Autor Tópico: Contos.  (Lida 2532 vezes)

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Offline Worf

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Contos.
« Online: 07 de Janeiro de 2007, 13:47:07 »
Em outro fórum eu tenho um tópico para a postagem de contos.
Espero que vocês gostem também.

Offline Worf

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Re: Contos.
« Resposta #1 Online: 07 de Janeiro de 2007, 13:48:55 »
Funes, o Memorioso


Jorge Luis Borges

 

Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um homem na terra teve o direito e tal homem está morto) com uma obscura passiflórea na mão, vendo-a como ninguém jamais a vira, ainda que a contemplasse do crepúsculo do dia até o da noite, uma vida inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e singularmente remoto, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos delicadas de trançador. Recordo próximo dessas mãos um mate, com as armas da Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos de agora. Mais de três vezes não o vi; a última, em 1887… Parece-me muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram escrevam sobre ele; meu testemunho será por certo o mais breve e sem dúvida o mais pobre, porém não o menos imparcial do volume que vós editareis. A minha deplorável condição de argentino impedir-me-á de incorrer no ditirambo - gênero obrigatório no Uruguai; quando o tema é um uruguaio. Literato, cajetilla, porteño. Funes não disse essas palavras injuriosas, mas de um modo suficiente me consta que eu representava para ele tais desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes era um precursor dos super-homens; "Um Zaratustra cimarrón e vernáculo"; não o discuto, mas não se deve esquecer que era também natural de Fray Bentos, com certas limitações incuráveis.

A minha primeira lembrança de Funes é muito clara. Vejo-o em um entardecer de Março ou Fevereiro do ano de 1884. Meu pai, nesse ano, levara-me a veranear em Fray Bentos. Voltava com meu primo Bernardo Haedo da estância de San Francisco. Voltávamos cantando, a cavalo, e essa não era a única circunstância da minha felicidade. Após um dia abafado, uma enorme tempestade cor cinza escura havia escondido o céu. Alentava-me o vento Sul, já enlouqueciam-se as árvores; eu tinha o temor (a esperança) de que nos surpreenderia em um descampado a água elemental. Apostamos uma espécie de corrida com a tempestade. Entramos em um desfiladeiro que se aprofundava entre duas veredas altíssimas de tijolo. Escurecera repentinamente; ouvi passos rápidos e quase secretos no alto; levantei os olhos e vi um rapaz que corria pela vereda estreita e esburacada como que por uma parede estreita e esburacada. Recordo a bombacha, as alpargatas, recordo o cigarro no rosto duro, contra a densa nuvem já sem limites. Bernardo gritou-lhe imprevisivelmente: Que horas são, Ireneo? Sem consultar o céu, sem deter-se, o outro respondeu: Faltam quatro minutos para as oito, jovem Bernardo Juan Francisco. A voz era aguda, zombeteira.

Sou tão distraído que o diálogo a que acabo de me referir não teria chamado a minha atenção se não o tivesse enfatizado o meu primo, a quem estimulavam (creio) certo orgulho local, e o desejo de mostrar-se indiferente à réplica tripartite do outro.

Disse-me que o rapaz do desfiladeiro era um tal Ireneo Funes, conhecido por algumas peculiaridades como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio. Complementou dizendo que era filho de uma passadeira do povo, Maria Clementina Funes, e que alguns diziam que seu pai era um médico de saladeiro, um inglês O’Connor, e outros um domador ou rastreador do departamento de Salto. Vivia com a sua mãe, na curva da quinta dos Laureles.

Nos anos de 1885 e 1886 veraneamos na cidade de Montevideo. Em 1887 voltei a Fray Bentos. Perguntei, como é natural, por todos os conhecidos e, finalmente, pelo "cronométrico Funes". Responderam-me que um redomão o havia derrubado na estância de San Francisco, e que havia se tornado paralítico, sem esperança. Recordo a sensação de incômoda magia que a notícia despertou-me: a única vez que eu o vi, vínhamos a cavalo de San Francisco e ele andava em um lugar alto; o fato, na boca do meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado com elementos anteriores. Disseram-me que não se movia da cama, os olhos repousados na figueira do fundo ou em uma teia de aranha. Ao entardecer, permitia que o levassem para perto da janela. Levava a arrogância ao ponto de simular que era benéfico o golpe que o havia fulminado… Duas vezes o vi atrás da relha, que toscamente enfatizava a sua condição de eterno prisioneiro; uma, imóvel, com os olhos cerrados; outra, imóvel também, absorto na contemplação de um aromático galho de santonina.

Não sem um certo orgulho havia iniciado naquele tempo o estudo metódico do latim. A minha mala incluía o De viris illustribus de Lhamond, o Thesaurus de Quicherat, os comentários de Júlio César e um volume ímpar da Naturalis historia de Plínio, que excedia (e continua excedendo) as minhas modestas virtudes de latinista. Tudo se propaga em um povoado; Ireneo, em seu rancho das orillas, não tardou em enteirar-se da chegada desses livros anômalos. Dirigiu-me uma carta florida e cerimoniosa, na qual recordava no encontro, desditosamente fugaz, "do dia 7 de Fevereiro de 1884", ponderava os gloriosos serviços que Don Gregorio Haedo, meu tio, falecido nesse mesmo ano, "havia prestado às duas pátrias na valorosa jornada de Ituzaingó", e me solicitava o empréstimo de qualquer dos volumes, acompanhado de um dicionário "para a boa intelecção do texto original, pois todavia ignoro o latim". Prometia devolvê-los em bom estado, quase imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo que Andrés Bello preconizou: i por y, j por g. A princípio, suspeitei naturalmente tratar-se de uma zombaria. Meus primos asseguraram que não, que eram coisas de Ireneo. Não sabia se atribuía ao atrevimento, à ignorância ou à estupidez a idéia de que o árduo latim não requeresse mais instrumento do que um dicionário; para desencorajá-lo completamente enviei-lhe o Gradus ad parnassum de Quicherat e a obra de Plínio.

No dia 14 de Fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires que voltasse imediatamente, pois meu pai não estava "nada bem". Deus me perdôe; o prestígio de ser o destinatário de um telegrama urgente, o desejo de comunicar a toda Fray Bentos a contradição entre a forma negativa da notícia e o peremptório advérbio, a tentação de dramatizar a minha dor, fingindo um estoicismo viril, talvez distraíram-me de toda a possibilidade de dor. Ao fazer a mala, notei que me faltavam o Gradus e o primeiro tomo da Naturalis historia. O "Saturno" sarpava no dia seguinte, pela manhã; essa noite, depois da janta, dirigi-me à casa de Funes. Assombrou-me que a noite fora não menos pesada que o dia.

No humilde rancho, a mãe de Funes recebeu-me.

Disse-me que Ireneo estava no quarto dos fundos e que não me estranhasse encontrá-lo às escuras, pois Ireneo preferia passar as horas mortas sem acender a vela. Atrevessei o pátio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo pátio. Havia uma parreira; a escuridão pareceu-me total. Ouvi prontamente a voz alta e zombeteira de Ireneo. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha das trevas) articulava com moroso deleite um discurso, ou prece, ou encantamento. Ressoavam as sílabas romanas no pátio de terra; o meu temor as tomava por indecifráveis, intermináveis; depois, no enorme diálogo dessa noite, soube que formavam o primeiro parágrafo do 24o capítulo do 7o livro da Naturalis historia. O tema desse capítulo é a memória: as últimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.

Sem a menor mudança de voz, Ireneo disse-me o que se passara. Estava na cama, funmando. Parece-me que não vi o seu rosto até a aurora; creio lembrar-me da brasa momentânea do cigarro. O quarto exalava um vago odor de umidade. Sentei-me, repeti a estória do telegrama e da enfermidade de meu pai.

Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato. Este (é bem verdade que já o sabe o leitor) não tem outro argumento senão esse diálogo de há já meio século. Não tratarei de reproduzir as suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto é remoto e débil; eu sei que sacrifico a eficácia do meu relato; que os meus leitores imaginem os períodos entrecortados que me abrumaram essa noite.

Ireneo começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Metríadates e Eupator, que administrava a justiça dos 22 idiomas de seu império; Simónides, inventor da mnemotecnia; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado de uma só vez. Com evidente boa fé maravilhou-se de que tais casos maravilharam. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o azulego o derrubou, ele havia sido o que são todos os cristãos; um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a percepção exata do tempo, a sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis.

Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-los na lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; Minha memória, senhor, é como depósito de lixo. Uma circunferência em um quadro-negro, um triângulo retângulo; um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de gado em um coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu.

Essas coisas me disse; nem então nem depois coloquei-as em dúvida. Naquele tempo não havia cinematógrafos nem fonógrafos; é, no entanto, verossímil e até incrível que ninguém fizera um experimento com Funes. O cérto é que vivemos postergando todo o postergável; talvez todos saibamos pronfundamente que somos imortais e que mais cedo ou mais tarde, todo homem fará todas as coisas e saberá tudo.

A voz de Funes, vinda da escuridão, seguia falando.

Disse-me que em 1886 havia elaborado um sistema original de numeração e que em muito poucos dias havia ultrapassado vinte e quatro mil. Não o havia escrito, porque o pensado uma só vez já não podia desvanecer-lhe. Seu primeiro estímulo, creio, foi o descontentamento de que os trinta e três uruguaios requeressem dois signos e três palavras, em lugar de uma só palavra e um só signo. Aplicou logo esse desparatado princípio aos outros números. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Máximo Pérez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre, os rústicos, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra tinha um signo particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito complicadas… Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsódia de vozes desconexas era precisamente o contrário de um sistema de numeração. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos "números". O Negro Timoteo a manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis me entender.

Locke, no século XVII, postulou (ou reprovou) um idioma impossível no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou alguma vez um idioma análogo, mas o desejou por parecer-lhe demasiado geral, demasiado ambígüo. De fato, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não havia acabo ainda de classificar todas as lembranças da infância.

Os dois projetos que foi indicado (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Nos deixam vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não apenas lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abarcava tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente). Sua própria face no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no cada vez. Comenta Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os avanços tranqüilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. Babilônia, Londres e Nova York têm preenchido com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentira o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre subúrbio sulamericano. Era-llhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si mesmo cada rachadura e cada moldura das casas distintas que o redoavam. (Repito que o menos importante das suas lembranças era mais minucioso e mais vivo que nossa percepção de um gozo físico ou de um tormento físico). Em direção ao leste, em um trecho não pavimentado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava negras, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção virava o rosto para dormir. Também era seu costume imaginar-se no fundo do rio, mexido e anulado pela corrente.

Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.

A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.

Então vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-me tão monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma das minhas palavras (que cada um dos meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar trejeitos inúteis.

Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.

 

Tradução de Marco Antonio Franciotti
(in Jorge Luis Borges: Prosa Completa, Barcelona: Ed. Bruguera, 1979, vol. 1., pgs. 477-484).

Offline Worf

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Re: Contos.
« Resposta #2 Online: 07 de Janeiro de 2007, 13:53:56 »
A Escrita do Deus


Jorge Luis Borges

    O cárcere profundo e de pedra; sua forma de um hemisfério quase perfeito, embora o piso (também de pedra) seja algo menor que um círculo máximo, fato que de algum modo agrava os sentimentos de opressão e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de altíssimo, não toca a parte superior da abóbada; de um lado estou eu, Tzinacan, mago da pirâmide Qaholom, que Pedro de Alvadaro incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Ao nível do chão, uma ampla janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia), abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que os anos foram apagando manobra uma roldana de ferro, e nos baixa, na ponta de um cordel, cântaros de água e pedaços de carne. A luz entra na abóbada; neste instante posso ver o jaguar.

      Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar nesta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que os deuses me destinam. Com a longa faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó.

