BERQUÓ, Elza. “Arranjos familiares no Brasil – uma visão demográfica”, in: “história da vida privada no Brasil 4: contrastes da intimidade contemporânea”. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
O texto de Elza Berquó, “Arranjos familiares no Brasil: uma visão demográfica”, é uma análise da população brasileira baseada em recenseamentos, cobrindo o período de 1950 a 1991. Como em todas as análises demográficas feitas nos últimos 50 anos, percebe-se claramente a importância do fenômeno da “emancipação da mulher”. Todas as mudanças que a autora apresenta no texto são relacionadas a este fenômeno: diretas, como a queda da taxa de natalidade; ou indiretas, como o crescente número de divórcios. Relacionadas a isto, sim, mas não pela própria autora. Apesar de ela deixar bem claro, desde o início do texto, que as possibilidades de interpretação do censo são muito mais variadas quando se trata de mulheres, são bem poucas as análises qualitativas que Berquó faz
As estatísticas mais recentes, concernentes às uniões, mencionadas no texto, mostram que “aumentou o número de separações e divórcios, conservou-se o da média das idades ao casar, e o papel das uniões não legalizadas cresceu na preferência das pessoas”.
Em 1940, um homem se casava, em média, aos 27 anos, enquanto a mulher se casava com quase 22. Em verdade, só a idade masculina se mantém igual. Atualmente, as mulheres se casam com cerca de 24 anos, dois anos mais velhas do que costumava ser, e os resultados parciais do censo de 2000 confirmam este envelhecimento. Ele ocorre, principalmente, pela possibilidade de trabalhar e estudar. Talvez o fato de a mulher se casar mais jovem que o homem seja considerável quando se fala de viuvez; ainda há mais viúvas que viúvos, apesar de ter havido ganhos que a expectativa do homem brasileiro. De acordo com a autora, este ganho diminuiu o número de viúvas, mas ela não mencionou que a entrada das mulheres no mercado de trabalho provoca desgaste e doenças, e que, assim, as mulheres estão morrendo mais cedo. De qualquer modo, é importante ressaltar que estas idades mencionadas são dados dos casamentos civis, excluindo os casamentos apenas no religioso e as uniões consensuais.
É verdade que os casamentos realizados apenas no religioso vêm perdendo importância: a porcentagem deste tipo de união é de 25% do que era em 1960, representando 4,5% do total de casamentos em 1995. ao mesmo tempo, o número de uniões consensuais é, em 1995, quatro vezes o que era em 1960, e quase 25% do total de uniões.
As uniões consensuais foram, por muito tempo, o único tipo de união que permitia dissolução e uniões posteriores, e que ainda não tinha nenhuma exigência de idade. Visto que o divórcio só foi instituído em 1977 e que a idade mínima para o casamento civil é de 16 anos para as mulheres e 18 anos para os homens, a união não legalizada foi a única alternativa possível, principalmente para as classes mais pobres. Hoje as uniões estáveis têm participação também nas chamadas classes médias, servindo como um “casamento experimental”, que pode ser concretizado ou não. Assim, é justo que as estatísticas mostrem uma queda na taxa bruta de nupcialidade legal.
Outra taxa bruta se modifica neste período: a dos divórcios e separações. Há um crescimento acentuado no número de dissoluções. Assim, é justo que as estatísticas mostrem um crescimento sistemático do número de unidades domiciliares. Oras, quando uma união é dissolvida, um dos membros precisa arrumar outro lugar para morar. Ainda, deve considerar-se como causa as migrações internas, ou seja, as pessoas que saem do lugar onde estavam procurando melhor qualidade de vida, trazendo ou não a família junto, fenômeno que continua sendo importante no Brasil. E também é causa os “novos estilos de vida, como uniões estáveis que não envolvem coabitação, jovens vivendo sozinhos ou em companhia de outros jovens fora da casa dos pais, e arranjos de adultos, aparentados ou não, morando juntos.” Mesmo assim, os arranjos familiares continuam sendo a maioria esmagadora dos arranjos domiciliares.
Os lares abrigam um número consideravelmente menor de pessoas, em comparação aos de 1950. “O rápido declínio da fecundidade vem jogando papel decisivo na queda do tamanho médio dos arranjos domésticos.” Observa-se nos gráficos que são acentuados o aumento do número de famílias de 3-4 pessoas e a diminuição do número de famílias de mais de 7 pessoas, porque hoje uma brasileira tem, em média, dois filhos, e poucos dos arranjos familiares contam com parentes e agregados em sua composição. estes também são os motivos do declínio, menos acentuado, das famílias de 5 ou 6 pessoas.
Não tão acentuado, mas também importante, é o aumento do número de famílias de 2 componentes. Como visto anteriormente, está sendo bastante comum a existência de casais sem filhos e de famílias monoparentais (a maioria delas é composta de uma mãe e um filho só).
São poucas as famílias monoparentais que contam com o pai (em 1970, eram 17%, e em 1995, 11,4%), por causa do aumento das separações e divórcios (é de praxe que os filhos fiquem com a mãe), da sobremortalidade masculina, da pouca possibilidade de recasamento das mulheres, das uniões sem coabitação e das mães solteiras (que vêm sendo mais com o tempo: 9,4 em 70 e 14,2 em 95). As chefes de famílias monoparentais são cada vez mais jovens. Enquanto os arranjos monoparentais com chefes viúvas eram 63.3 em 1970 e em 1995 eram 36.6, os chefiados por divorciadas/separadas passaram de 27.3 para 49.2 no mesmo recorte de tempo.
