Revista VEJA 18 de maio de 2005
"Somos um país corrupto"Entrevista: João Ubaldo Ribeiro (Aos 64
anos, o escritor baiano é um dos maiores best-sellers brasileiros,
com 3 milhões de exemplares vendidos ao longo da carreira.)
Resumo:
O escritor diz que o governo Lula é
incompetente, que ricos e pobres
brasileiros são igualmente desonestos
e que a idéia de cotas significa um
esforço para dividir o Brasil em raças
Texto completo:
Veja - O senhor é um dos maiores críticos do governo. O que há de
errado com a administração petista?
Ubaldo - O governo é de uma extraordinária incompetência. Não
conseguiu formular nenhum projeto, nenhuma visão nacional. O
presidente, na minha opinião, tem de ser respeitado, pela sua
condição de incorporar e encarnar o cargo supremo do Executivo
brasileiro. E eu jamais faltei com esse respeito. No entanto, o
brasileiro é tão subserviente que, quando alguém critica Lula
chamando-o, por exemplo, de ignorante - o que não é uma
difamação, é uma verdade -, diz-se que o presidente está sendo
desrespeitado.
Veja - A ignorância a que o senhor se refere não seria compensada
por outras qualidades?
Ubaldo - Lula é autor de uma obra monumental, o Partido dos
Trabalhadores. É algo sem precedentes na história brasileira, e
talvez na história latino-americana. Governar um país, no entanto,
não é a dele. Lula não sabe administrar. Ele não senta para ler,
para despachar, para trabalhar. Ele tem um ministério que
dificilmente conseguirá reunir num mesmo dia porque é impossível,
num time de quarenta integrantes, que pelo menos um não esteja
gripado ou com algum impedimento.
Veja - O senhor votou em Lula?
Ubaldo - Sim, na última eleição. Em 1994 e 1998, votei em
Fernando Henrique. Eu não considerava Lula preparado. Hoje vejo que
tinha razão. Na época da eleição de 2002, deixei-me convencer de
que os quadros do PT seriam suficientes para manter a coisa sob
controle e que o presidente não se deixaria seduzir de forma tão
flagrante pelos atrativos do poder. Observando o comportamento de
Lula, nota-se que o prazer dele não é administrar. São os
discursos, são as aparições que eu classifiquei, e não me
arrependo do adjetivo, de circenses. Vem sendo assim desde o primeiro
dia. Ele foi a uma das cidades mais pobres, se não a mais pobre e
faminta do Brasil, lá no Piauí. Muitas daquelas pessoas não sabiam
exatamente o que significava um presidente da República, que para
elas seria algo assim como um dono do mundo. Lá, ele disse ao povo
que todos iriam comer no dia seguinte. E eu duvido que estejam comendo
hoje.
Veja - Por causa desse tom crítico ao governo, o senhor é acusado
de estar a serviço do PSDB. Como reage a isso?
Ubaldo - Eu sou uma pessoa totalmente destituída de rabo preso.
Nunca roubei ninguém, não tenho antecedentes criminais, nunca fui
dedo-duro, é difícil desencavar em meu passado algo mais grave do
que ter enganado uma namorada, e assim mesmo muito eventualmente.
Quando eu falo mal do governo, recebo cartas iradas dizendo: "Mas o
que o PSDB faria neste caso?". Como se tudo o que eu escrevi contra o
PSDB não valesse nada. No Brasil, sempre se acredita que a imprensa
vive no bolso de alguém. Eu convivi com Roberto Marinho
episodicamente por causa de nossa condição de integrantes da
Academia Brasileira de Letras. Por ter comparecido a três ou quatro
jantares na casa do dono da Globo, fui acusado de conspirar com ele.
Você imagina que Roberto Marinho iria chamar um colunista de jornal
para que ambos, juntos, manobrassem os cordões que gerem esta
República? As pessoas têm essa convicção porque estão acostumadas
ao ambiente de corrupção que reina no Brasil.
Veja - Não é um exagero dizer que a corrupção reina no Brasil?
Ubaldo - Nós vivemos num ambiente de lassitude moral que se estende
a todas as camadas da sociedade. Esse negócio de dizer que as elites
são corruptas mas o povo é honesto é conversa fiada. Nós somos um
povo de comportamento desonesto de maneira geral, ou pelo menos um
comportamento pouco recomendável. Se você me acompanhar à rua, a
gente pode até fazer uma experiência. A população da Zona Sul do
Rio de Janeiro é formada em grande parte de gente da terceira idade.