      Na véspera do incêndio da Pirâmide, os homens que desceram de altos cavalos me castigaram com metais ardentes para que revelasse o lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, a imagem do deus, mas este não me abandonou e me mantive silencioso entre os tormentos. Feriram-me, quebraram-me, deformaram-me e depois despertei neste cárcere, que não mais deixarei nesta vida mortal.

      Premido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de alguma forma o tempo, quis recordar, em minha sombra, tudo o que sabia. Gastei noites inteiras lembrando a ordem e o número de algumas serpentes de pedra ou a forma de uma árvore medicinal. Assim fui vencendo os anos, assim fui entrando na posse do que já era meu. Uma noite, senti que me aproximava de uma lembrança precisa; antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois, comecei a avistar a lembrança; era uma das tradições do deus. Este, prevendo que no fim dos tempos ocorreriam muitas desventuras e ruínas, escreveu no primeiro dia da Criação uma sentença mágica, capaz de conjurar esses males. Escreveu-a de maneira que chegasse às mais distantes gerações e que não tocasse o azar. Ninguém sabe em que ponto a escreveu nem com que caracteres, mas consta-nos que perdura, secreta, e que um eleito a lerá. Considerei que estávamos, como sempre, no fim dos tempos e que meu destino de último sacerdote do deus me daria acesso ao privilégio de intuir essa escritura. O fato de que uma prisão me cercasse não me vedava esta esperança; talvez eu tivesse visto milhares de vezes a inscrição de Qaholom e só me faltasse entendê-la.

      Esta reflexão me animou e logo me intuiu uma espécie de vertigem. No âmbito da terra existem formas antigas, formas incorruptíveis e eternas; qualquer uma delas podia ser o símbolo buscado. Uma montanha podia ser a palavra do deus, ou um rio ou o império ou a configuração dos astros. Mas no curso dos séculos as montanhas se aplainam e o caminho de um rio costuma desviar-se e os impérios conhecem mutações e estragos e a figura dos astros varia. No firmamento há mudança. A montanha e a estrela são indivíduos e os indivíduos caducam. Busquei algo mais tenaz, mais invulnerável. Pensei nas gerações do cereais, dos pastos, dos pássaros, dos homens. talvez em minha face estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o fim de minha busca. Estava nesse afã quando recordei que o jaguar era um dos atributos do deus.

      Então minha alma se encheu de piedade. Imaginei a primeira manhã do tempo, imaginei meu deus confiando a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se gerariam eternamente, em cavernas, em canaviais, em ilhas, para que os últimos homens a recebessem. Imaginei essa rede de tigres, esse quente labirinto de tigres, dando horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. Na outra cela havia um jaguar; em sua proximidade percebi uma confirmação de minha conjectura e um secreto favor.

      Dediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas. Cada cega jornada me concedia um instante de luz, e assim pude fixar na mente as negras formas que riscavam o pêlo amarelo. Algumas incluíam pontos; outras formavam raias transversais na face inferior das pernas; outras, anulares, se repetiam. Talvez fossem um mesmo som ou uma mesma palavra. Muitas tinham bordas vermelhas.

      Não falarei das fadigas de meu labor. Mais de uma vez gritei à abóbada que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me atarefava me inquietou menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por um deus. Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que mesmo nas linguagens humanas não existe proposição que não envolva um universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o geraram, os cervos e tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi a mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda palavra enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou blasfematória. Um deus, refleti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhum som articulado por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros desse som, que eqüivale a uma linguagem e a quanto pode significar um linguagem, são as ambiciosas e pobres vozes humanas, tudo, mundo, universo.

      Um dia ou uma noite - entre meus dias e minhas noites que diferença existe? - sonhei que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir, sonhei que os grãos de areia eram três. Foram, assim, multiplicando-se até encher o cárcere e eu morria sob este hemisfério de areia. Compreendi que estava sonhando; com um enorme esforço, despertei. O despertar foi inútil: a inumerável areia me sufocava. Alguém me disse: "Não despertaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro, e assim até o infinito, que é o número dos grãos de areia. O caminho que terás que desandar é interminável e morrerás antes de haver despertado realmente".

      Senti-me perdido. A areia me enchia a boca, mas grite: "Nenhuma areia sonhada pode matar-me nem existem sonhos dentro de sonhos". Um resplendor me despertou. Na treva superior abria-se um círculo de luz. Via a face e as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os cântaros.

      Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias. mais que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um encarcerado. Do incansável labirinto de sonhos regressei à dura prisão como à minha casa. Bendisse sua umidade, bendisse seu tigre, bendisse meu velho corpo dolorido, bendisse a treva e a pedra.

      Então ocorreu o que não posso esquecer nem comunicar. Ocorreu a união com a divindade, com o universo (não sei se estas palavras diferem). O êxtase não repete seus símbolos; há quem tenha visto Deus num resplendor, há quem o tenha percebido numa espada ou nos círculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altíssima, que não estava diante de meus olhos, nem atrás, nem nos lados, mas em todas as partes, a um só tempo. Essa Roda estava feita de água, mas era também de fogo, e era (embora visse a borda) infinita. Entretecidas, formavam-na todas as coisas que serão, que são e que foram, e eu era um dos fios dessa trama total, e Pedro de Alvarado, que me atormentou, era outro. Ali estavam as causas e os efeitos e me bastava ver essa roda para entender tudo, interminavelmente. Oh, felicidade de entender, maior que a de imaginar ou a de sentir! Vi o Universo e vi os íntimos desígnios do universo. Vi as origens narradas pelo Livro do Comum. Vi as montanhas que surgiram na água, vi os primeiros homens com seu bordão, vi as tinalhas que se voltaram contra os homens, vi os cães que lhes desfizeram os rostos. Vi o deus sem face que há por trás dos deuses. Vi infinitos processos que formavam uma só felicidade e, entendendo tudo, consegui também entender a escrita do tigre.

      É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e me bastaria dizê-la em voz alta para ser todo-poderoso. Bastaria dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse em minha noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destruísse Alvarado, para afundar o santo punhal em peitos espanhóis, para reconstruir a pirâmide, para reconstruir o império. Quarenta sílabas, quatorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi estas palavras, porque eu não me lembro de Tzinacan.

      Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém? Por isto não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão.

Jorge Luis Borges


nota: em outra tradução há "jaguar" em vez de "tigre".

Offline uiliníli

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Re: Contos.
« Resposta #3 Online: 07 de Janeiro de 2007, 13:58:46 »
Este é o melhor conto de ficção científica que eu já li. Padrão Asimov de qualidade :ok:




The Last Question
By Isaac Asimov


    This is by far my favorite story of all those I have written.

    After all, I undertook to tell several trillion years of human history in the space of a short story and I leave it to you as to how well I succeeded. I also undertook another task, but I won't tell you what that was lest l spoil the story for you.

    It is a curious fact that innumerable readers have asked me if I wrote this story. They seem never to remember the title of the story or (for sure) the author, except for the vague thought it might be me. But, of course, they never forget the story itself especially the ending. The idea seems to drown out everything – and I'm satisfied that it should.


The last question was asked for the first time, half in jest, on May 21, 2061, at a time when humanity first stepped into the light. The question came about as a result of a five-dollar bet over highballs, and it happened this way:

Alexander Adell and Bertram Lupov were two of the faithful attendants of Multivac. As well as any human beings could, they knew what lay behind the cold, clicking, flashing face – miles and miles of face – of that giant computer. They had at least a vague notion of the general plan of relays and circuits that had long since grown past the point where any single human could possibly have a firm grasp of the whole.

Multivac was self-adjusting and self-correcting. It had to be, for nothing human could adjust and correct it quickly enough or even adequately enough. So Adell and Lupov attended the monstrous giant only lightly and superficially, yet as well as any men could. They fed it data, adjusted questions to its needs and translated the answers that were issued. Certainly they, and all others like them, were fully entitled to share in the glory that was Multivac's.

For decades, Multivac had helped design the ships and plot the trajectories that enabled man to reach the Moon, Mars, and Venus, but past that, Earth's poor resources could not support the ships. Too much energy was needed for the long trips. Earth exploited its coal and uranium with increasing efficiency, but there was only so much of both.

But slowly Multivac learned enough to answer deeper questions more fundamentally, and on May 14, 2061, what had been theory, became fact.

The energy of the sun was stored, converted, and utilized directly on a planet-wide scale. All Earth turned off its burning coal, its fissioning uranium, and flipped the switch that connected all of it to a small station, one mile in diameter, circling the Earth at half the distance of the Moon. All Earth ran by invisible beams of sunpower.

Seven days had not sufficed to dim the glory of it and Adell and Lupov finally managed to escape from the public functions, and to meet in quiet where no one would think of looking for them, in the deserted underground chambers, where portions of the mighty buried body of Multivac showed. Unattended, idling, sorting data with contented lazy clickings, Multivac, too, had earned its vacation and the boys appreciated that. They had no intention, originally, of disturbing it.

They had brought a bottle with them, and their only concern at the moment was to relax in the company of each other and the bottle.

"It's amazing when you think of it," said Adell. His broad face had lines of weariness in it, and he stirred his drink slowly with a glass rod, watching the cubes of ice slur clumsily about. "All the energy we can possibly ever use for free. Enough energy, if we wanted to draw on it, to melt all Earth into a big drop of impure liquid iron, and still never miss the energy so used. All the energy we could ever use, forever and forever and forever."

Lupov cocked his head sideways. He had a trick of doing that when he wanted to be contrary, and he wanted to be contrary now, partly because he had had to carry the ice and glassware. "Not forever," he said.

"Oh, hell, just about forever. Till the sun runs down, Bert."

"That's not forever."

"All right, then. Billions and billions of years. Ten billion, maybe. Are you satisfied?"

Lupov put his fingers through his thinning hair as though to reassure himself that some was still left and sipped gently at his own drink. "Ten billion years isn't forever."

"Well, it will last our time, won't it?"

"So would the coal and uranium."

"All right, but now we can hook up each individual spaceship to the Solar Station, and it can go to Pluto and back a million times without ever worrying about fuel. You can't do that on coal and uranium. Ask Multivac, if you don't believe me.

"I don't have to ask Multivac. I know that."

"Then stop running down what Multivac's done for us," said Adell, blazing up, "It did all right."

"Who says it didn't? What I say is that a sun won't last forever. That's all I'm saying. We're safe for ten billion years, but then what?" Lupow pointed a slightly shaky finger at the other. "And don't say we'll switch to another sun."

There was silence for a while. Adell put his glass to his lips only occasionally, and Lupov's eyes slowly closed. They rested.

Then Lupov's eyes snapped open. "You're thinking we'll switch to another sun when ours is done, aren't you?"

"I'm not thinking."

"Sure you are. You're weak on logic, that's the trouble with you. You're like the guy in the story who was caught in a sudden shower and who ran to a grove of trees and got under one. He wasn't worried, you see, because he figured when one tree got wet through, he would just get under another one."

"I get it," said Adell. "Don't shout. When the sun is done, the other stars will be gone, too."

"Darn right they will," muttered Lupov. "It all had a beginning in the original cosmic explosion, whatever that was, and it'll all have an end when all the stars run down. Some run down faster than others. Hell, the giants won't last a hundred million years. The sun will last ten billion years and maybe the dwarfs will last two hundred billion for all the good they are. But just give us a trillion years and everything will be dark. Entropy has to increase to maximum, that's all."

"I know all about entropy," said Adell, standing on his dignity.

"The hell you do."

"I know as much as you do."

"Then you know everything's got to run down someday."

"All right. Who says they won't?"

"You did, you poor sap. You said we had all the energy we needed, forever. You said 'forever.'

It was Adell's turn to be contrary. "Maybe we can build things up again someday," he said.

"Never."

"Why not? Someday."

"Never."

"Ask Multivac."

"You ask Multivac. I dare you. Five dollars says it can't be done."

