Tenho percebido que o debate Ciência vs. Religião tem estado em maior evidência
na mídia ultimamente. Uma prova disso é o recente editorial da Scientific American
de outubro (edição americana). Nem sempre concordo com a contundência com que o
Dawkins, por exemplo, ataca a religião, mas esse editorial me deixou realmente
irritado e me motivou a escrever essa breve análise (enquanto meu programa fica
gerando resultados - para não pensarem que fico só vagabundando

).
O título do editorial é "Let there be light" ("Que faça-se a luz") e sua mensagem
central é expressão da crença dos editores de que a ciência e a religião podem
conviver de forma pacífica. Esse editorial exibe exemplos claros de raciocínio
defeituoso. Algo que eu nunca esperava de uma revista como a SciAm. Cito abaixo
alguns trechos:
Cosmology, geology and evolutionary biology flatly contradict the literal truths
of creation myths from around the world. Yet the overthrow of religion is not a part
of the scientific agenda. Scientific research deals in what is measurable and
definable; it cannot begin to study what might lie beyond the physical realm or to
offer a comprehensive moral philosophy.
Isso meus amigos, é um Espantalho: "A ciência estuda o que é físico. A religião
se preocupa com o que não é. Portanto, elas não podem entrar em conflito."
Esse argumento poderia ser válido em relação ao deísmo ou ao pantéismo, mas
não ao teísmo.
O problema, como indicou o próprio Dawkins, é que o teísmo
não se preocupa
somente com o que está além do físico. Se deuses existem e agem sobre o mundo, então
eles interferem no mundo físico.
Suas ações deveriam deixar rastros no universo. Só que até hoje nenhuma
evidência de ação de um ser inteligente (além do homem, claro) foi jamais encontrada.
Se um guru consegue levitar, isso é um fenômeno físico. Se alguem transforma água em
vinho, isso é um fenômeno físico. Se alguem reza pedindo uma cura impossível e é atendido,
isso também é um fenômeno físico. Realmente, a ciência não
busca derrubar a religião.
Ela faz isso de forma acidental. Outro aspecto: realmente a ciência não oferece uma
filosofia moral. Mas a filosofia moral das religiões costuma ser problemática e
excessivamente rígida (no sentido de não evoluir) devido aos dogmas. Em todo caso, seria
melhor deixarmos o estudo da filosofia para os filósofos, não para os teólogos. A falácia
nesse caso é alegar que a existência de uma filosofia moral justifica toda a bagagem
de superstição religiosa.
Outro trecho:
Which philosophy an individual embraces is a personal choice, not a dictate of
science. Science is fundamentally agnostic, yet it does not force agnosticism even
on its practicioners.
Por filosofia, acredito que eles se referem a uma Metafísica e a uma Ética. O problema
da primeira frase é a idéia de "escolha pessoal" ("personal choice"). O fato é que
na grande maioria das vezes, a religião de um indivíduo não é uma questão de escolha,
mas de influência cultural e indoutrinação durante a infância. A segunda frase também
é problemática. Aliás, ela está simplesmente errada: em ciência não existem verdades
absolutas. A prática científica exige uma crítica constante dos resultados e métodos.
Se alguem é intelectualmente honesto e tenta aplicar os mesmo padrões para as alegações
teístas, o agnosticismo acaba surgindo naturalmente. Novamente, isso não se aplica ao
deísmo e ao panteísmo.
No parágrafo seguinte:
No matter how earnest their testimonies, when researchers write about their faith in
God, they are not expressing a strictly scientific perspective. Rather they are
struggling, as people always have, to reconcile their knowledge of a dispassionate
universe with a heartfelt conviction in a more meaningful design.
Em outras palavras, quando pesquisadores falam de sua fé, eles estão tentando racionalizar
sua angústia existencial. A última frase chega a ser ridícula: o fato de alguem acreditar
em unicórnios cor-de-rosa não vai fazer com que eles existam. Um cientista que pense
assim (e são muitos) está "duplipensando". Um intelectual que pense assim está sendo
desonesto consigo mesmo. No final existe a velha questão do "sentido
de tudo"...
Nas últimas linhas, os editores escrevem:
Our attention should focus not on the illusory fault line between science and religion
but on a political system that too often fails to engage with the real issues.
Ou seja, eles dizem que o debate entre ciência e religião é irrelevante. Isso em
um mundo onde a ajuda do governo americano ao combate à AIDS na África é condicionada
a programas de abstinência sexual - por motivos religiosos. Onde a Igreja Católica
afirma diariamente que a camisinha não protege contra a AIDS - por motivos religiosos.
Onde terroristas se explodem em centros urbanos - por motivos religiosos. Onde o
casamento entre homossexuais é proibido - por motivos religiosos. Onde a pesquisa
sobre células-tronco é proibida - por motivos religiosos. Francamente! Eu diria que
o debate Ciência x Religião não só é relevante, como
necessário.
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