunca foi votado - percebe-se que ele não corresponde em nada a qualquer perspectiva nazista. O objetivo dos hitleristas era eliminar os doentes mentais e não impedi-los de procriar. O detalhe é importante mesmo se as aparências enganam.
Sempre preocupado em demonstrar o indemonstrável, o autor chega a afirmar que, durante a sua presidência, Allende teria protegido de extradição o coronel da SS Walter Rauff, condenado pelo Tribunal de Nuremberg pelo extermínio de 96 mil pessoas. Ora, a correspondência de 1972 entre Simon Wiesenthal e Allende (também disponível no site da Fundação Salvador Allende) mostra que se trata de mais uma deturpação dos textos.
Farías se dedica, portanto, a destruir uma das figuras mais populares, ao lado de Che Guevara, do antifascismo latino-americano. Nas entrelinhas de seu ensaio, há uma convicção delirante, infelizmente expressiva na atualidade, que procura fazer do socialismo uma doutrina totalitária parecida com o nazismo e, do heroísmo revolucionário, expressão de uma violência que seria necessário banir da urbis.
Mas o que Farías e seus adeptos esquecem, é que ninguém jamais poderá retirar do herói a decisão de sua própria morte. Ora, Allende morreu como um herói, no sentido grego do termo, preferindo uma vida breve à longa duração de uma velhice submissa. Em 11 de setembro de 1973, recusando a se render, ordenou aos companheiros de armas que saíssem do Palácio de La Moneda e atirou na própria boca.
É exatamente o espectro desse heroísmo que continua a assombrar as consciências desprezíveis daqueles que nunca conhecerão destino como esse.
Elisabeth Roudinesco é diretora de pesquisa do Departamento de História da Universidade de Paris VII.
- Tradução de C. Lucia Valladares de Oliveira
http://www2.uol.com.br/vivermente/conteudo/editorial/editorial_18.html