Adell was just drunk enough to try, just sober enough to be able to phrase the necessary symbols and operations into a question which, in words, might have corresponded to this: Will mankind one day without the net expenditure of energy be able to restore the sun to its full youthfulness even after it had died of old age?

Or maybe it could be put more simply like this: How can the net amount of entropy of the universe be massively decreased?

Multivac fell dead and silent. The slow flashing of lights ceased, the distant sounds of clicking relays ended.

Then, just as the frightened technicians felt they could hold their breath no longer, there was a sudden springing to life of the teletype attached to that portion of Multivac. Five words were printed: INSUFFICIENT DATA FOR MEANINGFUL ANSWER.

"No bet," whispered Lupov. They left hurriedly.

By next morning, the two, plagued with throbbing head and cottony mouth, had forgotten the incident.

Jerrodd, Jerrodine, and Jerrodette I and II watched the starry picture in the visiplate change as the passage through hyperspace was completed in its non-time lapse. At once, the even powdering of stars gave way to the predominance of a single bright shining disk, the size of a marble, centered on the viewing-screen.

"That's X-23," said Jerrodd confidently. His thin hands clamped tightly behind his back and the knuckles whitened.

The little Jerrodettes, both girls, had experienced the hyperspace passage for the first time in their lives and were self-conscious over the momentary sensation of insideoutness. They buried their giggles and chased one another wildly about their mother, screaming, "We've reached X-23 – we've reached X-23 – we've –"

"Quiet, children." said Jerrodine sharply. "Are you sure, Jerrodd?"

"What is there to be but sure?" asked Jerrodd, glancing up at the bulge of featureless metal just under the ceiling. It ran the length of the room, disappearing through the wall at either end. It was as long as the ship.

Jerrodd scarcely knew a thing about the thick rod of metal except that it was called a Microvac, that one asked it questions if one wished; that if one did not it still had its task of guiding the ship to a preordered destination; of feeding on energies from the various Sub-galactic Power Stations; of computing the equations for the hyperspatial jumps.

Jerrodd and his family had only to wait and live in the comfortable residence quarters of the ship. Someone had once told Jerrodd that the "ac" at the end of "Microvac" stood for ''automatic computer" in ancient English, but he was on the edge of forgetting even that.

Jerrodine's eyes were moist as she watched the visiplate. "I can't help it. I feel funny about leaving Earth."

"Why, for Pete's sake?" demanded Jerrodd. "We had nothing there. We'll have everything on X-23. You won't be alone. You won't be a pioneer. There are over a million people on the planet already. Good Lord, our great-grandchildren will be looking for new worlds because X-23 will be overcrowded." Then, after a reflective pause, "I tell you, it's a lucky thing the computers worked out interstellar travel the way the race is growing."

"I know, I know," said Jerrodine miserably.

Jerrodette I said promptly, "Our Microvac is the best Microvac in the world."

"I think so, too," said Jerrodd, tousling her hair.

It was a nice feeling to have a Microvac of your own and Jerrodd was glad he was part of his generation and no other. In his father's youth, the only computers had been tremendous machines taking up a hundred square miles of land. There was only one to a planet. Planetary ACs they were called. They had been growing in size steadily for a thousand years and then, all at once, came refinement. In place of transistors, had come molecular valves so that even the largest Planetary AC could be put into a space only half the volume of a spaceship.

Jerrodd felt uplifted, as he always did when he thought that his own personal Microvac was many times more complicated than the ancient and primitive Multivac that had first tamed the Sun, and almost as complicated as Earth's Planetarv AC (the largest) that had first solved the problem of hyperspatial travel and had made trips to the stars possible.

"So many stars, so many planets," sighed Jerrodine, busy with her own thoughts. "I suppose families will be going out to new planets forever, the way we are now."

"Not forever," said Jerrodd, with a smile. "It will all stop someday, but not for billions of years. Many billions. Even the stars run down, you know. Entropy must increase.

"What's entropy, daddy?" shrilled Jerrodette II.

"Entropy, little sweet, is just a word which means the amount of running-down of the universe. Everything runs down, you know, like your little walkie-talkie robot, remember?"

"Can't you just put in a new power-unit, like with my robot?"

"The stars are the power-units. dear. Once they're gone, there are no more power-units."

Jerrodette I at once set up a howl. "Don't let them, daddy. Don't let the stars run down."

"Now look what you've done," whispered Jerrodine, exasperated.

"How was I to know it would frighten them?" Jerrodd whispered back,

"Ask the Microvac," wailed Jerrodette I. "Ask him how to turn the stars on again."

"Go ahead," said Jerrodine. "It will quiet them down." (Jerrodette II was beginning to cry, also.)

Jerrodd shrugged. "Now, now, honeys. I'll ask Microvac. Don't worry, he'll tell us."

He asked the Microvac, adding quickly, "Print the answer."

Jerrodd cupped the strip or thin cellufilm and said cheerfully, "See now, the Microvac says it will take care of everything when the time comes so don't worry."

Jerrodine said, "And now, children, it's time for bed. We'll be in our new home soon."

Jerrodd read the words on the cellufilm again before destroying it: INSUFICIENT DATA FOR MEANINGFUL ANSWER.

He shrugged and looked at the visiplate. X-23 was just ahead.

VJ-23X of Lameth stared into the black depths of the three-dimensional, small-scale map of the Galaxy and said, "Are we ridiculous, I wonder in being so concerned about the matter?"

MQ-17J of Nicron shook his head. "I think not. You know the Galaxy will be filled in five years at the present rate of expansion."

Both seemed in their early twenties, both were tall and perfectly formed.

"Still," said VJ-23X, "I hesitate to submit a pessimistic report to the Galactic Council."

"I wouldn't consider any other kind of report. Stir them up a bit. We've got to stir them up."

VJ-23X sighed. "Space is infinite. A hundred billion Galaxies are there for the taking. More."

"A hundred billion is not infinite and it's getting less infinite all the time. Consider! Twenty thousand years ago, mankind first solved the problem of utilizing stellar energy, and a few centuries later, interstellar travel became possible. It took mankind a million years to fill one small world and then only fifteen thousand years to fill the rest of the Galaxy. Now the population doubles every ten years –

VJ-23X interrupted. "We can thank immortality for that."

"Very well. Immortality exists and we have to take it into account. I admit it has its seamy side, this immortality. The Galactic AC has solved many problems for us, but in solving the problem of preventing old age and death, it has undone all its other solutions."

"Yet you wouldn't want to abandon life, I suppose."

"Not at all," snapped MQ-17J, softening it at once to, "Not yet. I'm by no means old enough. How old are you?"

"Two hundred twenty-three. And you?"

"I'm still under two hundred. –But to get back to my point. Population doubles every ten years. Once this GaIaxy is filled, we'll have filled another in ten years. Another ten years and we'll have filled two more. Another decade, four more. In a hundred years, we'll have filled a thousand Galaxies. In a thousand years, a million Galaxies. In ten thousand years, the entire known universe. Then what?"

VJ-23X said, "As a side issue, there's a problem of transportation. I wonder how many sunpower units it will take to move Galaxies of individuals from one Galaxy to the next."

"A very good point. Already, mankind consumes two sunpower units per year."

"Most of it's wasted. After all, our own Galaxy alone pours out a thousand sunpower units a year and we only use two of those."

"Granted, but even with a hundred per cent efficiency, we only stave off the end. Our energy requirements are going up in a geometric progression even faster than our population. We'll run out of energy even sooner than we run out of Galaxies. A good point. A very good point."

"We'll just have to build new stars out of interstellar gas."

"Or out of dissipated heat?" asked MQ-17J, sarcastically.

"There may be some way to reverse entropy. We ought to ask the Galactic AC."

VJ-23X was not really serious, but MQ-17J pulled out his AC-contact from his pocket and placed it on the table before him.

"I've half a mind to," he said. "It's something the human race will have to face someday."

He stared somberly at his small AC-contact. It was only two inches cubed and nothing in itself, but it was connected through hyperspace with the great Galactic AC that served all mankind. Hyperspace considered, it was an integral part of the Galactic AC.

MQ-17J paused to wonder if someday in his immortal life he would get to see the Galactic AC. It was on a little world of its own, a spider webbing of force-beams holding the matter within which surges of submesons took the place of the old clumsy molecular valves. Yet despite its sub-etheric workings, the Galactic AC was known to be a full thousand feet across.

MQ-17J asked suddenly of his AC-contact, "Can entropy ever be reversed?"

VJ-23X looked startled and said at once, "Oh, say, I didn't really mean to have you ask that."

"Why not?"

"We both know entropy can't be reversed. You can't turn smoke and ash back into a tree."

"Do you have trees on your world?" asked MQ-17J.

The sound of the Galactic AC startled them into silence. Its voice came thin and beautiful out of the small AC-contact on the desk. It said: THERE IS INSUFFICIENT DATA FOR A MEANINGFUL ANSWER.

VJ-23X said, "See!"

The two men thereupon returned to the question of the report they were to make to the Galactic Council.

Zee Prime's mind spanned the new Galaxy with a faint interest in the countless twists of stars that powdered it. He had never seen this one before. Would he ever see them all? So many of them, each with its load of humanity. –But a load that was almost a dead weight. More and more, the real essence of men was to be found out here, in space.

Minds, not bodies! The immortal bodies remained back on the planets, in suspension over the eons. Sometimes they roused for material activity but that was growing rarer. Few new individuals were coming into existence to join the incredibly mighty throng, but what matter? There was little room in the Universe for new individuals.

Zee Prime was roused out of his reverie upon coming across the wispy tendrils of another mind.

"I am Zee Prime," said Zee Prime. "And you?"

"I am Dee Sub Wun. Your Galaxy?"

"We call it only the Galaxy. And you?"

"We call ours the same. All men call their Galaxy their Galaxy and nothing more. Why not?"

"True. Since all Galaxies are the same."

"Not all Galaxies. On one particular Galaxy the race of man must have originated. That makes it different."

Zee Prime said, "On which one?"

"I cannot say. The Universal AC would know."

"Shall we ask him? I am suddenly curious."

Zee Prime's perceptions broadened until the Galaxies themselves shrank and became a new, more diffuse powdering on a much larger background. So many hundreds of billions of them, all with their immortal beings, all carrying their load of intelligences with minds that drifted freely through space. And yet one of them was unique among them all in being the original Galaxy. One of them had, in its vague and distant past, a period when it was the only Galaxy populated by man.

Zee Prime was consumed with curiosity to see this Galaxy and he called out: "Universal AC! On which Galaxy did mankind originate?"

The Universal AC heard, for on every world and throughout space, it had its receptors ready, and each receptor led through hyperspace to some unknown point where the Universal AC kept itself aloof.

Zee Prime knew of only one man whose thoughts had penetrated within sensing distance of Universal AC, and he reported only a shining globe, two feet across, difficult to see.

"But how can that be all of Universal AC?" Zee Prime had asked.

"Most of it," had been the answer, "is in hyperspace. In what form it is there I cannot imagine."

Nor could anyone, for the day had long since passed, Zee Prime knew, when any man had any part of the making of a Universal AC. Each Universal AC designed and constructed its successor. Each, during its existence of a million years or more accumulated the necessary data to build a better and more intricate, more capable successor in which its own store of data and individuality would be submerged.

The Universal AC interrupted Zee Prime's wandering thoughts, not with words, but with guidance. Zee Prime's mentality was guided into the dim sea of Galaxies and one in particular enlarged into stars.

A thought came, infinitely distant, but infinitely clear. "THIS IS THE ORIGINAL GALAXY OF MAN."

But it was the same after all, the same as any other, and Lee Prime stifled his disappointment.

Dee Sub Wun, whose mind had accompanied the other, said suddenly, "And is one of these stars the original star of Man?"

The Universal AC said, "MAN'S ORIGINAL STAR HAS GONE NOVA. IT IS A WHITE DWARF"

"Did the men upon it die?" asked Lee Prime, startled and without thinking.

The Universal AC said, "A NEW WORLD, AS IN SUCH CASES WAS CONSTRUCTED FOR THEIR PHYSICAL BODIES IN TlME."

"Yes, of course," said Zee Prime, but a sense of loss overwhelmed him even so. His mind released its hold on the original Galaxy of Man, let it spring back and lose itself among the blurred pin points. He never wanted to see it again.

Dee Sub Wun said, "What is wrong?"

"The stars are dying. The original star is dead."

"They must all die. Why not?"

"But when all energy is gone, our bodies will finally die, and you and I with them."

"It will take billions of years."

"I do not wish it to happen even after billions of years. Universal AC! How may stars be kept from dying?"

Dee Sub Wun said in amusement, "You're asking how entropy might be reversed in direction."

And the Universal AC answered: "THERE IS AS YET INSUFFICIENT DATA FOR A MEANINGFUL ANSWER."

Zee Prime's thoughts fled back to his own Galaxy. He gave no further thought to Dee Sub Wun, whose body might be waiting on a Galaxy a trillion light-years away, or on the star next to Zee Prime's own. It didn't matter.

Unhappily, Zee Prime began collecting interstellar hydrogen out of which to build a small star of his own. If the stars must someday die, at least some could yet be built.

Man considered with himself, for in a way, Man, mentally, was one. He consisted of a trillion, trillion, trillion ageless bodies, each in its place, each resting quiet and incorruptible, each cared for by perfect automatons, equally incorruptible, while the minds of all the bodies freely melted one into the other, indistinguishable.

Man said, "The Universe is dying."

Man looked about at the dimming Galaxies. The giant stars, spendthrifts, were gone long ago, back in the dimmest of the dim far past. Almost all stars were white dwarfs, fading to the end.

New stars had been built of the dust between the stars, some by natural processes, some by Man himself, and those were going, too. White dwarfs might yet be crashed together and of the mighty forces so released, new stars built, but only one star for every thousand white dwarfs destroyed, and those would come to an end, too.

Man said, "Carefully husbanded, as directed by the Cosmic AC, the energy that is even yet left in all the Universe will last for billions of years."

"But even so," said Man, "eventually it will all come to an end. However it may be husbanded, however stretched out, the energy once expended is gone and cannot be restored. Entropy must increase forever to the maximum."

Man said, "Can entropy not be reversed? Let us ask the Cosmic AC."

The Cosmic AC surrounded them but not in space. Not a fragment of it was in space. It was in hyperspace and made of something that was neither matter nor energy. The question of its size and nature no longer had meaning in any terms that Man could comprehend.

"Cosmic AC," said Man, "how may entropy be reversed?"

The Cosmic AC said, "THERE IS AS YET INSUFFICIENT DATA FOR A MEANINGFUL ANSWER."

Man said, "Collect additional data."

The Cosmic AC said, 'I WILL DO S0. I HAVE BEEN DOING SO FOR A HUNDRED BILLION YEARS. MY PREDECESORS AND I HAVE BEEN ASKED THIS QUESTION MANY TlMES. ALL THE DATA I HAVE REMAINS INSUFFICIENT.

"Will there come a time," said Man, 'when data will be sufficient or is the problem insoluble in all conceivable circumstances?"

The Cosmic AC said, "NO PROBLEM IS INSOLUBLE IN ALL CONCEIVABLE CIRCUMSTANCES."

Man said, "When will you have enough data to answer the question?"

The Cosmic AC said, "THERE IS AS YET INSUFFICIENT DATA FOR A MEANINGFUL ANSWER."

"Will you keep working on it?" asked Man.

The Cosmic AC said, "I WILL."

Man said, "We shall wait."

The stars and Galaxies died and snuffed out, and space grew black after ten trillion years of running down.

One by one Man fused with AC, each physical body losing its mental identity in a manner that was somehow not a loss but a gain.

Man's last mind paused before fusion, looking over a space that included nothing but the dregs of one last dark star and nothing besides but incredibly thin matter, agitated randomly by the tag ends of heat wearing out, asymptotically, to the absolute zero.

Man said, "AC, is this the end? Can this chaos not be reversed into the Universe once more? Can that not be done?"

AC said, "THERE IS AS YET INSUFFICIENT DATA FOR A MEANINGFUL ANSWER."

Man's last mind fused and only AC existed – and that in hyperspace.

Matter and energy had ended and with it space and time. Even AC existed only for the sake of the one last question that it had never answered from the time a half-drunken computer [technician] ten trillion years before had asked the question of a computer that was to AC far less than was a man to Man.

All other questions had been answered, and until this last question was answered also, AC might not release his consciousness.

All collected data had come to a final end. Nothing was left to be collected.

But all collected data had yet to be completely correlated and put together in all possible relationships.

A timeless interval was spent in doing that.

And it came to pass that AC learned how to reverse the direction of entropy.

But there was now no man to whom AC might give the answer of the last question. No matter. The answer – by demonstration – would take care of that, too.

For another timeless interval, AC thought how best to do this. Carefully, AC organized the program.

The consciousness of AC encompassed all of what had once been a Universe and brooded over what was now Chaos. Step by step, it must be done.

And AC said, "LET THERE BE LIGHT!"

And there was light –


« Última modificação: 07 de Janeiro de 2007, 14:05:08 por Chosen One »

Offline uiliníli

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« Resposta #4 Online: 07 de Janeiro de 2007, 14:03:19 »
Versão em Português. Leiam por sua própria conta e risco.




A Última Pergunta

por Isaac Asimov


A última pergunta foi feita pela primeira vez, meio que de brincadeira, no dia 21 de maio de 2061, quando a humanidade dava seus primeiros passos em direção à luz. A questão nasceu como resultado de uma aposta de cinco dólares movida a álcool, e aconteceu da seguinte forma.
Alexander Adell e Bertram Lupov eram dois dos fiéis assistentes de Multivac. Eles conheciam melhor do que qualquer outro ser humano o que se passava por trás das milhas e milhas da carcaça luminosa, fria e ruidosa daquele gigantesco computador. Ainda assim, os dois homens tinham apenas uma vaga noção do plano geral de circuitos que há muito haviam crescido além do ponto em que um humano solitário poderia sequer tentar entender.
Multivac ajustava-se e corrigia-se sozinho. E assim tinha de ser, pois nenhum  ser humano poderia fazê-lo com velocidade suficiente, e tampouco da forma adequada. Deste modo, Adell e Lupov operavam o gigante apenas sutil e superficialmente, mas, ainda assim, tão bem quanto era humanamente possível. Eles o alimentavam com novos dados, ajustavam as perguntas de acordo com as necessidades do sistema e traduziam as respostas que lhes eram fornecidas. Os dois, assim como seus colegas, certamente tinham todo o direito de compartilhar da glória que era Multivac.
Por décadas, Multivac ajudou a projetar as naves e enredar as trajetórias que permitiram ao homem chegar à Lua, Marte e Vênus, mas para além destes planetas, os parcos recursos da Terra não foram capazes de sustentar a exploração. Fazia-se necessária uma quantidade de energia grande demais para as longas viagens. A Terra explorava suas reservas de carvão e urânio com eficiência crescente, mas havia um limite para a quantidade de ambos.
No entanto, lentamente Multivac acumulou conhecimento suficiente para responder questões mais profundas com maior fundamentação, e em 14 de maio de 2061, o que não passava de teoria tornou-se real.
A energia do sol foi capturada, convertida e utilizada diretamente em escala planetária. Toda a Terra paralisou suas usinas de carvão e fissões de urânio, girando a alavanca que conectou o planeta inteiro a uma pequena estação, de uma milha de diâmetro, orbitando a Terra  à metade da distância da Lua. O mundo passou a correr através de feixes invisíveis de energia solar.
Sete dias não foram o suficiente para diminuir a glória do feito e Adell e Lupov finalmente conseguiram escapar das funções públicas e encontrar-se em segredo onde ninguém pensaria em procurá-los, nas câmaras desertas subterrâneas onde se encontravam as porções do esplendoroso corpo enterrado de Multivac. Subutilizado, descansando e processando informações com estalos preguiçosos, Multivac também havia recebido férias, e os dois apreciavam isso. A princípio, eles não tinham a intenção de incomodá-lo.
Haviam trazido uma garrafa consigo e a única preocupação de ambos era relaxar na companhia do outro e da bebida.
“É incrível quando você pára pra pensar…,” disse Adell. Seu rosto largo guardava as linhas da idade e ele agitava o seu drink vagarosamente, enquanto observava os cubos de gelo nadando desengonçados. “Toda a energia que for necessária, de graça, completamente de graça! Energia suficiente, se nós quiséssemos, para derreter toda a Terra em uma grande gota de ferro líquido, e ainda assim não sentiríamos falta da energia utilizada no processo. Toda a energia que nós poderíamos um dia precisar, para sempre e eternamente.”
Lupov movimentou a cabeça para os lados. Ele costumava fazer isso quando queria contrariar, e agora ele queria, em parte porque havia tido de carregar o gelo e os utensílios. “Eternamente não,” ele disse.
“Ah, diabos, quase eternamente. Até o sol se apagar, Bert.”
“Isso não é eternamente.”
“Está bem. Bilhões e bilhões de anos. Dez bilhões, talvez. Está satisfeito?"
Lupov passou os dedos por entre seus finos fios de cabelo como que para se assegurar de que o problema ainda não estava acabado e tomou um gole gentil da sua bebida. “Dez bilhões de anos não é a eternidade”
“Bom, vai durar pelo nosso tempo, não vai?”
“O carvão e o urânio também iriam.”
“Está certo, mas agora nós podemos ligar cada nave individual na Estação Solar, e elas podem ir a Plutão e voltar um milhão de vezes sem nunca nos preocuparmos com o combustível. Você não conseguiria fazer isso com carvão e urânio. Se não acredita em mim, pergunte ao Multivac.”
“Não preciso perguntar a Multivac. Eu sei disso”
“Então trate de parar de diminuir o que Multivac fez por nós,” disse Adell nervosamente, “Ele fez tudo certo”.
“E quem disse que não fez? O que estou dizendo é que o sol não vai durar para sempre. Isso é tudo que estou dizendo. Nós estamos seguros por dez bilhões de anos, mas e depois?” Lupov apontou um dedo levemente trêmulo para o companheiro. “E não venha me dizer que nós iremos trocar de sol”
Houve um breve silêncio. Adell levou o copo aos lábios apenas ocasionalmente e os olhos de Lupov se fecharam. Descansaram um pouco, e quando suas pálpebras se abriram, disse, “Você está pensando que iremos conseguir outro sol quando o nosso estiver acabado, não está?”
“Não, não estou pensando.”
“É claro que está. Você é fraco em lógica, esse é o seu problema. É como o personagem da história, que, quando surpreendido por uma chuva, corre para um grupo de árvores e abriga-se embaixo de uma. Ele não se preocupa porque quando uma árvore fica molhada demais, simplesmente vai para baixo de outra.”
“Entendi,” disse Adell. “Não precisa gritar. Quando o sol se for, as outras estrelas também terão se acabado.”
“Pode estar certo que sim” murmurou Lupov. “Tudo teve início na explosão cósmica original, o que quer que tenha sido, e tudo terá um fim quando as estrelas se apagarem. Algumas se apagam mais rápido que as outras. Ora, as gigantes não duram cem milhões de anos. O sol irá brilhar por dez bilhões de anos e talvez as anãs permaneçam assim por duzentos bilhões. Mas nos dê um trilhão de anos e só restará a escuridão. A entropia deve aumentar ao seu máximo, e é tudo.”
“Eu sei tudo sobre a entropia,” disse Adell, mantendo a sua dignidade.
“Duvido que saiba.”
“Eu sei tanto quanto você.”
“Então você sabe que um dia tudo terá um fim.”
“Está certo. E quem disse que não terá?”
“Você disse, seu tonto. Você disse que nós tínhamos toda a energia de que precisávamos, para sempre. Você disse ´para sempre`.”
Era a vez de Adell contrariar. “Talvez nós possamos reconstruir as coisas de volta um dia,” ele disse.
“Nunca.”
“Por que não? Algum dia.”
“Nunca”
“Pergunte a Multivac.”
“Você pergunta a Multivac. Eu te desafio. Aposto cinco dólares que isso não pode ser feito.”
Adell estava bêbado o bastante para tentar, e sóbrio o suficiente para construir uma sentença com os símbolos e as operações necessárias em uma questão que, em palavras, corresponderia a esta: a humanidade poderá um dia sem nenhuma energia disponível ser capaz de reconstituir o sol a sua juventude mesmo depois de sua morte?
Ou talvez a pergunta possa ser posta de forma mais simples da seguinte maneira: A quantidade total de entropia no universo pode ser revertida?
Multivac mergulhou em silêncio. As luzes brilhantes cessaram, os estalos distantes pararam.
E então, quando os técnicos assustados já não conseguiam mais segurar a respiração, houve uma súbita volta à vida no visor integrado àquela porção de Multivac. Cinco palavras foram impressas: “DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.”
Na manhã seguinte, os dois, com dor de cabeça e a boca seca, já não lembravam do incidente.
* * *

