O Precário Discurso Agnóstico
Por Rafael Delerue
Esse texto tem como objetivo esclarecer os significados da doutrina agnóstica, e apresentar uma visão crítica em relação à prática da mesma.
Os pontos observados
O que há de tão incômodo na prática desta doutrina
1 - Normalmente os agnósticos desconhecem o significado de sua doutrina, e costumam achar que estão no meio-termo entre o teísmo e o ateísmo. Afirmam ainda que essas três coisas são inconciliáveis, o que certamente deriva da idéia equivocada de que todo ateu é crente na inexistência divina.
2 - Alguns utilizam esse termo por medo da possível repreensão que possam vir a receber ao assumirem seu ateísmo. Essa é uma posição que apenas confirma o grande preconceito social atribuído àqueles que não têm crença em qualquer tipo de deus ou deuses.
3 - O termo, sendo utilizado honestamente, é de uma pretensão sem fim, pois sustenta uma descrença justamente numa crença. E como toda crença, não apresenta lógica e/ou provas, fundamentando-se assim numa evasiva.
As Origens
O termo "agnosticismo" foi forjado em 1869 por Thomas H. Huxley (1825-1895, biólogo inglês) nos seus Collected essays, calcado, por oposição ao gnosticismo, que era o conhecimento-referência nos primeiros séculos de nossa era, baseado num caráter sincrético e esotérico, desenvolvido à margem do cristianismo institucionalizado, combinando misticismo e especulação filosófica. Ocorre que a origem da palavra "gnosticismo" é anterior a esse movimento. Vindo do grego gnóstikós, o termo "gnóstico" ou "gnose" significa ação de conhecer, conhecimento, ciência, sabedoria. No mesmo grego temos que ágnóstos ou "agnóstico" pode significar duas coisas, tendo em vista que a preposição “a” pode assumir tanto a função de ausência como de negação. Sendo assim, temos respectivamente as seguintes acepções: 1 - aquele que não tem conhecimento, que é ignorante; 2 - aquele que nega ou descrê do conhecimento, que julga o saber como algo incognoscível. O que Huxley fez, aliado a uma assumida dose de ironia, foi criar o vocábulo como antítese ao gnóstico da história da Igreja, que sempre se mostrava ou pretendia mostrar-se sabedora das coisas que ele, Huxley, ignorava. E foi como naturalista, afeito às coisas e relações da ciência experimental, que ele utilizou-se do termo com tal conotação crítica e irônica. Já em 1879, Charles Darwin chamava-se a si mesmo de agnóstico, em carta, já com essa significação. O temo em francês (agnosticisme) já se documenta oficialmente em 1886, divulgando-se rapidamente nas formas correlatas das línguas modernas.
Podemos perceber então que há uma pequena diferença entre a origem de tais termos e a adaptação realizada por Huxley. O termo "agnóstico", seguindo as origens extremas, significa aquele que nega o conhecimento. Ou, por derivação, como atualmente costuma-se dizer: “doutrina que reputa inacessível ou incognoscível ao entendimento humano a compreensão dos problemas propostos pela metafísica ou religião (a existência de Deus, o sentido da vida e do universo etc.), na medida em que ultrapassam o método empírico de comprovação científica” (fonte: Dicionário Houaiss). Definição essa que, de certa forma, aproxima-se mais da idéia de Huxley. Mas é sempre importante lembrar que, mesmo o termo tendo sido forjado pelo biólogo inglês, sua derivação é do grego, que antecede sua época. Assim, podemos evidenciar que não há necessariamente um vínculo desta palavra com a Igreja. Ademais, atualmente não faz mais sentido utilizar a palavra “agnóstico” com o mesmo significado pretendido por Huxley, visto que não temos mais como conhecimento-referência a Igreja, mas sim a Ciência.
Conciliando termos distintos
Ao contrário do que normalmente se pensa, pode-se ser agnóstico e ateu (o que é o mais comum atualmente), agnóstico e teísta, não agnóstico e ateu e não agnóstico e teísta. Quem explica bem essa idéia é André Cancian, em seu livro "Ateísmo e Liberdade - Uma introdução ao livre-pensamento".
