Revista Galileu
Os genes de Deus
Raízes biológicas explicam de onde vem a inclinação humana para a religiosidade e como o cérebro experimenta a transcendência
Camila Artoni
Atômica Studio
Crescimento de 7,5% ao ano das igrejas evangélicas brasileiras, um milhão de católicos presentes ao velório do papa João Paulo II no Vaticano, conversões em massa, na Índia, ao hinduísmo: o que esses eventos têm em comum? Dizer "Deus" é apostar em uma resposta arriscada. Se existe um deus, ou vários, ou não, é um dado que a ciência ainda não é capaz de provar, talvez nunca seja. Mas por que cremos é algo que já pode ser mais bem compreendido. E trabalhos recentes afirmam que as bases da fé estão nos nossos instintos primitivos, como a nossa tendência natural a comer mais do que precisamos, nossa preferência por parceiros fortes e saudáveis para a reprodução e a nossa capacidade de ser feliz (ou a falta dela).
Até um quarto de século atrás, os cientistas acreditavam que o comportamento religioso era produto da socialização ou da educação recebida em casa. Não é o que diz a pesquisa de Laura Koenig, psicóloga americana da Universidade de Minnesota, que acaba de divulgar o resultado de seus estudos com gêmeos. Em seu relatório, Koenig atribui ao DNA cerca de 40% de participação no nível de religiosidade de uma pessoa. É um número que impressiona. Para se ter uma comparação, sabe-se que os genes são responsáveis por 27% dos casos de câncer de mama, por exemplo.
Mais de 250 pares de gêmeos, idênticos e não-idênticos, responderam a perguntas sobre a freqüência de serviços religiosos, orações e discussões teológicas em suas vidas. Dados sobre pais e outros irmãos também foram coletados. Conclusão: quando eram mais novos e conviviam mais com outros membros da família, todos tendiam a ter um nível de espiritualidade semelhante, demonstrando forte influência do ambiente na decisão; na idade adulta, somente os univitelinos (que têm carga genética 100% igual) continuavam compartilhando os mesmos índices. "Quando os filhos saem de casa e entram na universidade ou no trabalho, a interferência dos pais começa a enfraquecer", diz a pesquisadora. "Nesse ponto, temos de tomar as nossas próprias decisões e a biologia passa a falar mais alto." Em suma: sejamos crentes ou céticos, a "culpa", em grande parte, é da nossa genética.
A idéia de um "gene de Deus" refere-se ao componente inato do homem para a espiritualidade. Não significa que exista um gene que faça com que as pessoas acreditem em Deus, e sim que a predisposição a ser espiritual (seja seguir preceitos religiosos fechados, acreditar na existência de um ser superior ou buscar uma origem esotérica para o mundo) é herdada por nós geneticamente.
O trabalho de Koenig não é o primeiro a fazer essa proposição. Ano passado, Dean Hamer publicou "The God Gene", livro em que explica como a fé está fortemente conectada ao nosso DNA. Chefe do laboratório de bioquímica do Instituto Nacional do Câncer dos EUA, Hamer foi ainda mais longe e deu nome aos bois. Ele afirma que pelo menos um gene específico é responsável pelo controle das substâncias envolvidas na emoção e na consciência religiosas.
A cara da sua fé
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Os genes moldam nossa propensão para a espiritualidade, mas a religião que adotamos é decidida pelo meio. As pesquisas com os chamados "genes de Deus" contemplam essa característica: não importa qual a fé da pessoa avaliada, as chances de pontuações altas e baixas nas escalas são as mesmas.
É possível, porém, que a hereditariedade se manifeste de forma diversa em diferentes culturas e tradições. Seguidores de religiões mais rigorosas podem ser mais influenciados pela genética do que seitas mais liberais, ou vice-versa. Ainda faltam estudos que analisem a questão. O que várias pesquisas demonstram é que, na maioria dos casos, o ambiente de criação é a influência mais forte, não apenas pela óbvia facilidade de se freqüentar a mesma comunidade espiritual dos pais, mas também pelos valores que aprendemos como corretos.
Fortes porque crêem
É preciso ter cautela aqui. O VMAT2, como é chamado o gene, pode ser importante, mas certamente não responde sozinho pelo funcionamento de algo tão complexo. "Não há um gene para a religiosidade", diz Laura Koenig. "O efeito genético está relacionado, na verdade, aos genes que influenciam a personalidade. É isso que faz com que algumas pessoas sejam mais propensas a acreditar em religiões do que outras."
Se a religiosidade está mesmo sob influência da genética, fica implícito que esse traço foi selecionado durante o processo evolutivo. O que nos leva a crer que, provavelmente, trouxe vantagens adaptativas para os primeiros crentes. Algumas descobertas sugerem quais podem ter sido. Sabe-se que a espiritualidade já foi associada, por exemplo, com o comportamento altruísta, e a falta dela com índices maiores de criminalidade. No plano físico, estudos demonstram que o otimismo promovido pela fé está relacionado a uma saúde mais forte, avaliada pela menor incidência de derrames e enfermidades cardíacas. As taxas de abuso de drogas, alcoolismo, divórcio e suicídio são muito mais baixas entre os religiosos, que também sofrem menos de depressão e ansiedade do que a população em geral, e quando sofrem se recuperam mais rápido. Com certeza, traços que ajudaram nossos antepassados a viver mais.
