A FIDELIDADE CONSTITUCIONAL
Adriano Moreira - professor universitárioFonteUma das referências matriciais da criação dos Estados Unidos foi seguramente o êxito da fidelidade constitucional assumida por todos os Estados e respectivos cidadãos, independentemente das diferenças de cada um deles na relação histórica com a Inglaterra, e das sociedades civis respectivas.
É certo que a exclusão de variadas camadas da população do exercício dos direitos políticos, incluindo nativos e escravos, continha o risco de aquele princípio de solidariedade ser substituído pela força: todavia, como viria a verificar-se, a vontade de viver em comum, adoptando um projecto de futuro comum, que aquela valoração constitucional definia, demonstrou-se suficientemente forte para ultrapassar as divergências, algumas severas, de percurso.
Também foi possível adoptar, pelo Estado laico, uma referência à transcendência, que nunca deixou de ser invocada e reverenciada no cerimonial e acção da República.
O notável Alexis de Tocqueville, cuja análise da democracia na América ficou como referência indispensável para avaliar a longa e acidentada marcha do país, evidenciou a relação da religião com a República, afirmando que "a religião é portanto mais necessária na República que eles (laicos franceses) preconizam do que na monarquia que atacam, e mais necessária nas repúblicas democráticas do que nas outras".
Acontece agora que o mais severo ataque aos EUA, e ao Ocidente em geral, mobiliza fanáticos decididos à salvação pelo sacrifício da vida, mas sacrificando o maior número possível de inocentes, invocando valores religiosos recolhidos em leituras abusivas dos livros santos. Neste trajecto de destruição, em que os EUA envolveram o seu poder e a sua autoridade no desgaste de uma guerra imprudente e infundamentada em território muçulmano, a evidência parece ser que o conceito de Tocqueville ganhou uma abrangência que ultrapassa largamente os então invocados fundamentalismos republicanos, os regimes democráticos, e todos os outros, para ser um elemento fundamental na redefinição da governança mundial e recuperação da paz do mundo.
Num livro intitulado La Republique, les Religions, l'Esperance (2004), Nicolas Sarkosy, então ainda não em funções presidenciais, ocupa-se desta questão que, sendo do maior relevo na França, onde o povo muçulmano já representa a segunda religião do país, justamente procura resolver pela consolidada lealdade constitucional, abrindo caminho à recuperada paz interna, à consolidação da sociedade civil, e sempre à manutenção do essencial da identidade francesa.
Trata-se de uma meditação que se mostra ter sido demorada e tendo em vista uma assumida prudência governativa para enfrentar o pluralismo, que não é apenas o da presença das grandes religiões que envolvem crentes iguais na cidadania, também se trata de imigrantes com diferente espiritualidade e igual vocação de a virem a assumir, mais as derivas sem definição, e as novas religiosidades. É da experiência que os poderes políticos não poderão conseguir os melhores resultados se os líderes religiosos não cooperarem para conciliar as diferenças internas e a compreensão e respeito mútuos entre as religiosidades diferentes, sem o que não se recupera a sociedade civil de confiança há muitos anos objecto das advertências de Peyrefitte. Mas também talvez não possa ser omitido que este pluralismo interno, que desafia a paz civil e a vigência da sociedade de confiança, tem relação estrutural com o tema mundial do encontro de culturas que desafia os conceitos da ONU, e que vai sendo pontuado com manifestações de violência armada.
O que, entre mais inquietações e exigências, levanta a questão de saber se as preocupações francesas e europeias, orientadas pelos valores do respeito mútuo e da tolerância, não requerem uma directiva cultural de reciprocidade em todas as áreas culturais, as quais permanecem fundamentalistas na estrutura dos respectivos Estados, mas exigem a liberdade de expressão, respeito e tolerância, nos territórios e povos para onde se dirige toda a sua vasta diáspora.