“O pianista” da Palestina
http://infoalternativa.org/moriente/mo020.htm Omar Barghouti *
em CounterPunch
http://www.counterpunch.org/Quando vi o filme O Pianista, premiado com o Oscar, tive três reacções diferentes, incómodas. Não me impressionou particularmente o filme, de um ângulo puramente artístico; horrorizou-me o retrato no filme da desumanização dos judeus polacos e a impunidade dos ocupantes alemães; e não pude deixar de comparar o muro do gueto de Varsóvia com o abominável muro de Israel que engaiola 3,5 milhões de palestinianos em Cisjordânia e Gaza em prisões fragmentadas, descontroladas.
No filme, quando soldados alemães obrigavam músicos judeus a tocar para eles num ponto de controle, pensei: “é algo que os soldados israelitas não fizeram ainda aos palestinianos”. Falei demasiado cedo, parece. O principal jornal de Israel, Ha'aretz informou na semana passada que uma organização de direitos humanos israelita que observava um intimidante posto de controle militar perto de Nablus pôde gravar em vídeo soldados israelitas que obrigavam um violinista palestiniano a tocar para eles. A mesma organização confirmou que abusos similares tinham ocorrido meses antes noutro ponto de controle perto de Jerusalém.
Numa lavagem tipicamente israelita, o incidente foi eliminado por um porta‑voz do exército como pouco mais do que “insensibilidade”, sem intenção malevolente de humilhar os palestinianos envolvidos. E de novo voltaram a servir‑nos o mantra habitual de que os soldados têm que «enfrentar uma realidade complexa e perigosa», uma desculpa pré‑fabricada, pronta a usar em qualquer situação. Pergunto-me se o mesmo se diria ou seria aceite ao descrever a prática original nazi ante as portas do gueto de Varsóvia nos anos 40.
Lamentavelmente, a analogia entre as duas ocupações ilegais não termina aí. Muitos dos métodos de “castigo” colectivo e individual imposto a civis palestinos às mãos de soldados israelitas jovens, racistas, com frequência sádicos e sempre insensíveis nas centenas de postos de controle que pululam nos territórios palestinos ocupados recordam práticas nazis comuns contra os judeus. Depois de uma visita aos territórios palestinos ocupados em 2003, Oona King, membro judia do parlamento britânico, atestou-o, ao escrever: «Os fundadores originais do Estado judeu seguramente não podiam imaginar a ironia enfrentada por Israel actualmente: ao escapar às cinzas do Holocausto, encarceraram outro povo num inferno similar na sua natureza – ainda que não na sua extensão – ao gueto de Varsóvia».
Mesmo Tommy Lapid, ministro da Justiça de Israel e ele mesmo sobrevivente do Holocausto, provocou uma tempestade política no ano passado quando declarou à rádio Israel que uma foto de uma anciã palestiniana procurando os seus medicamentos no entulho lhe recordou a sua avó que morreu em Auschwitz. Ademais, comentou sobre a destruição irresponsável e indiscriminada de casas, negócios e granjas palestinas pelo seu exército em Gaza nessa altura, dizendo: «Se continuarmos assim, seremos expulsos das Nações Unidas e os responsáveis serão submetidos a juízo em Haia».
Alguns dos crimes de guerra que preocupam as pessoas como Lapid foram recentemente revelados em relatos de testemunhas oculares de antigos soldados, que já não podiam continuar a reconciliar quaisquer valores morais que possam manter com a sua cumplicidade na humilhação, abuso e dano físico diários de civis inocentes. Esses crimes tinham‑se normalizado nas suas mentes como actos aceitáveis, inclusive necessários, para “disciplinar” os nativos indómitos, como uma medida para manter a “segurança”.
Segundo um relatório recente nos media israelitas, um comandante do exército foi acusado de golpear palestinianos sem motivo algum no tristemente célebre ponto de controle Hawwara. É peculiar que a prova mais irrecusável apresentada contra si tenha sido uma fita de vídeo filmada pelo departamento de educação do exército. Nesse episódio em particular, o oficial superior nesse posto de controle, ao saber que uma equipa de cinema do exército se encontrava perto, e sem provocação alguma, golpeou um palestiniano «rodeado pela sua mulher e pelos seus filhos», batendo‑lhe na cara, e inclusive «pontapeando‑o na parte inferior do seu corpo», dizia o relatório.
Uma recente exposição chamada “Rompendo o silêncio”, organizada em Tel Aviv por um grupo de soldados israelitas conscientes, que serviram no Hebron ocupado, mostrava em fotografias e objectos uma beligerância mais séria contra palestinianos indefesos. Inspirados por graffiti de colonos judeus como «árabes às câmaras de gás»; «árabes = uma raça inferior»; «derramai sangue árabe» e, claro, o sempre popular «morte aos árabes», os soldados usaram uma miríada de métodos para tornar intolerável as vidas dos palestinianos comuns. Uma fotografia mostra um grande autocolante num carro de passagem, explicando, talvez, o objectivo final de semelhante abuso: «A penitência religiosa dá força para expulsar os árabes». O director principal da exposição descreveu uma política particularmente horrível de metralhar a esmo durante horas comunidades palestinas residenciais, como Abu Sneina, com submetralhadoras pesadas e lança‑granadas em resposta a todo o disparo de umas poucas balas de qualquer casa contra as colónias judias dentro da cidade.
Os horrores de Hebron empalidecem, no entanto, em comparação com o que unidades do exército israelita fizeram em Gaza. Numa entrevista inquietante com o Ha'aretz em Novembro do ano passado, por exemplo, Liran Ron Furer, primeiro‑sargento (reserva) do exército israelita e graduado de uma escola de arte, descreveu a transformação gradual de cada soldado até chegar a ser um «animal» quando actua num posto de controle, não importa que valores tenha trazido com ele de casa. Na sua perspectiva, esses soldados infectam‑se com o que chama «síndroma do ponto de controle», um exemplo manifesto do que é agir violentamente para com os palestinianos da «maneira mais primitiva e impulsiva, sem temor a ser castigado». «No ponto de controle», explica, «os jovens têm a oportunidade de ser amos e o uso da força e da violência torna‑se legítimo».
Furer lembra como os seus colegas humilharam e golpearam implacavelmente um anão palestiniano só por diversão; como tiraram uma «foto de recordação» com civis atados e ensanguentados, a quem tinham açoitado; como um soldado urinou sobre a cabeça de um palestiniano porque «teve o descaramento de sorrir» a um soldado; como obrigaram outro palestino a pôr-se sobre pés e mãos e ladrar como um cão; e como outro soldado pediu cigarros a palestinianos e quando se negaram «quebrou a mão a um» e «cortou os seus pneus».
O mais horrendo de todos os incidentes foi a sua própria confissão pessoal. «Corri para [um grupo de palestinianos] e golpeei um árabe directamente na cara», admitiu. «Corria‑lhe o sangue do lábio para o seu queixo. Levei-o para a traseira do jeep e atirei‑o para dentro. Os seus joelhos bateram contra a mala e aterrou dentro». Depois descreve em detalhes arrepiantes como ele e os seus colegas pisaram o cativo fortemente algemado, apelidado “o árabe”; como o golpearam até que «estava a sangrar e a formar uma espécie de charco de sangue e saliva»; como «agarrei‑o pelo cabelo e torci a sua cabeça para o lado», até que gritou alto, e como os soldados então «pisaram mais e mais duro sobre suas costas», para que deixasse de gritar.
Furer revela depois que o comandante da companhia os felicitou: «Bom trabalho, tigres!». Depois levaram a sua vítima para o seu acampamento, e continuaram com o abuso de diferentes maneiras. «Todos os demais soldados estavam lá à espera para ver o que [a ênfase é minha] tínhamos apanhado. Quando chegamos com o jeep, assobiaram e aplaudiram como loucos». Um dos soldados, disse Furer, «aproximou‑se e pontapeou‑o no estômago. O árabe dobrou‑se e grunhiu, e todos nos rimos. Era divertido... Dei‑lhe um pontapé bem forte no traseiro e voou para diante, tal como esperava. Gritaram e riram‑se... e senti‑me feliz. O nosso árabe era apenas um rapaz atrasado mental de 16 anos».
Por selvagem que seja, o abuso nos pontos de controle não é especial em nenhum sentido. Ajusta-se perfeitamente ao quadro geral em que se vê os palestinianos como relativamente humanos que não têm direito à dignidade e ao respeito que os plenamente humanos merecem. No auge da reocupação maciça de cidades palestinas por Israel em 2002, por exemplo, soldados utilizaram as suas facas para gravar a estrela de David sobre os braços de uma série de homens e adolescentes palestinianos detidos. As horríveis fotos das vítimas foram primeiro mostradas em canais de televisão árabes e mais tarde expostas na Internet.
No mesmo ano, no campo de refugiados de al-Amari, durante uma rusga em massa de homens palestinianos, adolescentes e anciãos incluídos, os soldados israelitas inscreveram números de identificação «nas testas e nos antebraços de detidos palestinianos que esperavam para serem interrogados». O defunto líder palestiniano Yasser Arafat comparou o acto com as conhecidas práticas nazis nos campos de concentração. Tommy Lapid enfureceu‑se e disse: «Como refugiado do Holocausto considero que um acto semelhante é insufrível». No entanto, Raanan Gissin, porta‑voz do primeiro‑ministro israelita Ariel Sharon, preocupou-se apenas com o facto de a imagem de Israel poder ser prejudicada: «evidentemente está em conflito com o desejo de apresentar uma mensagem de relações públicas», declarou à Rádio do Exército de Israel. Papagueando essa linha, os media dominantes em Israel, também, estiveram demasiado preocupados com o «desastre de relações públicas» para expressar algum tipo de repugnância ou protesto ante a imoralidade do acto e a ironia de todo o assunto.
Yoram Peri, professor de política e media na Universidade de Tel Aviv, vê as relações públicas como «um tema fundamental na vida israelita. «Não pensamos que fazemos algo mal» aclara numa entrevista com o The Guardian, «mas pensamos que nos explicamos mal e que os media internacionais são anti‑semitas». Obcecados com o modo como Israel é vista em lugar do que com o que faz na realidade, os israelitas, segundo Peri, estão preocupados sobretudo de que «não nos explicamos bem. Quando discutimos as horríveis coisas que ocorrem na Cisjordânia, não falamos do tema, mas de como será visto».
Reconhecendo este cinismo, a apatia e a anuência prevalecentes entre a maioria dos israelitas na criminosa opressão dos palestinianos, a ex‑membro do Knesset [parlamento israelita] Shulamit Aloni declarou numa recente entrevista à publicação irlandesa The Handstand que «uma insensibilidade brutal» estava a ameaçar uma desintegração moral da sociedade israelita. Referindo-se aos alemães durante o regime nazi, acrescentou: «Estou a começar a compreender por que toda uma nação pôde dizer: “Não o sabíamos”».
Pergunto-me quando chegará o momento em que um famoso realizador premiado enfrente tácticas previsíveis de terror e intimidação intelectual para denunciar o venenoso cocktail israelita de racismo e impunidade fazendo uma versão palestina de O Pianista.
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* Omar Barghouti é um analista político palestino independente. O seu artigo: “9.11 Putting the Moment on Human Terms” foi escolhido entre “O melhor de 2002” pelo The Guardian. Pode ser contactado em jenna@palnet.com[/quote]