Uma coisa que os acadêmicos brasileiros amam mais que o conhecimento é a formalidade; exceto na ABL, onde qualquer um pode entrar bastando uma indicação que renda dividendos políticos. O Janer Cristaldo, escritor e jornalista, conta a sanha que enfrentou para tentar obter uma vaga em uma grande universidade brasileira. Não me lembro dos detalhes, mas ele pleiteava uma vaga no curso de letras e oferecia as traduções que fizera do espanhol para o português de importantes autores daquela língua. Não foi aprovado, não preenchia as formalidades, ou seja, não tinha os canudos necessários. Curiosamente foi aceito na França, sem mais delongas para ministrar aulas num curso de pós-graduação.
Outro dia vi um conhecido comentarista esportivo reclamando que os comentaristas da Globo, O Falcão e o Casagrande, não tinham diploma e estavam roubando vagas dos diplomados, e citava o exemplo de seus filhos que gastaram muito dinheiro com faculdade.
O maior amante de formalismo continua sendo o Judiciário. Imbatível. Por causa de uma vírgula num requerimento o processo fica paralisado meses. A falecida filha do Pelé entrou na Justiça para ter reconhecida a sua paternidade e depois de quatro anos o exame de DNA provou que o Pelé era mesmo pai da moça. Mas o Judiciário não acredita em provas científicas. Demorou mais quatro anos para homologar o óbvio, por formalidades processuais. E depois se queixam que a polícia não apresenta provas.
Por essas e por outras o velho Machado tratou do tema. Vejam:
CAPÍTULO 126
Desconsolação
O epitáfio diz tudo. Vale mais do que se lhes narrasse a
moléstia de Nhã‑loló, a morte, o desespero da família, o
enterro. Ficam sabendo que morreu; acrescentarei que foi por ocasião da
primeira entrada da febre amarela. Não digo mais nada, a não
ser que a acompanhei até o último jazigo, e me despedi triste,
mas sem lágrimas. Concluí que talvez não a amasse deveras.
Vejam agora a que excessos pode levar uma inadvertên‑
cia; doeu‑me um pouco a cegueira da epidemia que, matan‑
do à direita e à esquerda, levou também uma jovem dama,
que tinha de ser minha mulher; e não cheguei a entender a
necessidade da epidemia, e menos ainda daquela morte. Creio
até que esta me pareceu ainda mais absurda que todas as ou‑
tras mortes. O Quincas Borba, porém, explicou‑me que epi‑
demias eram úteis à espécie, embora desastrosas para uma
certa porção de indivíduos; e fez‑me notar que, por mais hor‑
rendo que fosse o espetáculo, havia uma vantagem de muito
peso: a sobrevivência do maior número. Chegou a perguntar‑
me se, no meio do luto geral, não sentia eu algum secreto
encanto em ter escapado às garras da peste; mas esta pergun‑
ta era tão insensata, que ficou sem resposta.
Se não contei a morte, não conto igualmente a missa do sé‑
timo dia. A tristeza de Damasceno era profunda; esse pobre ho‑
mem parecia uma ruína. Quinze dias depois estive com ele; con‑
tinuava inconsolável, e dizia que a dor grande com que Deus o
castigara fora ainda aumentada com a que lhe infligiram os ho‑
mens. Não me disse mais nada. Três semanas depois tornou ao
assunto, e então confessou‑me que, no meio do desastre irrepa‑
rável, quisera ter a consolação da presença dos amigos. Doze
pessoas apenas, e três quartas partes amigos do Cotrim, acompa‑
nharam à cova o cadáver de sua querida filha. E ele fizera expe‑
dir oitenta convites. Ponderei‑lhe que as perdas eram tão gerais
que bem se podia desculpar essa desatenção aparente. Damasceno
abanava a cabeça de um modo incrédulo e triste.
- Qual! gemia ele, desampararam‑me.
Cotrim, que estava presente:
- Vieram os que deveras se interessam por você e por
nós. Os oitenta viriam por formalidade, falariam da inércia
do governo, das panacéias dos boticários, do preço das casas,
ou uns dos outros...
Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, e
suspirou:
- Mas viessem!
CAPÍTULO 127
Formalidade
Grande coisa é haver recebido do céu uma partícula da
sabedoria, o dom de achar as relações das coisas, a faculdade
de as comparar e o talento de concluir! Eu tive essa distinção
psíquica; eu a agradeço ainda agora do fundo do meu sepulcro.
De fato, o homem vulgar que ouvisse a última palavra do
Damasceno, não se lembraria dela, quando, tempos depois,
houvesse de olhar para uma gravura representando seis damas
turcas. Pois eu lembrei‑me. Eram seis damas de Constantinopla,
- modernas, - em trajos de rua, cara tapada, não tapada a
outra maneira, com um espesso pano que as cobrisse deveras,
mas com um véu tenuíssimo, que simulava descobrir somente
os olhos, e na realidade descobria a cara inteira. E eu achei
graça a essa esperteza da faceirice muçulmana, que assim esconde
o rosto, - e cumpre o uso, - mas não o esconde, - e divulga
a beleza. Aparentemente, nada há entre as damas turcas e o
Damasceno; mas se tu és um espírito profundo e penetrante (e
duvido muito que me negues isso), compreenderás que, tanto
num como noutro caso, surge aí a orelha de uma rígida e meiga
companheira do homem social...
Amável Formalidade, tu és, sim, o bordão da vida, o bálsa‑
mo dos corações, a medianeira entre os homens, o vínculo da
terra e do céu; tu enxugas as lágrimas de um pai, tu captas a
indulgência de um Profeta; se a dor adormece, e a consciência
se acomoda, a quem, senão a ti, deverão esse imenso benefí‑
cio? A estima que passa de chapéu na cabeça não diz nada à
alma; mas a indiferença que corteja deixa‑lhe uma deleitosa
impressão. A razão é que, ao contrário de uma velha fórmula
absurda, não é a letra que mata; a letra dá vida; o espírito é
que é objeto de controvérsia, de dúvida, de interpretação, e conse‑
guintemente de luta e de morte. Vive tu, amável Formalidade,
para sossego do Damasceno e glória de Muhammed. (1)
A formalidade protege os medíocres. Sem ela de que valem os diplomas? Buscar-se-iam os resultados. Mas ela se adaptou extremamente bem entre nós. Por que será?
1) Memórias póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis.