Autor Tópico: O anel de Giges - Hélio Schwartsman  (Lida 519 vezes)

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Offline Herf

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O anel de Giges - Hélio Schwartsman
« Online: 29 de Janeiro de 2007, 21:28:08 »
Faz um tempo que não visito o fórum, o texto é de dezembro do ano passado, me perdoem se já foi postado.

Publicado em 21/12/2006 na Folha Online - http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u274.shtml

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O anel de Giges

A pedidos e um pouco a contragosto, vou comentar o caso do aumento salarial de 91% que nossos valorosos parlamentares tentaram autoconceder-se. Explico minha relutância em abordar o assunto: fiquei, como quase todos os brasileiros, revoltado com a generosidade em causa própria, mas não creio que essa seja a questão fundamental. A rigor, a engorda dos contracheques é um pecado bem menos grave do que a sucessão de absolvições de congressistas envolvidos em falcatruas que esta legislatura promoveu. Elevar os próprios vencimentos é apenas uma "esperteza"; já deixar de punir pares que comprovadamente meteram as mãos em dinheiro ilícito é prevaricação. Incomoda-me, portanto, o fato de a população mostrar-se mais indignada com a orgia salarial do que com a farra da distribuição de perdões a mensaleiros e sanguessugas. É como se achássemos normal o cara espancar a mulher diariamente, mas quiséssemos aplicar-lhe a pena de morte por cuspir no chão ou coisa que o valha.

A pergunta que fica é: como pode uma legislatura descer tão baixo? O histórico do Congresso ao longo dos últimos quatro anos é de fato exasperante. Para não alongar demais esta coluna, fiquemos apenas nos dois escândalos mais rumorosos, o mensalão e o dos sanguessugas. No primeiro, 19 deputados foram acusados de empazinar-se com recursos ilícitos do chamado valerioduto --o esquema criminoso de compra de parlamentares gerido pelo publicitário Marcos Valério de Souza. Destes, 12 foram inocentados em plenário; quatro renunciaram antes da abertura do processo para escapar à punição (deram-se mal!); e apenas três foram cassados.

Em relação aos sanguessugas, as coisas parecem estar tomando o mesmo rumo. Foram implicados no programa de compra fraudulenta de ambulâncias (a idéia de "roubar" logo dos doentes soa a exagero de maus roteiristas de filmes B) 69 deputados e três senadores. Os três membros da Câmara Alta já foram absolvidos, dois deputados renunciaram, e os 67 restantes têm boníssimas razões para acreditar que também sairão livres. Moral da história: no Brasil pelo menos, vale a pena ser um parlamentar corrupto. O risco de ser apanhado não é lá muito grande, mas, se por acaso isso ocorrer, são enormes as chances de dar-se bem mesmo assim.

Proponho agora uma reflexão sobre as origens da corrupção. Nem sempre concordo com Freud, mas ele tinha razão ao sugerir que os gregos já haviam dito quase tudo o que há para dizer a respeito dos estados de alma do homem. No que diz respeito à corrupção, vale a pena escutar Platão. Na "República" (III, 359b), o filósofo nos relata a história de Giges, um pastor da Lídia que um dia encontrou um anel capaz de torná-lo invisível. Munido de tão formidável arma, foi ao palácio real, comeu a rainha, matou o rei e se apoderou do trono. O anel, conta-nos Platão, significa a capacidade de cometer injustiças com a certeza de não ser punido. O filósofo concede que poucos homens resistiriam à tentação de, com tal poder, manter-se na trilha da justiça.

Revelo agora para o leitor que o anel de Giges existe e já permitiu a pesquisadores realizarem alguns experimentos com a corrupção. É claro que o manto da invisibilidade ainda é uma promessa quântica, mas existem situações em que uma pessoa pode delinqüir com a certeza de que não será punido. Isso ocorreu --e em certa medida ainda ocorre_ em plena Nova York com pessoal diplomático das 146 missões na ONU. Por conta de algumas excentricidades legais, essa gente tem imunidade contra multas por estacionamento irregular. Muitos deles tiram proveito disso.

Uma dupla de economistas norte-americanos, Ray Fisman, da Universidade Columbia, e Edward Miguel, de Berkeley, quantificou e tabulou os autos de infração lavrados mas não-pagos, chegando a algumas conclusões interessantes. Aproveito para agradecer ao leitor Jeff Zimmerman que me enviou o estudo.

Ao contrário do que esperava Platão, não é desprezível o número dos diplomatas que resistem à tentação de estacionar seus carros onde bem entendam, mesmo sabendo que não serão punidos. A missão kuaitiana, é verdade, pegou pesado. Seu pessoal cometeu a bagatela de 246,2 violações por diplomata por ano no período que vai entre 1977 e 2002. Em contrapartida, funcionários de 21 representações ou não cometeram nenhuma infração ou tiveram a decência de pagar a multa correspondente, embora em seu caso isso não fosse obrigatório.