"É errado pensar no agnóstico como um indivíduo "meio-termo" entre as duas perspectivas, ou seja, que não afirma nem nega Deus, supostamente representando uma posição de "questionamento sensato" em vez de um extremismo ateu. O agnosticismo certamente não é uma "terceira opção" entre o teísmo e o ateísmo, e é fácil evidenciar o porquê. (...).A rigor, a palavra agnóstico significa apenas “sem conhecimento”, isto é, trata-se de um termo genérico que diz respeito somente à afirmação da impossibilidade de se obter conhecimento acerca de alguma coisa ou assunto qualquer, não necessariamente sobre deus. Então seria mais correto dizer algo como: este indivíduo – ateu ou teísta – é agnóstico em relação à questão da existência de deus ou de alguma “questão x” qualquer.
Portanto, como podemos perceber, não existe um meio-termo entre “acreditar” e “não acreditar”, ou seja, entre teísmo e ateísmo. Afirmar “acho impossível saber com certeza” não é uma solução, mas uma evasiva. O que comporta um meio-termo, na verdade, é a lacuna que fica entre a negação e a afirmação de deus, e tal lacuna corresponde ao ateísmo cético ou ao ateísmo prático, não ao agnosticismo.
O agnosticismo, em geral, é uma posição adotada erroneamente por aqueles que não são teístas, mas que na verdade não consideram a existência de deus uma hipótese absurdamente improvável, como alguns ateístas mais fervorosos. Mas, sem dúvida, os agnósticos desse tipo são, tecnicamente, ateus. Provavelmente muitos se denominam como tais porque têm receio do estigma social vinculado ao ateísmo, que é muito forte; então transferem o significado de suas posições a outros termos que soam mais brandos, como “agnóstico”.”
Apesar de muito utilizados, os termos "teísmo" e "ateísmo" são muito mal empregados. Vejamos então o que cada um significa:
"Teísmo", do grego theós (deus) + ismós (doutrina, princípio religioso, ato, prática, conduta, hábito, ação etc). Dessa forma temos que "teísmo" é a doutrina que considera um deus, o ato de crer em deus. É claro que existem muito tipos de teísmo, mas isso não é importante nesse momento.
"Ateísmo", do grego átheos (a + theós) + ismós. Da mesma forma que a palavra "agnóstico" possui duas acepções em função do duplo significado da preposição “a” (negação ou ausência), o ateísmo também pode ser basicamente divido em dois: 1 - aquele que nega a existência de deus; que é crente na inexistência divina (ateísmo ativo ou crítico); 2 - aquele que desconsidera deus, que não acredita em deus (ateísmo passivo ou cético).
E é exatamente essa segunda acepção da palavra “ateísmo” que grande parte das pessoas parece esquecer, incluindo, claro, muitos agnósticos. André Cancian resume muito bem essa dúvida no seguinte trecho do seu livro:
”(...) A posição ateísta, em si mesma, não é "positiva", não possui qualquer "conteúdo", pois não representa algo, mas apenas a ausência de algo. O ateísmo só existe enquanto uma rejeição (ou negação, no caso do ateísmo ativo) de algo largamente aceito que, no caso, é o teísmo. Deste modo, o ateísmo não exige qualquer espécie de descrição prática, pois nesta classificação, aquilo que os ateus fazem de suas vidas não é levado em consideração absolutamente. Ao contrário de outros ismos, como cristianismo, judaísmo, espiritismo, xintoísmo, hinduísmo, islamismo, o ateísmo não é um "estilo de vida" nem uma doutrina dotada de um corpo de conhecimentos, mas somente uma classificação objetiva do posicionamento ou estado intelectual do indivíduo em relação à idéia de Deus. Portanto, o ateísmo não possui natureza análoga às religiões."