Quando um idoso atravessa a rua, os motoristas de ônibus costumam
acelerar em ponto morto, fazendo um barulhão. Eles querem dar um
susto no velho, eles querem matar o velho. Já vi fazerem isso com
crianças, que acabam saindo correndo. Eu mesmo, que tenho 64 anos,
já tomei um susto assim. Os brasileiros estão convictos de que, se
um pedestre atravessar fora da faixa, o motorista tem o direito de
atropelá-lo e matá-lo. Outro exemplo. Eu ouço de várias empregadas
domésticas que é comuníssimo aqui no Rio de Janeiro que
responsáveis pela merenda escolar retirem substancial quantidade de
víveres e alimentos das crianças para levar para casa, distribuir
entre parentes e até montar quitandas. Isso é um evidente absurdo.
Veja - O senhor falou em lassitude moral. Isso não ocorreria porque
o país não tem instituições fortes, ao contrário de nações
européias e dos Estados Unidos?
Ubaldo - Nós somos de um país cuja colonização se deu em moldes
muito diferentes dos da colonização dos Estados Unidos, nação à
qual somos freqüentemente comparados. Os colonizadores ingleses, ao
vir para a América, estavam dando as costas para a Europa. Eles
vieram para nunca mais voltar. Sua intenção, ao chegar ao Novo
Mundo, era conceber uma nação ou várias pequenas nações nas treze
colônias. No Brasil isso não ocorreu. Não porque os portugueses
sejam ordinários pela própria natureza, como freqüentemente se diz.
A questão é que Portugal nos pegou num momento em que sua
prosperidade dependia do fato de o país ser um grande entreposto da
Europa, um grande fornecedor de mercadorias. Fizeram, assim, uma
colonização predatória. Portugal enriqueceu à custa do açúcar
brasileiro, e Lisboa foi reconstruída pelo marquês de Pombal com
dinheiro brasileiro. Convinha manter aqui um controle rígido,
diferentemente dos americanos, que de costas para a Europa criaram
suas próprias leis. Os portugueses, no entanto, não tinham estrutura
para isso. Com essa presença forte do governo necessariamente
despoliciado pela metrópole, o domínio dos portugueses ocorreu de
uma maneira desordenada, desregulada, importando caoticamente a
burocracia lusitana, com a corrupção que essa burocracia gera.
Construiu-se toda uma visão de mundo centrada na ação estatal. A
origem de muitos dos nossos problemas pode ser essa.
Veja - De acordo com Gilberto Freyre, no entanto, os portugueses
contribuíram positivamente ao criar uma nação miscigenada.
Ubaldo - É verdade, eles deram algumas contribuições positivas, e
essa é uma delas. Com a qual, por falar nisso, o governo quer acabar,
implantando o sistema de cotas nas universidades. Eu vejo essa idéia
com profunda desconfiança e muito desagrado. Em minha opinião, ela
representa um esforço para dividir este país, pela primeira vez, em
linhas raciais. Tenho amigos diretores e donos de colégios que estão
sendo obrigados a classificar os alunos por raça. Que retrocesso é
esse? Já me chamaram e me chamam de vez em quando de negro. Eu me
recuso a ser chamado de negro. Não porque tenha vergonha. Eu sou
filho de uma família portuguesa pelo lado da mãe, neto de um
português pelo lado do pai. A mulher do meu avô paterno era uma
mulata acaboclada. O que significa que eu tenho sangue negro. Mas eu
me recuso a usar o critério americano que diz que é negro todo mundo
que tem uma gota de sangue negro. Ou seja, se o sujeito é filho de um
zulu com uma sueca, por que a metade zulu tem de prevalecer? E aí vem
o governo com essa bobagem de que não se pode usar a palavra "mulato"
porque vem de mula. Vou dizer algo politicamente incorreto: Lula é
mulato. Se bem me lembro, o cabelo dele era crespo, encarapinhado, no
tempo em que era líder metalúrgico. Já hoje, presidente da
República, ele tem cabelos sedosos.
Veja - O senhor acha que o sistema de cotas é de difícil
implantação?
Ubaldo - Eu acho muito complicado classificar as pessoas por raças
no Brasil. Eu não vejo TV, posso estar dizendo alguma bobagem, mas eu
me lembro de que a Xuxa só aceitava loirinhas para paquitas.
Suponhamos que baixassem no Brasil um decreto específico, dizendo:
"Xuxa Meneghel é obrigada a reservar 50% das vagas de paquitas para
afro-descendentes". Apareceriam no dia seguinte 20.000 loiras de olhos
azuis mostrando o retrato de um vovô negão. Carla Perez, minha
conterrânea, é uma loira artificial. Ela é mulata, filha de mulato,
sem deixar de ser loira. Essa idéia das cotas embute, no fundo, uma
visão equivocada: aquela que enxerga a questão da escravidão como
um problema de origem racial.
Veja - E não é?