Vale observar que, a partir de 2002 foram introduzidas mudanças na legislação que diminuíram um pouco o grau de impunidade. Os carros estacionados irregularmente passaram a poder ser guinchados, e o governo federal dos EUA passou a ressarcir a Prefeitura de Nova York pelas multas não-pagas, podendo descontar os valores correspondentes da ajuda norte-americana destinada aos países em questão. A farra diminuiu um pouco, mas a posição que cada nação ocupava na lista ficou praticamente inalterada.

Trata-se de um curioso experimento natural que traduz bem a relação de cada país com a corrupção. Exemplos típicos de nações "respeitadoras" incluem Noruega, Suécia, Dinamarca, Canadá, Holanda, Japão, Irlanda, Israel (entram também algumas "surpresas", como Panamá, Equador, Emirados Árabes Unidos, Burkina Faso; a explanação mais plausível é que esses países têm delegações pequenas, que são plenamente servidas pela diminuta cota de vagas de estacionamento que a ONU oferece para cada representação). Já no topo da lista estão, pela ordem, além do Kuait, Egito, Tchad, Sudão, Bulgária, Moçambique. O Brasil, é claro, faz feio. É o 29º colocado, liderando o bloco das Américas.

Segundo Fisman e Miguel, é "tremendamente" significativa a taxa de concordância entre os países que mais violam as normas de estacionamento e as listas de nações mais devassas obtidas por outros métodos como as pesquisas de percepção de corrupção feitas pela Transparência Internacional.

A conclusão inescapável é que a certeza da impunidade é um poderoso motor para a quebra de regras, mas nem todos os portadores do "anel de Giges" delinqüem uniformemente. O aspecto cultural --aí incluída a tal da "sanção moral"-- parece desempenhar um papel importante, pois é a melhor explicação para o fato de os diplomatas de países tidos como honestos de fato o serem, pelo menos no que diz respeito a estacionar em Nova York.

A boa notícia é que o Brasil pode ter esperança. Até o início do século 19, a Suécia era considerada um dos países mais corruptos da Europa. A má é que, para sair do mar de lama em que vamos chafurdando, precisaríamos fazer alguma coisa no sentido de mostrar que as normas estabelecidas precisam ser cumpridas. O que vemos, entretanto, é exatamente o contrário. Munidos de seus "anéis de Giges" --o voto secreto em plenário nos processos de cassação de parlamentares--, nossos solertes congressistas entoam um hino à irresponsabilidade. Através do instrumento covarde do acordo de lideranças, pelo qual se furtam a uma votação nominal, tentaram promover um festival de favorecimento privado à expensa pública. Assim que o Supremo Tribunal Federal os privou da invisibilidade, tornaram-se todos, como num passe de mágica, contrários ao aumento "desde criancinhas".

O oportuno recuo é ótimo para as finanças públicas e a moralidade administrativa, mas não poupa o Parlamento de sair do episódio com sua imagem ainda mais desgastada.

Atitudes como as da Câmara e do Senado, secundadas pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de cujas entranhas brotou o mensalão, favorecem o surgimento de uma retórica antiparlamentar, a qual, por sua vez, é terreno fértil para as piores aventuras populistas.

Offline Alenônimo

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Re: O anel de Giges - Hélio Schwartsman
« Resposta #1 Online: 30 de Janeiro de 2007, 00:24:01 »
Texto ótimo do Hélio, como sempre.
“A ciência não explica tudo. A religião não explica nada.”

Offline Herf

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Re: O anel de Giges - Hélio Schwartsman
« Resposta #2 Online: 30 de Janeiro de 2007, 18:34:20 »
Além da história do anel de Giges, que daria um bom tópico de discussões na área de filosofia, achei particularmente interessante este trecho:

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A rigor, a engorda dos contracheques é um pecado bem menos grave do que a sucessão de absolvições de congressistas envolvidos em falcatruas que esta legislatura promoveu. Elevar os próprios vencimentos é apenas uma "esperteza"; já deixar de punir pares que comprovadamente meteram as mãos em dinheiro ilícito é prevaricação. Incomoda-me, portanto, o fato de a população mostrar-se mais indignada com a orgia salarial do que com a farra da distribuição de perdões a mensaleiros e sanguessugas. É como se achássemos normal o cara espancar a mulher diariamente, mas quiséssemos aplicar-lhe a pena de morte por cuspir no chão ou coisa que o valha.

 

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