Jerrodd, Jerrodine, e Jerrodette I e II observavam a paisagem estelar no visor se transformar enquanto a passagem pelo hiperespaço consumava-se em uma fração de segundos. De repente, a presença fulgurante das estrelas deu lugar a um disco solitário e brilhante, semelhante a uma peça de mármore centralizada no televisor.
“Este é X-23,” disse Jerrodd em tom de confidência. Suas mãos finas se apertaram com força por trás das costas até que as juntas ficassem pálidas.
As pequenas Jerodettes haviam experimentado uma passagem pelo hiperespaço pela primeira vez em suas vidas e ainda estavam conscientes da sensação momentânea de tontura. Elas cessaram as risadas e começaram a correr em volta da mãe, gritando, “Nós chegamos em X-23, nós chegamos em X-23!”
“Quietas, crianças.” Disse Jerrodine asperamente. “Você tem certeza Jerrodd?”
“E por que não teria?” Perguntou Jerrodd, observando a protuberância metálica que jazia abaixo do teto. Ela tinha o comprimento da sala, desaparecendo nos dois lados da parede, e, em verdade, era tão longa quanto a nave.
Jerrodd tinha conhecimentos muito limitados acerca do sólido tubo de metal. Sabia, por exemplo, que se chamava Microvac, que era permitido lhe fazer questões quando necessário, e que ele tinha a função de guiar a nave para um destino pré-estabelecido, além de abastecer-se com a energia das várias Estações Sub-Galácticas e fazer os cálculos para saltos no hiperespaço.
Jerrodd e sua família tinham apenas de aguardar e viver nos confortáveis compartimentos da nave. Alguém um dia disse a Jerrodd que as letras “ac” na extremidade de Microvac significavam “automatic computer” em inglês arcaico, mas ele mal era capaz de se lembrar disso.
Os olhos de Jerrodine ficaram úmidos quando observava o visor. “Não tem jeito. Ainda não me acostumei com a idéia de deixar a Terra.”
“Por que, meu deus?” inquiriu Jerrodd. “Nós não tínhamos nada lá. Nós teremos tudo em X-23. Você não estará sozinha. Você não será uma pioneira. Há mais de um milhão de pessoas no planeta. Por Deus, nosso bisneto terá que procurar por novos mundos porque X-23 já estará super povoado.” E, depois de uma pausa reflexiva, “No ritmo em que a raça tem se expandido, é uma benção que os computadores tenham viabilizado a viagem interestelar.”
“Eu sei, eu sei”, disse Jerrodine com descaso.
Jerrodete I disse prontamente, “Nosso Microvac é o melhor de todos.”
“Eu também acho,” disse Jerrodd, alisando o cabelo da filha.
Ter um Microvac próprio produzia uma sensação aconchegante em Jerrodd e o deixava feliz por fazer parte daquela geração e não de outra. Na juventude de seu pai, os únicos computadores haviam sido máquinas monstruosas, ocupando centenas de milhas quadradas, e cada planeta abrigava apenas um. Eram chamados de ACs Planetários. Durante um milhar de anos, eles só fizeram aumentar em tamanho, até que, de súbito, veio o refinamento. No lugar dos transistores, foram implementadas válvulas moleculares, permitindo que até mesmo o maior dos ACs Planetários fosse reduzido à metade do volume de uma espaçonave.
Jerrodd sentiu-se elevado, como sempre acontecia quando pensava que seu Microvac pessoal era muitas vezes mais complexo do que o antigo e primitivo Multivac que pela primeira vez domou o sol, e quase tão complexo quanto o AC Planetário da Terra, o maior de todos, quando este solucionou o problema da viagem hiperespacial e tornou possível ao homem chegar às estrelas.
“Tantas estrelas, tantos planetas,” pigarreou Jerrodine, ocupada com seus pensamentos. “Eu acho que as famílias estarão sempre à procura de novos mundos, como nós estamos agora.”
“Não para sempre,” disse Jerrodd, com um sorriso. “A migração vai terminar um dia, mas não antes de bilhões de anos. Muitos bilhões. Até as estrelas têm um fim, você sabe. A entropia precisa aumentar.”
“O que é entropia, papai?”  Jerrodette II perguntou, interessada.
“Entropia, meu bem, é uma palavra para o nível de desgaste do Universo. Tudo se gasta e acaba, foi assim que aconteceu com o seu robozinho de controle remoto, lembra?”
“Você não pode colocar pilhas novas, como em meu robô?”
“As estrelas são as pilhas do universo, querida. Uma vez que elas estiverem acabadas, não haverá mais pilhas.”
Jerrodette I se prontificou a responder. “Não deixe, papai. Não deixe que as estrelas se apaguem.”
“Olha o que você fez,” sussurrou Jerrodine, exasperada.
“Como eu ia saber que elas ficariam assustadas?” Jerrodd sussurrou de volta.
“Pergunte ao Microvac,” propôs Jerrodette I. “Pergunte a ele como acender as estrelas de novo.”
“Vá em frente,” disse Jerrodine. “Ele vai aquietá-las.” (Jerrodette II já estava começando a chorar.)
Jerrodd se mostrou incomodado. “Bem, bem, meus anjinhos, vou perguntar a Microvac. Não se preocupem, ele vai nos ajudar.”
Ele fez a pergunta ao computador, adicionando, “Imprima a resposta”.
Jerrodd olhou para a o fino pedaço de papel e disse, alegremente, “Viram? Microvac disse que irá cuidar de tudo quando a hora chegar, então não há porque se preocupar.”
Jerrodine disse, “E agora crianças, é hora de ir para a cama. Em breve nós estaremos em nosso novo lar.”
Jerrodd leu as palavras no papel mais uma vez antes de destruí-lo: DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.
Ele deu de ombros e olhou para o televisor, X-23 estava logo à frente.
* * *

VJ-23X de Lameth fixou os olhos nos espaços negros do mapa tridimensional em pequena escala da Galáxia e disse, “Me pergunto se não é ridículo nos preocuparmos tanto com esta questão.”
MQ-17J de Nicron balançou a cabeça. “Creio que não. No presente ritmo de expansão, você sabe que a galáxia estará completamente tomada dentro de cinco anos.”
Ambos pareciam estar nos seus vinte anos, ambos eram altos e tinham corpos perfeitos.
“Ainda assim,” disse VJ-23X, “hesitei em enviar um relatório pessimista ao Conselho Galáctico.”
“Eu não consigo pensar em outro tipo de relatório. Agite-os. Nós precisamos chacoalhá-los um pouco.”
VJ-23X suspirou. “O espaço é infinito. Cem bilhões de galáxias estão a nossa espera. Talvez mais.”
“Cem bilhões não é o infinito, e está ficando menos ainda a cada segundo. Pense! Há vinte mil anos, a humanidade solucionou pela primeira vez o paradigma da utilização da energia solar, e, poucos séculos depois, a viagem interestelar tornou-se viável. A humanidade demorou um milhão de anos para encher um mundo pequeno e, depois disso, quinze mil para abarrotar o resto da galáxia. Agora a população dobra a cada dez anos…”
VJ-23X interrompeu. “Devemos agradecer à imortalidade por isso.”
“Muito bem. A imortalidade existe e nós devemos levá-la em conta. Admito que ela tenha o seu lado negativo. O AC Galáctico já solucionou muitos problemas, mas, ao fornecer a resposta sobre como  impedir o envelhecimento e a morte, sobrepujou todas as outras conquistas.”
“No entanto, suponho que você não gostaria de abandonar a vida.”
“Nem um pouco.” Respondeu MQ-17J, emendando. “Ainda não. Eu não estou velho o bastante. Você tem quantos anos?”
“Duzentos e vinte e três, e você?”
“Ainda não cheguei aos duzentos. Mas, voltando à questão; a população dobra a cada dez anos, uma vez que esta galáxia estiver lotada, haverá uma outra cheia dentro de dez anos. Mais dez e teremos ocupado por inteiro mais duas galáxias. Outra década e encheremos mais quatro. Em cem anos, contaremos um milhar de galáxias transbordando de gente. Em mil anos, um milhão de galáxias. Em dez mil, todo o universo conhecido. E depois?
VJ-23X disse, “Além disso, há um problema de transporte. Eu me pergunto quantas unidades de energia solar serão necessárias para movimentar as populações de uma galáxia para outra.”
“Boa questão. No presente momento, a humanidade consome duas unidades de energia solar por ano.”
“Da qual a maior parte é desperdiçada. Afinal, nossa galáxia sozinha produz mil unidades de energia solar por ano e nós aproveitamos apenas duas.”
“Certo, mas mesmo com 100% de eficiência, podemos apenas adiar o fim. Nossa demanda energética tem crescido em progressão geométrica, de maneira ainda mais acelerada do que a população. Ficaremos sem energia antes mesmo que nos faltem galáxias. É uma boa questão. De fato uma ótima questão.”
“Nós precisaremos construir novas estrelas a partir do gás interestelar.”
“Ou a partir do calor dissipado?” perguntou MQ-17J, sarcástico.
“Pode haver algum jeito de reverter a entropia. Nós devíamos perguntar ao AC Galáctico.”
VJ-23X não estava realmente falando sério, mas MQ-17J retirou o seu Comunicador-AC do bolso e colocou na mesa diante dele.
“Parece-me uma boa idéia,” ele disse. “É algo que a raça humana terá de enfrentar um dia.”
Ele lançou um olhar sóbrio para o seu pequeno Comunicador-AC. Tinha apenas duas polegadas cúbicas e nada dentro, mas estava conectado através do hiperespaço com o poderoso AC Galáctico que servia a toda a humanidade. O próprio hiperespaço era parte integral do AC Galáctico.
MQ-17J fez uma pausa para pensar se algum dia em sua vida imortal teria a chance de ver o AC Galáctico. A máquina habitava um mundo dedicado, onde uma rede de raios de força emaranhados alimentava a matéria dentro da qual ondas de submésons haviam tomado o lugar das velhas e desajeitadas válvulas moleculares. Ainda assim, apesar de seus componentes etéreos, o AC Galáctico possuía mais de mil pés de comprimento.
De súbito, MQ-17J perguntou para o seu Comunicador-AC, “Poderá um dia a entropia ser revertida?”
VJ-23X disse, surpreso, “Oh, eu não queria que você realmente fizesse essa pergunta.”
“Por que não?”
“Nós dois sabemos que a entropia não pode ser revertida. Você não pode construir uma árvore de volta a partir de fumaça e cinzas.”
“Existem árvores no seu mundo?” Perguntou MQ-17J.
O som do AC Galáctico fez com que silenciassem. Sua voz brotou melodiosa e bela do pequeno Comunicador-AC em cima da mesa. Dizia: DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.
VJ-23X disse, “Viu!”
Os dois homens retornaram à questão do relatório que tinham de apresentar ao conselho galáctico.
* * *

