Os crentes e a políticaMaria José Nogueira Pinto - JuristaDNA polémica desencadeada pela conferência do Papa Bento XVI, em Ravensburg, não se esgotou nem seria esgotada na versão agressiva da "rua islâmica" agravada e ofendida por uma citação, fora de contexto de um remoto imperador bizantino.
Bem mais importante nesse texto foi a temática central sobre fé e razão e a sua harmonização, na linha de São Tomás e de outros doutores da Igreja.
O problema das relações entre a fé e a razão é paralelo, entretanto, a um mais "popular", que tem a ver com as relações entre fé e política, ou melhor sobre o papel da religião e os crentes na política.
Foi um tema central na História europeia; hoje, devido à forte "politização" do islamismo, recuperou importância.
Como recuperou nos Estados Unidos, a partir do momento em que, nos sectores conservadores, os movimentos cristãos, baptistas e evangélicos - e os católicos - criaram organizações que procuram influenciar o voto em linhas naturalmente concordantes com os seus princípios religiosos.
Dando origem àquilo que os seus adversários laicos chamam os teocons.
Esta influência e militância é decisiva, no campo republicano na selecção dos candidatos ao Congresso e à Presidência; e ganhou mais relevo, a partir do momento em que, dando-se conta desta importância da religião na influência do voto - por exemplo, os movimentos cristãos evangélicos e pentecostais penalizam fortemente os políticos que defendem a liberalização do aborto ou casamentos de pessoas do mesmo sexo, e apoiam logicamente os candidatos que lhes são contrários.
Desta vez, nas listas democráticas, houve, entre senadores e representantes, umas dezenas largas desses conservadores que poderão vir a ter influência decisiva nas linhas da política de "bipartidarismo" - influência que já se notou nas escolhas para as lideranças da bancada.
Os seus inimigos chamam a estes cristãos na política os "teoconservadores" - teocons - e, em vários debates políticos e de ideias, os radicais laicos chegam mesmo a considerar que a intervenção destes grupos na política é "inconstitucional", já que os Founding Fathers teriam sido claros em separar a religião da política.
Logo, os católicos - e os cristãos em geral - não deveriam intervir na política para defender e propagar os seus valores, pois iriam contra o espírito laicizante do documento constitucional de 1776.
É curiosa esta discriminação activa que se pretende utilizar contra os cristãos e católicos na política, como, aliás, contra os sectários de qualquer religião.
A sua intervenção para, pela palavra e pelo voto, procurarem fazer vingar as suas escolhas, procurarem fazer triunfar os seus pontos de vista, junto dos seus compatriotas nos "social issues" seriam para os "laicos" uma ofensa à separação entre o Estado e a Igreja.
O argumento é viciadíssimo, mas sustentado, pelos "liberais", em várias publicações e na blogosfera, que é uma arena central do debate político nos Estados Unidos.
Alguns dos mesmos vão ao ponto de afirmar que o Presidente Bush, por continuamente orar e pedir a ajuda de Deus para tomar decisões, devia ser "impedido"!
Quer dizer, os crentes - cristãos, católicos, judeus, islâmicos - deverão ser impedidos de procurar, pela via da luta eleitoral democrática e da opinião pública de informar e orientar a sociedade das suas ideias e valores.
Mas ser um ateu confesso, ou um agnóstico militante, um laico fundamentalista, já não colide com os bons princípios da relação do religioso e do político?
Uma coisa é a neutralidade do Estado - enquanto tal -, outra é a tomada de posição na sociedade e na vida política.
Na medida em que para o crente, aqui para o cristão, a cidade de Deus deve passar sempre à frente da cidade terrena, influenciá-la e elevá-la, os cristãos não só têm a faculdade, mas têm o dever de procurar influenciá-la em nome dos valores cristãos, históricos e civilizacionais.
E têm também o dever de, com justiça e caridade, combater tudo aquilo que reforça a agenda anticristã - o aborto livre, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o uso do Estado e dos poderes públicos para desenvolver e promover uma agenda "anticristã".
Isto, sem tocar no princípio da liberdade religiosa, que garante o direito a não ter crenças religiosas sem ser por isso penalizado, mas que também garante não ser discriminado por tê-las.