O contra-argumento da chuva
Alguns ainda apresentam um contra-argumento com a seguinte pergunta: Você acredita que vai chover hoje? Desta forma, parece ficar implícito que a melhor resposta não é sim ou não, mas não sei. Apesar de comparar uma suposta entidade com um acontecimento, o argumento tenta evidenciar que existe um meio-termo entre crer e descrer, baseado especialmente no bom senso. O que ocorre aqui é uma inversão. Na verdade, se há falta de bom senso, ela se encontra na formulação da questão, o que automaticamente pode tornar as respostas igualmente estranhas. Tal argumento parece querer confundir o interlocutor com uma outra questão, mais pertinente dentro de tal contexto, que seria: Você acha que (ou sabe se) vai chover hoje? Apesar de sutil, a diferença é que aqui cabe perfeitamente a resposta não sei. Ao contrário, na pergunta inicial não há espaço para tal resposta, pois ela questiona apenas a crença, o que exige como resposta ou creio ou não creio, e só. Qualquer outra resposta foge do escopo da questão.
E por que a questão “crê em deus?” é mais pertinente do que “crê que vai chover hoje?”? Na verdade, não é. O ponto é que cada pergunta oferece um determinado universo de respostas, e fugir disso, ao que tudo indica, é um comportamento insano. Seria como perguntar a alguém se prefere o vermelho ao azul, e essa pessoa responder que prefere o amarelo.
Mas o que responder então quando alguém perguntar “você crê que vai chover hoje?”? Temos as seguintes possibilidades:
1 - você não sabe se vai chover ou sabe que não vai chover, o que lhe obriga a responder não creio;
2 - você sabe ou tem fé que vai chover, lhe obrigando então a responder creio;
Sendo assim, fica claro perceber que ocorre o mesmo com a questão “crê em deus?”, refutando, portanto, o contra-argumento da chuva.
Incoerência e pretensão
Como já vimos, atualmente não há mais sentido empregar a palavra “agnosticismo” com o significado utilizado por Huxley, visto que tal termo foi forjado por ele justamente como uma crítica sarcástica ao gnosticismo (conhecimento) de sua época, completamente inexorável e dominado pela Igreja. Tendo em vista o atual laicismo, e a preponderância da ciência, só resta utilizar tal termo com seus dois outros significados primordiais. Como a primeira acepção é pouquíssimo utilizada e útil, já que temos palavras mais comuns e populares como “ignorante”, “inexperiente”, “desconhecedor”, “burro”, “inculto” etc. que substituem perfeitamente o termo, sobra então sua última acepção.
O que parece estranho é a tentativa desta doutrina negar ou julgar incognoscível o conhecimento. Ora, tudo o que a humanidade tem, desde a roda até o surgimento e preponderância da era digital, é fruto do raciocínio e do conhecimento cumulativo. E é graças a isso também que podemos prever inúmeros acontecimentos. Como considerar então uma doutrina que nega o que comprovadamente já existe?
A única opção que nos resta é admitir que o agnosticismo apenas afirma ser incognoscível a metafísica. Mas essa idéia parece muito conformista e segura de uma situação que no momento somos incapazes de mudar (nossa atual ignorância diante das questões fundamentais). E o pior, é uma afirmação alicerçada numa evasiva, já que não traz nenhum indício de seu conteúdo. Realmente gostaria de saber de onde vem a certeza de que nós humanos jamais iremos compreender a razão última das coisas. Seriam mesmo incognoscíveis tais questões? Será que pelo fato de não sermos atualmente capacitados a responder as questões metafísicas, estaremos então fadados a nunca saber? Não seria essa uma posição precipitada? Não estaria o agnosticismo se sustentando única e exclusivamente numa crença, ou numa espécie de ceticismo pirrônico? Talvez seja mais humilde admitirmos nossa atual ignorância diante de tais questões, e considerar que, com o crescente progresso do conhecimento e da tecnologia, possa haver (ou não) alguma resposta, mesmo que parcial.
E é somente por isso que julgo o discurso agnóstico precário.