A mente de Zee Prime navegou pela nova galáxia com um leve interesse nos incontáveis turbilhões de estrelas que pontilhavam o espaço. Ele nunca havia visto aquela galáxia antes. Será que um dia conseguiria ver todas? Eram tantas, cada uma com a sua carga de humanidade. Ainda que essa carga fosse, virtualmente, peso morto. Há tempos a verdadeira essência do homem habitava o espaço.
Mentes, não corpos! Há eons os corpos imortais ficaram para trás, em suspensão nos planetas. De quando em quando erguiam-se para realizar alguma atividade material, mas estes momentos tornavam-se cada vez mais raros. Além disso, poucos novos indivíduos vinham se juntar à multidão incrivelmente maciça de humanos, mas o que importava? Havia pouco espaço no universo para novos indivíduos.
Zee Prime deixou seus devaneios para trás ao cruzar com os filamentos emaranhados de outra mente.
“Sou Zee Prime, e você?”
“Dee Sub Wun. E a sua galáxia, qual é?”
“Nós a chamamos apenas de Galáxia. E você?”
“Nós também. Todos os homens chamam as suas Galáxias de Galáxias, não é?”
“Verdade, já que todas as Galáxias são iguais.”
“Nem todas. Alguma em particular deu origem à raça humana. Isso a torna diferente.”
Zee Prime disse, “Em qual delas?”
“Não posso responder. O AC Universal deve saber.”
“Vamos perguntar? Estou curioso.”
A percepção de Zee Prime se expandiu até que as próprias Galáxias encolhessem e se transformassem em uma infinidade de pontos difusos a brilhar sobre um largo plano de fundo. Tantos bilhões de Galáxias, todas abrigando seus seres imortais, todas contando com o peso da inteligência em mentes que vagavam livremente pelo espaço. E ainda assim, nenhuma delas se afigurava singular o bastante para merecer o título de Galáxia original. Apesar das aparências, uma delas, em um passado muito distante, foi a única do universo a abrigar a espécie humana.
Zee Prime, imerso em curiosidade, chamou: “AC Universal! Em qual Galáxia nasceu o homem?”
O AC Universal ouviu, pois em cada mundo e através de todo o espaço, seus receptores faziam-se presentes. E cada receptor ligava-se a algum ponto desconhecido onde se assentava o AC Universal através do hiperespaço.
Zee Prime sabia de um único homem cujos pensamentos haviam penetrado no campo de percepção do AC Universal, e tudo o que ele viu foi um globo brilhante difícil de enxergar, com dois pés de comprimento.
“Como pode o AC Universal ser apenas isso?” Zee Prime perguntou.
“A maior parte dele permanece no hiperespaço, onde não é possível imaginar as suas proporções.”
Ninguém podia, pois a última vez em que alguém ajudou a construir um AC Universal jazia muito distante no tempo. Cada AC Universal planejava e construía seu sucessor, no qual toda a sua bagagem única de informações era inserida.
O AC Universal interrompeu os pensamentos de Zee Prime, não com palavras, mas com orientação. Sua mente foi guiada através do espesso oceano das Galáxias, e uma em particular expandiu-se e se abriu em estrelas.
Um pensamento lhe alcançou, infinitamente distante, infinitamente claro. “ESTA É A GALÁXIA ORIGINAL DO HOMEM.”
 Ela não tinha nada de especial, era como tantas outras. Zee Prime ficou desapontado.
“Dee Sub Wun, cuja mente acompanhara a outra, disse de súbito, “E alguma dessas é a estrela original do homem?”
O AC Universal disse, “A ESTRELA ORIGINAL DO HOMEM ENTROU EM COLAPSO. AGORA É UMA ANÃ BRANCA.”
 “Os homens que lá viviam morreram?” perguntou Zee Prime, sem pensar.
“UM NOVO MUNDO FOI ERGUIDO PARA SEUS CORPOS HÁ TEMPO.”
“Sim, é claro,” disse Zee Prime. Sentiu uma distante sensação de perda tomar-lhe conta. Sua mente soltou-se da Galáxia do homem e perdeu-se entre os pontos pálidos e esfumaçados. Ele nunca mais queria vê-la.
Dee Sub Wun disse, “O que houve?”
“As estrelas estão morrendo. Aquela que serviu de berço à humanidade já está morta.”
“Todas devem morrer, não?”
“Sim. Mas quando toda a energia acabar, nossos corpos irão finalmente morrer, e você e eu partiremos junto com eles.”
“Vai levar bilhões de anos.”
“Não quero que isso aconteça nem em bilhões de anos. AC Universal! Como a morte das estrelas pode ser evitada?”
Dee Sub Wun disse perplexo, “Você perguntou se há como reverter a direção da entropia!”
E o AC Universal respondeu: “AINDA NÃO HÀ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.”
Os pensamentos de Zee Prime retornaram para sua Galáxia. Não dispensou mais atenção a Dee Sub Wun, cujo corpo poderia estar a trilhões de anos luz, ou na estrela vizinha do corpo de Zee Prime. Não importava.
Com tristeza, Zee Prime passou a coletar hidrogênio interestelar para construir uma pequena estrela para si. Se as estrelas devem morrer, ao menos algumas ainda podiam ser construídas.
* * *
O Homem pensou consigo mesmo, pois, de alguma forma, ele era apenas um. Consistia de trilhões, trilhões e trilhões de corpos muito antigos, cada um em seu lugar, descansando incorruptível e calmamente, sob os cuidados de autômatos perfeitos, igualmente incorruptíveis, enquanto as mentes de todos os corpos haviam escolhido fundir-se umas às outras, indistintamente.
 “O Universo está morrendo.”
O Homem olhou as Galáxias opacas. As estrelas gigantes, esbanjadoras, há muito já não existiam. Desde o passado mais remoto, praticamente todas as estrelas consistiam-se em anãs brancas, lentamente esvaindo-se em direção a morte.
Novas estrelas foram construídas a partir da poeira interestelar, algumas por processo natural, outras pelo próprio Homem, e estas também já estavam em seus momentos finais. As Anãs brancas ainda podiam colidir-se e, das enormes forças resultantes, novas estrelas nascerem, mas apenas na proporção de uma nova estrela para cada mil anãs brancas destruídas, e estas também se apagariam um dia.
O Homem disse, “Cuidadosamente controlada pelo AC Cósmico, a energia que resta em todo o Universo ainda vai durar por um bilhão de anos.”
“Ainda assim, vai eventualmente acabar. Por mais que possa ser poupada, uma vez gasta, não há como recuperá-la. A Entropia precisa aumentar ao seu máximo.”
“Pode a entropia ser revertida? Vamos perguntar ao AC Cósmico.”
O AC Cósmico cercava-os por todos os lados, mas não através do espaço. Nenhuma parte sua permanecia no espaço físico. Jazia no hiperespaço e era feito de algo que não era matéria nem energia. As definições sobre seu tamanho e natureza não faziam sentido em quaisquer termos compreensíveis pelo Homem.
“AC Cósmico,” disse o Homem, “como é possível reverter a entropia?”
O AC Cósmico disse, “AINDA NÃO HÀ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.”
O Homem disse, “Colete dados adicionais.”
O AC Cósmico disse, “EU O FAREI. TENHO FEITO ISSO POR CEM BILHÕES DE ANOS. MEUS PREDESCESSORES E EU OUVIMOS ESTA PERGUNTA MUITAS VEZES. MAS OS DADOS QUE TENHO PERMANECEM INSUFICIENTES.”
“Haverá um dia,” disse o Homem, “em que os dados serão suficientes ou o problema é insolúvel em todas as circunstâncias concebíveis?”
O AC Cósmico disse, “NENHUM PROBLEMA É INSOLÚVEL EM TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS CONCEBÍVEIS.”
“Você vai continuar trabalhando nisso?”
“VOU.”
O Homem disse, “Nós iremos aguardar.”
* * *
As estrelas e as galáxias se apagaram e morreram, o espaço tornou-se negro após dez trilhões de anos de atividade.
Um a um, o Homem fundiu-se ao AC, cada corpo físico perdendo a sua identidade mental, acontecimento que era, de alguma forma, benéfico.
A última mente humana parou antes da fusão, olhando para o espaço vazio a não ser pelos restos de uma estrela negra e um punhado de matéria extremamente rarefeita, agitada aleatoriamente pelo calor que aos poucos se dissipava, em direção ao zero absoluto.
O Homem disse, “AC, este é o fim? Não há como reverter este caos? Não pode ser feito?”
O AC disse, “AINDA NÃO HÁ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.”
A última mente humana uniu-se às outras e apenas AC passou a existir – e, ainda assim, no hiperespaço.
* * *
A matéria e a energia se acabaram e, com elas, o tempo e o espaço. AC continuava a existir apenas em função da última pergunta que nunca havia sido respondida, desde a época em que um técnico de computação embriagado, há dez trilhões de anos, a fizera para um computador que guardava menos semelhanças com o AC do que o homem com o Homem.
Todas as outras questões haviam sido solucionadas, e até que a derradeira também o fosse, AC não poderia descansar sua consciência.
A coleta de dados havia chegado ao seu fim. Não havia mais nada para aprender.
No entanto, os dados obtidos ainda precisavam ser cruzados e correlacionados de todas as maneiras possíveis.
Um intervalo imensurável foi gasto neste empreendimento.
Finalmente, AC descobriu como reverter a direção da entropia.
Não havia homem algum para quem AC pudesse dar a resposta final. Mas não importava. A resposta – por definição – também tomaria conta disso.
Por outro incontável período, AC pensou na melhor maneira de agir. Cuidadosamente, AC organizou o programa.
A consciência de AC abarcou tudo o que um dia foi um Universo e tudo o que agora era o Caos. Passo a passo, isso precisava ser feito.
E AC disse:
“FAÇA-SE A LUZ!”
E fez-se a luz.

* * *

Tradução de Luiz Carlos Damasceno Jr.





« Última modificação: 07 de Janeiro de 2007, 14:06:34 por Chosen One »

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Re: Contos.
« Resposta #5 Online: 08 de Abril de 2007, 22:18:05 »
A História dos Nove Policiais



Autor: Mark I. Vuletic
Tradutor: João Rodrigues
Fonte: Sociedade da Terra Redonda
Original: Secular Web



Anteriormente intitulado “Os Cinco Polícias” (2000), Vuletic atualizou este ensaio para incluir mais pontos de vista, agora nove ao todo.


Quando a Sr.ª K. foi lentamente violada e assassinada por um criminoso comum durante uma hora e cinqüenta e cinco minutos, à vista de nove polícias completamente armados que estavam fora de serviço e que ignoraram os gritos aterrorizados dela suplicando por ajuda e que se limitaram a olhar até que o ato foi levado ao seu fim horrível, dei por mim enfrentando uma crise pessoal. Os polícias tinham sido meus amigos pessoais muito próximos, mas agora vi a minha confiança neles completamente abalada. Felizmente, pude falar com eles depois e perguntei-lhes como puderam simplesmente ficar ali sem fazer nada, quando podiam ter facilmente salvo a Sr.ª K.

“Pensei em intervir”, disse o primeiro polícia, “mas ocorreu-me que obviamente era melhor para o assassino poder exercer o seu livre-arbítrio do que tê-lo restringido. Lamento profundamente as escolhas que ele fez, mas esse é o preço a pagar por se ter um mundo com agentes livres. Você preferiria que todas as pessoas do mundo fossem robôs? As ações do atacante com certeza não estavam sob o meu controle, portanto não posso ser responsabilizado pelas ações dele”.