Hamer admite que há provavelmente dezenas de outros genes, ainda por serem identificados, que desempenham papéis na capacidade de ser religioso. Mas a origem genética, insiste, é inegável. Para ele, só uma inclinação biológica para a espiritualidade poderia explicar o número cada vez maior de adeptos de seitas não-tradicionais e a presença de centenas de religiões no mundo inteiro.
De fato, a religiosidade faz parte da experiência humana desde sempre. Mais de 30 mil anos atrás, nossos ancestrais já pintavam em suas cavernas imagens de sacerdotes e feiticeiros. Ao longo dos tempos, as fés institucionalizadas e tribais se espalharam de tal forma que não há lugar algum no globo que escape das estatísticas.
Só que o conceito da espiritualidade inata está longe de ser consenso. A própria psicologia bate o pé contra isso. Mesmo reconhecendo que os genes possam ser dominantes sobre o comportamento, o papel do ambiente não deixa de ser importante. A pesquisadora da Universidade de Minnesota ressalta esse ponto. "Influências do meio continuam tendo alto impacto sobre a religiosidade. Os indivíduos de uma determinada cultura podem ser extremamente observantes por razões culturais, as pequenas variações no nível de religiosidade entre eles é que se explicam pela genética", explica Koenig.
Essa força universal também foi explicada por outra área do conhecimento, a psicologia analítica, introduzida pelo psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961). Segundo sua teoria dos arquétipos (conteúdos simbólicos da mente, compartilhados por toda a humanidade), a busca por Deus - ou pela plenitude, ou por si mesmo - é um elemento básico da psique humana.
Experiência universal
Em termos religiosos e espirituais, é como se a necessidade de encontrar um sentido místico para a vida estivesse impressa na nossa alma. Pessoas que não são capazes de crer estariam desconectadas dessa necessidade primordial.
Enquanto as ciências humanas explicam a fé como um processo cognitivo, a abordagem neurológica vai em outra direção. Andrew Newberg, da Universidade da Pensilvânia, decidiu olhar para os rastros da espiritualidade no cérebro. Usando imageamento cerebral, ele pôde ver de perto o que acontece quando alguém medita ou reza. Medindo o fluxo da corrente sanguínea dos voluntários, avaliou que áreas eram responsáveis pela sensação de transcendência.
Quanto mais fundo as pessoas vão na prática, descobriu Newberg, mais ativos ficam o lobo frontal e o sistema límbico. O primeiro é onde se localiza nossa capacidade de concentração e atenção; o segundo é onde sentimentos poderosos, inclusive o êxtase religioso, são processados. Ao mesmo tempo, a região que controla nossas noções de tempo e espaço fica entorpecida. A combinação desses efeitos é uma experiência espiritual riquíssima. "Deus não é resultado de um processo de raciocínio", diz o neurocientista. "Ele foi descoberto misticamente, pelo próprio maquinário cerebral. O homem não inventou Deus, o experimentou."
Estágios da fé
Genes à parte, a espiritualidade não tem um botão que pode ser ligado e desligado, e uma tendência a crer não significa garantia de vida religiosa estável feliz. De acordo com o professor de teologia James Fowler, o desenvolvimento dessa área da vida segue o padrão de qualquer outro processo psicológico humano, ou seja, acontece por fases. A jornada religiosa completa começaria na infância, a partir de um estágio em que vemos o mundo como mágico, e seguiria até uma sexta etapa, em que o crente é um místico capaz de experimentar um profundo senso de unidade com o universo.
E Deus nessa história?
A maioria dos teólogos recusa-se a aceitar que a experiência de Deus seja reduzida a reações químicas no cérebro. Em geral, as religiões preferem a idéia de uma revelação vinda "de cima". Para a ciência, a comprovação de uma origem genética para a fé e o mapeamento da crença no cérebro não dizem nada sobre a existência de Deus. As pesquisas apenas explicam por que há diferentes graus de envolvimento religioso entre as pessoas e que tipo de elevação provam aqueles que crêem.
Mas tudo isso pode, ainda, ser invenção de Deus. Há quem defenda até que os genes façam parte do sofisticado projeto divino para a humanidade. Enquanto as origens e os efeitos da religiosidade podem ser medidos pela ciência, a existência de Deus, só pela fé. Mas isso não significa ter de mantê-las separadas. Como bem apontou Albert Einstein, a ciência sem religião é manca e a religião sem ciência é cega.
Para ler
• "The God Gene", Dean Hamer. Doubleday. 2004
• "Why God Won't Go Away", Andrew Newberg. Ballantine. 2002
• "Religion Explained", Pascal Boyer. Basic Books. 2001