É feito um esboço de discussão sobre a pobreza das famílias chefiadas por mulheres. “vários autores assinalaram a relação entre chefia feminina e pobreza tanto como causa quanto como conseqüência uma da outra”. A autora não coloca sua opinião, mas lembra que é necessário lembrar que a pobreza não acontece só por falta de um “provedOr”, mas também por as mulheres chefes serem parte das camadas mais pobres (vista a popularidade, entre o povo, das uniões consensuais, que permitem dissolução fácil e rápida), e que há muitas famílias monoparentais que não são das classes populares.
Já em relação aos arranjos de uma única pessoa, percebe-se também crescimento ― em 70 constituíam 5,8% do total, e em 95, 8,1%. O crescimento destes arranjos é em torno de 5,4% ao ano, no período 80-95, sendo muito maior que o crescimento total da população no mesmo período. Disse-se há pouco que quando uma união é dissolvida, um dos membros precisa arrumar outro lugar para morar, que a maioria das famílias monoparentais é chefiada por mulheres, e que ainda há mais viúvas que viúvos. Portanto, parte considerável dessas famílias de um membro só é de homens divorciados e mulheres viúvas. Assim, ao contrário do que geralmente se supõe, a maioria de sozinhos não é de jovens: esta porcentagem caiu, de 1980 para 1995. Curioso é que, em relação às mulheres sozinhas, a soma das mulheres solteiras, divorciadas e separadas que moram sozinhas é inferior ao grupo de viúvas.
Nos meios femininos, se fala bastante da “falta de homem”. Geralmente, se contra-argumenta argumenta dizendo que a porcentagem de mulheres é ligeiramente menor que a de homens, mas se esquece que as estatísticas são frias, que estes ínfimos pontos percentuais representam quase três milhões de mulheres solitárias. Certamente que este cálculo é falso, visto que não usa nenhuma metodologia, e é feito por gente leiga que consome revistas Claudia e Playboy. Porém, Berquó faz um cálculo hipotético provando que este “déficit” , como dizem as moças, é real. Ela calcula, levando em conta a determinação social de que nos casais geralmente é mais velho o homem, o número de “homens mais velhos” e “mulheres mais novas”, partindo de uma faixa etária determinada. Não se pode esquecer que a união consensual e os divórcios compensam este déficit, visto que o homem se “reveza” entre várias mulheres ao longo da vida. Logicamente, neste exercício nada foi dito sobre este importantíssimo e novo fenômeno que é a liberdade de escolha ― para os leitores de Claudia e Playboy, as mulheres estão muito “exigentes”.
Elza Berquó é bem sucedida em indicar o caminho para o leitor “humanizar” as estatísticas. Ela não se alonga nas discussões dos motivos, exceto quando se trata do divórcio, mas sempre delineia o caminho que se deve seguir para achar as explicações mais abrangentes. Seu texto é agradável porque ela se compromete com a verificabilidade do que escreve.
Em apenas duas passagens este objetivo é traído: em “mulheres idosas, viúvas ou separadas, com possibilidades financeiras, optam por morar sozinhas, desfrutando da autonomia que nunca puderam vivenciar na companhia de maridos e filhos. Enfim, não se trata apenas de fatalidades rondando a vida das mulheres, mas também da conquista de novas oportunidades”, e em “até porque às vezes é preferível estar só que mal acompanhado e, para muitas mulheres, estar só pode ser uma opção e não tão-somente um fardo”. Estas são claramente opiniões da própria autora e, como opiniões, não são verificáveis. É compreensível que a autora não queira discutir a “alma feminina”, mas deve ser levado em conta o fato de a maioria das mulheres terem sido educadas para considerarem o estar sozinha como uma fatalidade, de fato. É pena que os recenseamentos não perguntem às mulheres que moram sozinhas se elas se sentem felizes. Em pesquisa de opinião amadora, feita num espaço geográfico limitado (o bairro da Lapa, em São Paulo), com 24 mulheres sozinhas, com idade entre 34 e 82 anos, demonstra que 22 delas pensam que a “autonomia” não compensa a solidão. Mas os censos não registram isso e, portanto, a autora poderia não ter tentado fazer sua opinião passar por verdade.
Um aspecto ruim da falta de explicação aprofundada é a existência de algumas frases soltas no texto. Um exemplo bem claro é a passagem sobre estar havendo “uma tendência à passagem de uma família hierárquica para uma família mais igualitária, tendência inicialmente mais visível nas camadas médias urbanas e, com o tempo, passando a permear também as camadas populares” Nada sobre isso é dito no texto, nem mesmo uma indicação de como explicar este fenômeno. O conceito de “família igualitária” é subjetivo demais para um texto de análise demográfica, portanto a autora também poderia não tê-lo incluído na versão final do texto.
Parece que Elza Berquó esteve certa em preferir indicar a resposta em vez de dá-la. Melhor foi esconder sua falha.
Elza Berquó é MAL-COMIDA!!!