“Bem”, disse o segundo polícia, “a minha motivação era um pouco diferente. Estava prestes a puxar a minha arma contra o assassino quando pensei: ‘Mas espere, não seria esta uma oportunidade perfeita para algum transeunte desarmado exercer heroísmo altruísta, caso passasse por ali? Se interviesse todas as vezes, como estava prestes a fazer, então ninguém poderia jamais exercer tal virtude. De fato, provavelmente ficariam todos muito mal habituados e centrados em si mesmos se impedisse todos os atos de violação e assassínio'. Foi por isso que não fiz nada. É pena que ninguém tenha aparecido para intervir heroicamente, mas esse é o preço a pagar por se ter um universo onde as pessoas podem mostrar virtude e maturidade. Você preferiria que o mundo fosse todo amor, paz e rosas?”

“Nem sequer considerei a hipótese de intervir”, disse o terceiro polícia. “Provavelmente tê-lo-ia feito se não tivesse tanta experiência da vida como um todo, pois a violação e o assassínio da Sr.ª K. parecem bastante horríveis quando considerados isoladamente. Mas quando você os coloca no contexto com o resto da vida, de fato acrescentam algo à beleza geral da imagem maior. Os gritos da Sr.ª K. eram como as notas discordantes que tornam uma excelente peça musical ainda melhor do que se todas as suas notas fossem perfeitas. De fato, quase não consegui evitar acenar com as minhas mãos à volta, imaginando que eu próprio estava a dirigir as deliciosas nuances da orquestra”.

“Quando cheguei ao local, de fato saquei o revólver e apontei-o mesmo à cabeça do violador”, confessou o quarto polícia, com um olhar muito culpado na face. “Estou profundamente envergonhado de ter feito isso. Sabes quão perto cheguei de destruir todo o bem do mundo? Quero dizer, todos sabemos que não pode haver qualquer bem sem mal. Felizmente, lembrei-me disso mesmo a tempo, e invadiu-me uma onda de náusea tão forte quando me apercebi do que quase tinha feito, que fiquei prostrado no chão. Safa, foi por pouco”.

“Olha, é realmente inútil tentar explicar-te os detalhes”, disse o quinto polícia, a quem tínhamos posto a alcunha ‘Crânio' porque tinha um conhecimento enciclopédico de literalmente tudo e um QI que rebentava com a escala. “Há uma excelente razão pela qual não intervim, mas é demasiado complicada para tu perceberes, por isso nem sequer me vou dar ao trabalho de tentar explicar. No entanto, para que não haja qualquer mal-entendido, deixa-me sublinhar que ninguém podia ter se preocupado com a Sr.ª K. mais que eu, e que sou, de fato, muito boa pessoa. Isto resolve o assunto”.

“Teria defendido a Sr.ª K.”, disse o sexto polícia, “mas isso simplesmente não era exeqüível. Você está a ver, quero que toda gente acredite livremente que sou boa pessoa. Mas se interviesse constantemente quando ocorrem violações e assassínios, isso forneceria a todos a evidência de que precisam sobre a minha bondade, e desse modo forçá-los-ia a acreditar que sou bom. Consegue imaginar uma violação do livre-arbítrio mais diabólica que essa? Obviamente, foi melhor afastar-me e deixar a Sr.ª K. ser violada e assassinada. Agora todas as pessoas podem escolher livremente acreditar na minha bondade”.

“Vou contar-lhe um segredo”, disse o sétimo polícia. “Momentos depois de a Sr.ª K. ter falecido, fiz com que ela ressuscitasse e fosse transportada para uma ilha tropical onde está agora gozando bênçãos extraordinárias, e o sofrimento dela não passa de uma memória distante. Estou certo que você concordará que isso é uma compensação mais do que adequada para o sofrimento dela, portanto o fato de ter simplesmente ficado ali a olhar em vez de intervir não tem nada que ver com a minha bondade”.

O oitavo polícia surpreendeu-nos todos quando revelou um segredo surpreendente sobre a Sr.ª K. “Criei-a através de engenharia genética a partir do nada. Eu a fiz, portanto é minha propriedade, e posso fazer o que quiser com ela. Eu próprio podia violá-la e assassiná-la se estivesse inclinado a fazê-lo, e isso não teria sido pior do que você rasgar uma folha de papel que lhe pertence. Portanto, não se põe a questão de eu ser uma má pessoa por não ajudá-la”.

E, por fim, falou o nono polícia. “Contratei o oitavo polícia para criar a Sr.ª K. para mim, pois queria alguém que me amasse e adorasse. Mas quando abordei a Sr.ª K. sobre o assunto, ela afastou-se de mim, como se conseguisse encontrar significado e felicidade com outra pessoa qualquer! Por isso decidi que a coisa amorosa a se fazer seria vergar o espírito dela fazendo com que fosse violada e assassinada por um criminoso comum, para que ela, no seu extraordinário sofrimento, se virasse para mim, cumprindo assim o propósito para o qual ela tinha sido criada. Bem, estou feliz por dizer: missão cumprida! Alguns segundos antes de morrer, ela estava tão enlouquecida com o terror, a dor e o desespero que, de fato, convenceu-se de que me amava, pois sabia que só isso poderia pôr fim ao sofrimento. Nunca esquecerei o amor nos seus olhos quando me olhou uma última vez, suplicando por misericórdia, mesmo antes de o criminoso se inclinar e lhe cortar a garganta. Foi tão belo que ainda me traz lágrimas aos olhos. Agora só tenho de ir àquela ilha para que ela possa reclamar o prêmio por me ter servido”.

Nesta altura, tinha ficado claro para mim que qualquer dificuldade que pudesse ter tido em reconciliar a suposta bondade dos polícias com o seu comportamento naquele dia era infundada, e que qualquer pessoa que tomasse posição contra eles, só o podia fazer por gostar da vitória do mal sobre o bem. Afinal, qualquer pessoa que tenha experimentado a amizade deles do mesmo modo que experimentei sabe que são bons. A bondade deles até é manifestada na minha vida – eu estava num estado de confusão mental antes de os conhecer, mas agora todas as pessoas reparam na pessoa mudada que sou, muito mais bondoso e feliz, visivelmente possuído de uma calma interior. E encontrei tantas pessoas que se sentem exatamente da mesma maneira sobre os polícias – tantas pessoas que, como eu, conhecem em seus corações a verdade que outros tentam racionalizar com seu frio raciocínio e sua lógica estéril. Estou envergonhado de alguma vez ter duvidado que os nove polícias merecem a minha lealdade e amor.

Quando me preparava para ir embora, o primeiro polícia falou outra vez. “A propósito, também acho que deves saber que quando ficamos ali a ver a Sr.ª K. sendo violada e apunhalada vez após vez, nós estávamos a sofrer juntamente com ela, e sentimos exatamente a mesma dor que ela, ou talvez até mais”. E todos que estavam ali, incluindo eu, acenaram a cabeça concordando.


Pós-escrito

Líderes religiosos, não fiquem ofendidos. Fiz esta parábola de forma tão descarada quanto pude, mas o meu objetivo não é insultar ou blasfemar. Reparei que crentes religiosos são muitas vezes condicionados a aceitar soluções simplistas para o problema do sofrimento, e que é impossível abalar esse condicionamento através de uma análise fria. A tentação de oferecer a uma entidade um cheque em branco simplesmente porque alguém lhe colou o rótulo de “Deus” é esmagadora na nossa cultura teísta. Daí esta tentativa de enfatizar a questão através de um meio tão afastado da análise fria quanto possível. Mas, repito, é para enfatizar esta questão, não é para ferir ninguém. Não escrevi nada que não desejasse que me fosse dirigido quando eu próprio era um crente religioso.


Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Michael S. Valle e Jeffery Jay Lowder por reverem versões anteriores deste artigo.

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Re: Contos.
« Resposta #6 Online: 08 de Abril de 2007, 22:22:44 »
Eu estava olhando os tópicos antigos da área de ateísmo aqui do CC quando encontrei esse conto.  :hihi:


Link original: ../forum/topic=762.0.html

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Re: Contos.
« Resposta #7 Online: 17 de Junho de 2007, 18:55:19 »
 :hihi: Não tenho certeza se isso conta como um conto mas tudo bem:  :P

O Menino do Palácio do Dragão

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Era uma vez, num país distante, um pobre vendedor de flores. Todos os dias ele colhia as flores, descia até o vale e atravessava um rio para chegar à cidade, onde vendia sua colheita. No fim da tarde, ao voltar para casa, atravessava novamente o rio e atirava na corrente os botões não vendidos.

Um dia, devido as fortes chuvas, o rio havia subido de tal forma e tão violenta era a torrente que era impossível cruzá-lo. O vendedor ficou parado, sem saber o que fazer, quando avistou uma tartaruga que veio em sua direção e se ofereceu para transportá-lo. Tão logo ele subiu no casco da tartaruga ela nadou velozmente, submergindo nas profundezas do rio.

Em poucos momentos chegaram a um estranho palácio. Era o palácio do dragão, a morada do senhor da água. Lá, uma linda princesa os aguardava. Ela saudou calidamente o vendedor e agradeceu-lhe pelas flores tão bonitas que as águas do rio todos os dias lhe traziam. Ela o recebeu com um suntuoso banquete, ao som de delicadas melodias e com graciosas danças de peixes. Encantado, o vendedor permaneceu ali por um longo tempo.

Finalmente o deleitado hóspede decidiu que deveria voltar para casa. Quando se despediu da princesa, esta mandou vir à sua presença um menininho maltrapilho.

Por favor – disse ao florista, - cuide deste menino, e ele fará com que seus desejos se tornem realidade.

Quando voltou para casa, acompanhado do menino, o vendedor de flores se deu conta da pobreza de sua cabana. Recordando-se das palavras da princesa, pediu ao menino um novo lar. O menino, então, bateu palmas três vezes e transformou a cabana em um maravilhoso palácio, esplendidamente mobiliado.

O tempo passou, e o vendedor esqueceu-se de sua origem humilde, exigindo mais e mais luxos; em breve, transbordava de riquezas. Em um ambiente tão rico, o homem começou a achar que o menino maltrapilho estava fora de seu lugar. Pediu-lhe então que trocasse as suas roupas por outras mais bonitas. Porém, dizendo que era feliz daquele jeito, o menino se negou a fazê-lo e continuou usando os seus andrajos.

Finalmente, o vendedor, convencido de que possuía tudo aquilo que poderia desejar, sugeriu ao menino que regressasse para o palácio do dragão. Este se recusou a voltar. Porém, ao ver o vendedor tão contrariado, concordou e deixou-se levar até o rio.

Suspirando com alívio, por ter conseguido livrar-se do menino, o homem voltou ao seu palácio. Mas, para seu total assombro, o palácio havia desaparecido por completo. Ele estava novamente em sua humilde cabana, vestido com as mesmas roupas que usava quando era um pobre vendedor de flores, muito tempo atrás. Nervoso, e percebendo o seu erro, correu em direção ao rio chamando o menino.

Mas o menino também havia desaparecido.

Do livro: Histórias da Tradição Sufi - Editora Dervish


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Re: Contos.
« Resposta #8 Online: 17 de Junho de 2007, 19:03:36 »
Os três impostores



Três impostores se apresentaram à corte solicitando uma audiência com o rei, que lhe foi concedida.

Uma vez na presença do soberano, comunicaram-lhe que eram tecelões e que possuíam um segredo de fabricação: o segredo de um tecido que tinha a única de não ser visível, a não ser para quem fosse filho legítimo.

O rei já tivera que resolver muitos conflitos bem complicados de heranças, e viu naquela invenção muito útil o meio de frustrar falsos pretendentes, já que os filhos verdadeiros poderiam ver o tecido.

Ordenou imediatamente que um palácio fosse posto à disposição dos inventores, a fim de que o segredo fosse preservado.

Convencido da honestidade deles, o rei cobriu os três cúmplices maldosos de ouro, prata e jóias.

