Todos nós esperaríamos ser ajudados se, uma vez perseguidos pela polícia, pedíssemos para que nossa família nos escondesse. A maioria de nós concederia tal ajuda mesmo sabendo que nossos filhos ou pais são culpados de um crime sórdido. Muitos ficariam motivados em mentir sob juramento no sentido de fornecer a tais filhos ou pais um falso álibi. Mas se uma pessoa inocente é erradamente condenada como um resultado de nosso perjúrio, a maioria de nós fica dilacerada por um conflito entre lealdade e justiça.
Tal conflito será sentido, contudo, somente na medida em que pudermos nos identificar com a pessoa inocente que prejudicamos. Se a pessoa é um vizinho, o conflito provavelmente será intenso. Sendo um estranho, especialmente alguém de raça, classe ou nação diferentes, o conflito pode ser consideravelmente mais fraco. Tem de haver algum sentido em que ele ou ela é “um de nós”, antes de começarmos a ficar atormentados pela questão de se fizemos ou não a coisa certa quando cometemos perjúrio. Assim, pode ser igualmente apropriado descrever-nos como divididos entre lealdades conflitantes – lealdade para com nossa família e para com um grupo amplo o suficiente para incluir a vítima de nosso perjúrio – antes que entre lealdade e justiça.
Nossa lealdade para com tal grupo amplo, contudo, será mais fraca, ou mesmo desaparecerá, quando as coisas se tornarem mais violentas. Então, pessoas que um dia imaginamos como iguais a nós, serão excluídas. Compartilhar comida com pessoas pobres da rua é natural e correto em tempos normais, mas talvez não em época de escassez, quando isso seria equivalente a uma deslealdade para com a própria família de cada um. Quanto mais difíceis as coisas se tornam, mais os laços se apertam entre os que são próximos, e mais se esgarçam em relação a todos os outros.
Considere um outro exemplo de expansão e contração de lealdades: nossa atitude em relação a outras espécies. A maioria de nós hoje está ao menos em parte convencido de que vegetarianos têm certa razão, e que os animais possuem algum tipo de direito. Mas suponha que vacas, ou cangurus, surjam como hospedeiros de um novíssimo vírus mutante que, embora inofensivo a eles, é invariavelmente fatal aos humanos. Suspeito, então, que desconsideraríamos acusações de “especiesismo”* e participaríamos do massacre necessário. A idéia de justiça entre espécies se tornará rapidamente irrelevante, porque as coisas ficaram certamente mais difíceis, e nossa lealdade para com nossa própria espécie deve vir antes. Lealdade em relação a uma comunidade mais ampla – aquela de todas as criaturas vivas em nosso planeta –, sob tais circunstâncias, desapareceria rapidamente.
Como um último exemplo, considere a situação complicada criada pela acelerada exportação de empregos do Primeiro Mundo para o Terceiro. Há provavelmente um declínio contínuo na média da renda da maioria das famílias americanas. Muito desse declínio pode plausivelmente ser atribuído ao fato de que se pode contratar um trabalhador fabril na Tailândia por um décimo do que teria de ser pago a um trabalhador em Ohio. Tem se tornado uma sabedoria convencional do rico, a informação de que o trabalho americano e europeu está sobrevalorizado no mercado mundial. Quando empresários americanos são chamados de desleais aos Estados Unidos por deixar as cidades em nosso Rust Belt sem trabalho e esperança, não raro eles replicam que colocam a justiça acima da lealdade.[1] Eles argumentam que as necessidades da humanidade como um todo ganham precedência moral sobre as de seus concidadãos e superam as lealdades nacionais. Justiça requer que eles ajam como cidadãos do mundo.
Considere agora a hipótese plausível de que as instituições democráticas e livres são viáveis somente quando sustentadas por uma economia farta que é alcançável regionalmente, mas impossível globalmente. Se esta hipótese é correta, democracia e liberdade no Primeiro Mundo não serão capazes de sobreviver a uma completa globalização do mercado de trabalho. Assim, as democracias ricas enfrentarão a escolha entre perpetuar suas próprias tradições e instituições democráticas e lidar de maneira justa com o Terceiro Mundo. Fazer justiça ao Terceiro Mundo implicaria na exportação de capitais e empregos até que tudo estivesse nivelado – até o ponto de um dia de trabalho honesto, em um canal de irrigação ou em um computador, não ganhe um salário mais alto em Cincinate ou Paris do que em uma pequena cidade de Botswana. Mas então, pode plausivelmente ser argumentado, não haverá nenhum dinheiro para sustentar bibliotecas públicas, redes de TV e jornais concorrentes, educação liberal disponível de modo amplo, e todas as outras instituições que são necessárias para produzir o esclarecimento da opinião pública, e então manter os governos mais ou menos democráticos.
Tomando tal hipótese, o que as democracias ricas podem fazer de correto? Serem leais a si mesmas e umas com as outras? Manter as sociedades livres para um terço da humanidade a custa dos outros dois terços? Ou sacrificar a benção da liberdade política por causa de justiça econômica igualitária?
Essas questões são paralelas àquelas enfrentadas por pais de uma grande família após um holocausto nuclear. Eles devem compartilhar com seus vizinhos a comida que guardaram em abrigos, mesmo que os estoques dêem apenas para dois ou três dias? Ou eles devem rechaçar com armas aqueles vizinhos? Ambos os dilemas morais levam à mesma questão: deveríamos contrair o círculo por razões de lealdade ou expandi-lo por razões de justiça?
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