A fé como um valor políticoGustavo Biscaia de LacerdaNos últimos anos um novo valor político tem despontado nos debates públicos, além dos tradicionais liberdade, eqüidade, justiça: a fé. Antes de prosseguirmos, quero deixar clara minha posição a respeito, sem titubeios nem hesitações: a fé não é um valor político, não é aceitável sua utilização na vida política e quem o faz, faz por desinformação ou (desculpem o inevitável trocadilho) por má-fé.
Em que consiste a fé? Simplesmente, na crença em algo. Assim, quando se afirma que na vida política é importante ter-se fé, afirma-se que é necessário crer-se em algo. Exceto alguns tipos de céticos radicais (como os niilistas), todas as pessoas crêem em alguma coisa. Dessa forma, abstração feita das raríssimas exceções, podemos considerar que a crença é quase como a respiração: todos respiram, todos crêem. (Já começamos a perceber como é sem sentido a exigência da fé na política: imagine-se se alguém exigir de um político: “respire!”.)
A questão, portanto, não é se os políticos têm ou não fé, mas se têm ou não fé em alguma coisa específica. Qual coisa? Em “deus”, isto é, no deus judaico-cristão, em qualquer uma das suas inúmeras variedades. Por que essa necessidade de crer no deus? Porque há uma crença amplamente difundida de que, para um indivíduo ser correto, para ter moralidade, para prestar, é necessário crer em deus; ou melhor: que a única forma de ser uma pessoa correta é acreditando no deus – de preferência, acreditando na interpretação de deus difundida pela seita da pessoa que exige isso.
Esse, sem dúvida, é mais um dos casos de óbvios ululantes: é evidente, é claro, mas exatamente porque está à vista de todos não é percebido por ninguém. Qual a relação entre a crença em um deus e a moralidade individual? A resposta é direta: nenhuma. Ou melhor: exatamente ao contrário do que os “crentes” afirmam, as estatísticas indicam com uma clareza insofismável que a possibilidades de um “não-crente” (ou ateu, ou agnóstico, ou cético) cometer um crime ou alguma ação moralmente condenável é muito menor que a de um crente; por outro lado, nem é necessário lembrar a quantidade de barbaridades que os crentes cometem todos os dias, justamente em nome de seus deuses.
Afirmar a fé como um valor político é a mesma coisa que afirmar que para participar da vida política – ou seja, da vida coletiva, do espaço público, do Estado nacional – é necessário crer em um deus. Ora, a crença é inegociável: ou crê-se, ou não se crê. Assim, se uma pessoa não crê algo específico, fica por definição excluído da vida política.
De novo o óbvio ululante: a fé no deus, sendo inegociável, não admite, enquanto tal, negociações, ou seja, não transige. Assim, se alguém não tem fé – ou melhor, se não tem uma fé em particular –, não há conversa com ela. Daí para persegui-la ou forçar sua conversão é um passo mínimo e muito fácil de ser dado.
Quando a Idade Média estava terminando e a Idade Moderna começando, aconteceram no Ocidente as famosas guerras de religião. Elas consistiram na disputa pública e privada pela fé dos indivíduos; como se sabe, professar uma fé ou outra tornou-se nesse período um fator de risco, que oscilava de acordo com o governante do momento. Deixando de lado outras conseqüências políticos das guerras de religião, para o que nos interessa elas tiveram como resultado a retirada para o âmbito estritamente doméstico – pessoal, de preferência – das questões religiosas, que se tornaram “de foro íntimo”.
Mais que um prejuízo, essa retirada da fé para a vida estritamente íntima das pessoas gerou enormes benefícios. Em primeiro lugar, porque ela reafirmou a separação entre a Igreja e o Estado, permitindo que o Estado fosse (e seja) criticado publicamente e que suas ações sejam modificadas a partir da “sociedade civil”; em segundo lugar, porque ela permitiu uma liberdade individual enorme, impossível na situação anterior, e que resultou no aumento da criatividade social em termos econômicos, artísticos, científicos etc.
Em termos institucionais, como comentamos, exige-se a separação da Igreja do Estado, o que significa que o Estado não pode professar nenhuma religião nem pode apoiar nenhuma religião. Em outras palavras, não há necessidade de ir a nenhuma Igreja para exercer funções públicas nem é aceitável que o Estado dê dinheiro para as diversas religiões – ou que se exibam crucifixos em salas públicas ou que haja uma suspeitíssima citação ao “deus” no “Preâmbulo” da Constituição Federal brasileira de 1988. (Se pensarmos um pouco, nesse sentido a Constituição de 1988 foi um retrocesso em relação à de 1891, que era muito mais clara no que se refere à separação entre a Igreja e o Estado e, particularmente, no que se refere à laicidade do Estado, graças à ação republicana de Benjamin Constant e dos positivistas.)
Para concluir: se a retirada das religiões – ou melhor: dos diversos teologismos – dos assuntos públicos é considerado pelas religiões um avanço do “ateísmo”, tanto pior para as religiões: o que alguns chamam de ateísmo, outros – na verdade todos os que não comungam das crenças de quem fala em “ateísmo” – chamam de liberdades. E isso não se troca nem se abre mão.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da Universidade Federal do Paraná e doutorando em Sociologia Política na Universidade Federal de Santa Catarina.