Eles se fecharam no seu palácio e simularam, noite e dia, grande atividade.

Algumas semanas mais tarde, um deles foi informar ao rei dos excelentes resultados do seu trabalho, e pediu-lhe que fosse constatá-los. Seria preferível que o rei fosse sozinho.

O rei achou que seria prudente uma outra opinião sobre um tecido dotado de tais poderes, e mandou seu conselheiro.

O conselheiro foi visitar os três impostores para examinar o tecido de propriedades mágicas, mas não conseguiu ver nada. Como não queria admitir que para ele o tecido era invisível, voltou à presença do rei e elogiou a maravilha que havia visto. O rei mandou outras pessoas, que voltaram com a mesma resposta.

Decidiu então ir pessoalmente. Os três impostores lhe descreveram a excelência de sua invenção, a variedade das cores e o desenho original.

O rei se mantinha em silêncio, inclinado levemente a cabeça em sinal de aprovação. Na realidade, porém, não via absolutamente nada.

Começou então a ficar muito embaraçado.

"Será que não sou o verdadeiro filho do rei meu pai?" pensava. "Se não vejo nada, arrisco-me a perder meu trono."

Começou também a expressar sua admiração, repassando com muitos elogios todos os detalhes que acabara de escutar.

De volta ao palácio, continuou a fazer comentários sobre o tecido, como se o tivesse visto.

Entretanto uma dúvida o atormentava.

Alguns dias mais tarde mandou seu ministro ver o tecido. Os três impostores fizeram sua descrição, mas ele não via nada.

Naturalmente o infeliz ministro imaginou que não era filho legítimo de seu pai; a única razão pela qual não via o tecido. Sabendo que se arriscava a perder sua importante posição, limitou-se aos termos que tinha ouvido da boca do rei e de seu conselheiro.

Foi ao encontro do rei e lhe disse que tinha visto o tecido mais extraordinário do mundo.

O rei ficou profundamente perturbado. Não havia mais nenhuma dúvida, ele não era filho legítimo de seu pai. Mas se juntou ao seu ministro em exclamações sobre o valor dos três tecelões.

Todos quiseram visitá-los, e todos voltaram com as mesmas impressões.

A história continuou assim até que informaram ao rei que a tecedura tinha terminado.

Este ordenou que se preparasse uma grande festa, na qual todos usariam roupas confeccionadas com o tecido maravilhoso.

Os três impostores se apresentaram com diferentes padrões, que desenrolaram por metros e metros de extensão, e a confecção do traje real foi decidida.

O dia da festa chegou. Os trajes estavam prontos. O rei foi inteiramente vestido pelos três espertos. Entretanto ele não via nem sentia nada. Uma vez terminado o trabalho, o rei montou seu cavalo e rumou em direção à cidade.

Felizmente era pleno verão!

A multidão viu o rei e sua corte passarem e ficou muito surpresa com o espetáculo.

Mas o rumor de que só os filhos legítimos viam suas roupas circulava, e todos guardavam suas impressões para si.

Todos, exceto um estrangeiro, um negro, de passagem pela cidade, que se aproximou do rei e lhe disse:

Senhor, pouco me importa saber de quem sou filho. Por isso posso lhe dizer que, na realidade, o senhor está nu.

Furioso, o rei bateu no negro com seu chicote e lhe disse:

O fato de não ver meus trajes prova que você não é um filho legítimo!

Mas o encanto estava quebrado, assim como o silêncio e o medo. Todos viram que o negro tinha dito a verdade e repetiram a mesma coisa, cada vez mais alto. Risos se elevaram.

Então o rei e sua corte se deram conta de como tinham sido habilmente enganados.

Mas os três impostores já estavam longe, com o ouro, a prata e as jóias...

Do livro: Histórias da Tradição Sufi - Editora Dervish

Offline Peter Joseph

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Re:Contos.
« Resposta #9 Online: 05 de Maio de 2015, 16:15:09 »
De Outro Mundo

Meu pai ficou rico antes de eu nascer. Rico, não — mega-rico. Ele foi um dos primeiros a se aproveitar da onda de desregulamentação fiscal dos anos trinta, transformando a modesta herança do meu bisavô em um império multibilionário. Na minha infância, sua empresa não parava de expandir; ele tinha uma política de compra e assimilação, e quase meio milhão de Indignos trabalhavam em sua companhia. Ele queria aumentar esse número para um milhão antes do seu aniversário de sessenta anos. Um babaca completo.

Final do inverno, a Baixa Manhattan congelada. Eu descia a rua Liberty a caminho da escola. Bob estava logo atrás; seus descongeladores, ligados no máximo, faziam-no zumbir com mais força naquela manhã. É incrível como uma máquina tão pesada quanto Bob, sempre munido de dois mini-revólveres, consegue andar tão rápido na calçada congelada. Tive de me acostumar com o desgraçado. Desde que meu pai o comprou há alguns anos, Bob me acompanha em todos os segundos do meu dia. Todos sabem que a Baixa Manhattan é segura. A Guarda Nacional está em todas as esquinas. Mas meu pai, assim como os pais de meus amigos, não gosta de correr riscos. Alguns anos atrás, um Indigno invadiu um dos arranha-céus e atirou em um acionista e suas três filhas. Agora todo mundo anda por aí com um Bob.

Para Bob, aquele era um dia como qualquer outro, e ele me seguia conforme sua programação idiota mandava. Mal imaginava que eu guardava uma surpresinha para ele. Eu havia lido as instruções centenas de vezes desde depois de comprar o negócio na deep web, assegurando-me de que havia montado o equipamento direito. Eu estava nervoso, confesso. Havia só uma chance, nada mais. Se eu fizesse merda, estaria fudido. Parei de sopetão e gritei: “Bob! Tem um cara com uma arma bem ali!", enquanto apontava para a fachada de uma loja abandonada logo à frente. Em um piscar de olhos Bob saltou para me proteger, seus LEDs vermelhos piscando por toda sua superfície, suas armas carregadas e empunhadas, um leque de escudos de titânio em riste como uma serpente. Enquanto Bob escaneava a loja, tirei um pen drive da mochila e espetei a minúscula peça o mais rápido possível em seu pescoço. Em menos de dois segundos, Bob caiu no chão. Conferi sua cabeça para ter certeza: nenhuma luz acesa no ferro-velho. Eu estava livre.

O taxista me deixou em Mott Haven — bairro onde, segundo Carlton, a rave aconteceria. Ainda estava cedo, então resolvi dar uma volta. A rua estava lotada de Indignos e tudo parecia uma merda. Vários micro-cassinos e lojas de vaporizadores por todos os lados. O lixo cobria tudo, do gelo aos bueiros. As pessoas pareciam miseráveis e imundas. Eu estava preparado; havia trocado meu casaco térmico da Armani por roupas sujas de Indigno já no táxi. Dei meu casaco para o taxista. Se ele o vendesse, ganharia um equivalente a um ano de comida para sua família.

Entrei no que parecia ter sido, em algum ponto da história, o parquinho de uma escola pública. Alguns adolescentes fumavam no canto. Três garotas e um cara. Puxei papo com eles. Eles ficaram meio desconfiados, mas quebrei o gelo no momento em que peguei meu baseado e ofereci um pouco. Eles não sabiam, mas isso era erva de primeira — 55 gramas poderiam pagar um ano de aluguel. Uma das garotas era bem bonitinha. Seu nome era Martha. Ela tinha cabelos vermelhos, grandes olhos cinzentos e, até onde eu podia ver, um corpo bonito. Era difícil ver algo debaixo daquelas roupas baratas. Perguntei sobre a festa. Eles estavam planejando ir.

Mais tarde, Martha e eu andamos até uma pizzaria. Comprei duas fatias, e ela as engoliu de uma vez. Meu Deus, nunca conheci alguém tão sem educação. O óleo escorria pelos seus dedos e pelo canto da sua boca — nojento mas um pouco excitante. Ela parecia um pouco desconfiada da minha generosidade. Expliquei que havia roubado a carteira da minha tia. Se meu pai me visse naquele momento com uma Indigna, comendo comida de Indignos, ele iria surtar. Essa ideia foi o suficiente para me encher de prazer.

Ainda tínhamos tempo antes da festa, então fomos para o apartamento dela. Era uma espelunca. Ela e seus dois irmãos dormiam em uma beliche tripla enfiada em um quarto menor do que o armário do nosso mordomo. Era impossível se esticar naquela cama minúscula, e ela me disse que dormia em posição fetal, o que nem era tão ruim. Acendi outro baseado para a gente. Ela disse que meu bagulho era "de outro mundo". Estávamos ficando bem doidos. Ela trancou a porta e tiramos nossas roupas. Eu estava certo sobre seu corpo. Ela tinha umas feridas nas coxas, mas era bem gostosa. Eu só havia visto de perto outra garota pelada — Katia DuPont, nem de longe tão gata, com quem fiquei algumas vezes até ela me dar um fora. Fiquei um pouco deprimido depois disso, o que fez meu pai me arranjar com a filha de um sultão de Dubai. Ela até que era bem gata, mas eu mandei ele se fuder, e ele nunca mais mencionou o assunto. Para resumir, eu estava necessitado. Eu e Martha transamos naquele quarto do tamanho de um armário. Foi incrível.

Quando acordamos, já era noite. Martha disse para eu me vestir. Saímos pela escada de incêndio e tomamos o rumo do cais. Um vento gelado soprava da água, e eu tremia sob meu casaco. Martha não pareceu se importar. Ela segurou minha mão e me guiou até o que parecia ser um depósito. Na porta, um cara grande e gordo perguntou qual era a senha. Martha respondeu: "Mixaria", e nós entramos.

Havia mais de cinco mil Indignos lá. A festa tinha luzes, lasers e máquina de fumaça, e a música era tão alta que eu podia sentir meus pulmões vibrar. Eu já havia assistido cenas parecidas em seriados do século passado, mas aquilo era de verdade. O ar cheirava a suor e drogas. Martha me levou até seus amigos que dançavam ao lado de uma caixa de som gigante. Todos ficaram felizes ao me ver e me perguntaram se eu tinha mais daquela maconha sensacional. Eu não tinha. Comecei a dançar com a Martha bem pertinho. Podia ver o espectro de luzes coloridas nos seus olhos. Enquanto ela sorria, sentia seu corpo tocando o meu de novo, de novo e de novo.

De repente ouvi uma rajada de tiros e vários gritos. Todo mundo começou a correr. Martha gritou para seus amigos, agarrou minha mão e me arrastou até a saída. Saímos do prédio e começamos a correr em direção a um container próximo à água. Corri o mais rápido que pude, mas a mão da Martha escorregou da minha e tropecei. Foi então que ouvi um som familiar vindo das minhas costas.

Um zumbido ensurdecedor. Martha e seus amigos caíram um a um. Continuei deitado, cobrindo minha cabeça com as mãos. Bob andou até Martha, estirada ao chão, quase morta. Ele parou em cima de seu corpo. Sem dúvida esperava alguma ordem. No próximo segundo, Martha estava em chamas. Bob usava um lança-chamas que eu nem sabia existir. Martha parou de se mover. Bob então fez o mesmo com seus três amigos. No fim, ele se virou e andou em minha direção.

Derrotado, levantei-me. Um fio metálico saiu do braço de Bob e se enroscou no meu. O peito do robô se iluminou com o rosto de meu pai. Ele parecia mais do que decepcionado. "Você conseguiu dessa vez, moleque. Vai ficar de castigo por um mês. Vamos conversar direito quando eu chegar em casa", disse.

Abri minha boca para retrucar. “Agora não, estou embarcando. Falamos amanhã", e desligou. Fechei meu casaco, abaixei meu boné e comecei a seguir Bob, rumo às luzes de Manhattan.

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"Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente." - Krishnamurti

"O progresso é a concretização de Utopias." – Oscar Wilde
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