Ubaldo - Não existe nada mais falso do que isso. Ao longo da
história, os escravos sempre foram os vencidos, e não
necessariamente os negros. Na maior parte das civilizações, os
escravos eram brancos. Os hebreus foram escravos dos egípcios, por
exemplo. Não foram os portugueses que escravizaram os africanos. Eles
trouxeram nos navios negreiros pessoas que já haviam sido
escravizadas em sua nação de origem. Eram negros escravizando
negros. As nações da África do início do ciclo das grandes
navegações nunca tinham ouvido falar na existência dos brancos.
Acreditavam que a humanidade era negra. Achavam-se, assim, tão
diferentes dos vizinhos que falavam outra língua, cultuavam outros
deuses e comiam outra comida quanto um inglês se acha diferente de um
francês, de um alemão ou de um napolitano. A suposta irmandade entre
os negros passou a existir quando eles foram unificados na categoria
de escravos.
Veja - O senhor sempre se autodefiniu como um autor que escreve por
dinheiro. Alguém com essa postura sofre algum tipo de discriminação
no Brasil?
Ubaldo - Sem dúvida. Em parte por causa da inveja dos que não
conseguem vender livros. Durante a maior parte da história a regra
foi a encomenda. Quase toda a arte renascentista foi produzida assim,
da Capela Sistina às fontes de Roma. Esse negócio de se sentar e se
comunicar magicamente com as musas é conversa de rico que fica
falando em arte. O artista de verdade quer ser pago.
Veja - Por que se lê tão pouco no Brasil?
Ubaldo - É um lugar-comum dizer que isso ocorre porque o livro é
caro. Sem dúvida essa é uma das razões. Há, no entanto, uma
cultura de que o livro é uma coisa chata, difícil. Eu sou adotado em
escolas, e devo ser odiado por um número imenso de estudantes
brasileiros. Os jovens lêem os livros preocupados em responder a
perguntas incompreensíveis em provas. Um grande número de
professores transmite aos alunos o ódio que eles mesmos têm dos
clássicos. O próprio presidente vende a imagem da leitura como uma
coisa difícil, comparável a andar em esteira. Uma das coisas graves
que eu acho que Lula faz é se gabar, se vangloriar da própria
ignorância, da própria falta de formação.
Veja - O senhor recentemente teve graves problemas de saúde por
causa do alcoolismo. Poderia contar o que aconteceu?
Ubaldo - Foi uma luta de oito anos, complicadíssima. Tudo começou
com uma depressão, em 1994, quando voltei da Copa do Mundo dos
Estados Unidos. Uma depressão sem motivo, mas eu caí de cama, só
não quis me suicidar. Tomei todos os remédios possíveis. Eu, que
já bebia bastante, tentei curar a depressão com álcool, que é a
pior burrice que alguém pode fazer. Porque a depressão vai embora
durante três horas, quatro horas, depois volta pior. Você entra numa
espiral descendente da qual é difícil sair. Fiquei oito anos nesse
inferno, inchado, tremendo. O auge, há quatro ou cinco anos, foi
quando tive uma pancreatite que quase me levou à morte. Passei quinze
dias na unidade semi-intensiva do hospital. Tive a sorte de ser um dos
poucos casos de pancreatite que não deram dor nenhuma. Dizem que as
dores associadas a essa doença estão entre as piores que se podem
suportar. Hoje, felizmente, estou há três anos sem beber.
Veja - Como o senhor superou o problema?
Ubaldo - Pela via da religião. Eu não me submeto ao ministério de
nenhuma crença, embora acredite em Deus, reze todas as noites e me
considere cristão. Há algum tempo, por uma série incrível de
coincidências que não vou relatar aqui, tornei-me devoto de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro. Eu dizia que quase morri de pancreatite.
Depois que saí do hospital, voltei a meus velhos hábitos de beber.
Acordava cedíssimo, por volta das 5 da manhã, ia comprar jornal e
passava pelos bares que fecham tarde para comprar uísque. Às 10 da
manhã já estava bêbado, e assim passava o dia inteiro. Logo tive o
anúncio de que a pancreatite estava voltando: engulhos em seco. Eu
acordava e ia direto para o vaso sanitário, para uma sessão de
náuseas. Isso piorava a cada dia, e uma segunda pancreatite para mim
seria a morte. Até que uma noite, na hora de dormir, eu rezei a Nossa
Senhora: "Se amanhã eu amanhecer sem náuseas, eu paro de beber".
Acordei e, pela primeira vez em muito tempo, não tive engulhos. Desde
então, e isso foi há três anos, não bebi mais nada. Todos os fins
de semana vou com meus amigos ao boteco e só tomo guaraná diet. O
mais incrível é que não sinto a mínima vontade de beber. Eu
poderia dizer que tenho uma imensa força de vontade, mas não seria
verdade. Eu não faço esforço nenhum.
http://veja.abril.com.br/180505/entrevista.html