Harry Potter é uma porcaria e ele é um péssimo ator.
Cuidado, o texto contém spoilers.
Nunca tive a audácia de unir todos os motivos pelos quais eu gosto de Harry Potter em apenas um lugar - nem mesmo na minha cabeça! Confesso que, apesar de saber os motivos, eles permanecem averbais na minha mente e não vai ser fácil ter que explaná-los todos aqui. Muitas vezes já me perguntaram essa pergunta e eu tentei responder ou dei apenas uma pequena fração da resposta. Hoje proponho a esmiuçar ao máximo por que eu acho Harry Potter uma obra perfeita. Ao máximo, mas não totalmente, sempre vai haver algo intangível na qualidade da obra por mais que você leia - e faz tempo que não leio tudo.
A série tem três dimensões
Esse é um dos motivos mais simples e é o que eu quase sempre respondo quando me perguntam. Imagine que uma narrativa - uma sucessão de acontecimentos encadeados - seja uma linha reta, indo do início ao fim. Como uma vareta. Um exemplo de narrativa dentro de Harry Potter seria Harry e Ron inventando predições e profecias nas aulas de Adivinhação para poder passar de ano. Mas, ao mesmo tempo em que isso acontecia, podemos dizer que existia outra vareta de narrativa ao lado dessa mostrando Hermione se desdobrando em várias para conseguir fazer todas as suas disciplinas. E assim pode-se ir colocando diversas varetas lado a lado, criando várias tramas paralelas. Mas outra vareta de trama, como por exemplo o julgamento do hipogrifo Buckbeak e sua sentença de morte, pode - e deve - ser colocada não ao lado dessas outras, mas acima, porque está num nível de importância mais elevado que aquelas outras. E mais uma camada de varetas pode ser colocada ao lado dessa formando outra teia de tramas paralelas. E, quando subirmos um nível na seriedade e na densidade do escopo, colocaríamos outra camada de varetas de trama. Até formar um cubo. A série Harry Potter é um cubo. Um cubo perfeito, onde todas as tramas, todos os pontos, todos os níveis de densidade e relevância, todos os eixos x, y e z, tudo entra numa harmonia perfeita e atinge uma complexidade impressionante. É uma história 3D. Assim como a vida é.
Tudo pode ser analisado em Harry Potter
A série é uma das obras com maior polivalência de temas abordados que eu conheço. Poucas coisas podem ser lidas de tantos ângulos diferentes, procurando coisas tão diferentes. Se você quer refletir sobre justiça social e liberdade, acompanhe Hermione e sua luta silenciosa com o SPEW para libertar os elfos. Se quer um bom drama familiar com todas as nuances dos problemas que uma família enfrenta, preste atenção na família Weasley. Se quer saber a importância que a amizade pode ter para a formação do caráter de alguém, leia a fundo o trio principal. Se quer saber como o mal se forma e como erradicá-lo, analise a trajetória de Tom Riddle até se tornar Voldemort. Xenofobia? Etnocentrismo? Preconceito? Terrorismo? Death Eaters. Governo do Medo? Corrupção? Sede de Poder? Ministério da Magia. O limite entre o homem e o animal? Os centauros. Um homem em formação? Harry Potter. O mal que faz a pressão e o poder da auto-confiança? Neville Longbottom. A injustiça? Cedric Diggory. A excelência alcançada pelo esforço? Hermione Granger. Tudo, tudo, tudo pode ser encontrado em Harry Potter, analisado e refletido.
Jo Rowling criou uma cultura singular
Não tem nada a ver com criar mundos e universos, porque isso é feito aos montes e eu acho, particularmente, coisa de nerd. Jo criou uma cultura complexa e intuitiva. Os bruxos são uma nação à parte que prezam coisas que desconhecemos, não damos importância ou desprezamos. Eles são orgulhosos, preconceituosos e bairristas, mas, ao que tudo indica, têm melhor percepção que nós, Muggles, e raciocínio menos linear, o que os permite alcançar outros estágios de pensamento. Só fui entender racionalmente os argumentos e os embasamentos dos discursos xenófobos e fascistas quando entendi o motivo dos bruxos serem tão obcecados com suas linhagens. A complexidade intricada da cultura bruxa é impressionante e, com o tempo, começamos a prever as reações de seus integrantes devido ao nível de entendimento que alcançamos deles.
Harry nos traz o mundo pelos seus olhos
Apesar de ser em terceira pessoa, devemos lembrar que Harry Potter é contado pelo ponto de vista de seu personagem título e, portanto, filtrado para nós por suas percepções, o que nos ajuda a entender nuances muito importantes sobre o processo de amadurecimento. No início da série, Harry era solitário e parecia ver poucos como seus iguais. Os adultos eram estranhos, excêntricos, autoritários e pareciam apenas querer complicar ou facilitar sua vida. Com o passar do tempo - e dos livros - vemos o mundo ir mudando junto com Harry e sua visão. Dumbledore virou um ser que falha, tem fraquezas e é humano. Harry pensa em figuras de autoridade como pessoas normais com inseguranças e segundas intenções. E, finalmente, fica cada vez mais auto-consciente.
O certo e o errado podem não ficar claro, mas você tem vontade de fazer o certo
Apesar de ser niilista, eu acredito que existam atos certos e errados. Mas que são, claro, subjetivos. A série nunca é maniqueísta na hora de apresentar o que é certo e errado. A autora nos mostra seus personagens e seus atos e, através das conseqüências deles, podemos nós mesmos definir o que é certo ou errado. Nos livros mais recentes, a linha que separa o bem e o mal e o certo e o errado foi ficando cada vez mais tênue, apesar de que sempre foi. O mal está sempre presente, dentro da escola, dentro do Ministério, dentro da sala de aula, dentro de cada um. Pois na vida o mal não fica escondido apenas dentro de uma caverna no Afeganistão - ele está misturado entre nós. Eu sempre tive uma certa predileção por vilões, achava os protagonistas muito chato. Acho impossível gostar dos vilões de Harry Potter. Eles são vis e seus atos, mesmo justificados e não puramente mal-por-ser-mal, tem conseqüências desastrosas e imperdoáveis.
Harry Potter é sobre o maior tema de todos
Que é ser uma pessoa. Maior que o amor, a morte, a lealdade, a vingança, a responsabilidade, a honra e as guerras - todos temas tratados profundamente durante a série - ser uma pessoa é o maior tema de todos, a única ansiedade que todos nós humanos compartilhamos, o objetivo de qualquer obra ao vislumbrar a existência humana. E isso que está no coração dos livros. Desse ponto de vista, todas as tramas, os detalhes, personagems, magias e aventuras seriam a linguagem através da qual Jo Rowling decidiu nos apresentar a uma pessoa nascendo e sendo formada. Harry começa como uma criança insegura com pensamento simples e passa por um processo doloroso de ir descobrindo a verdade sobre a vida em camadas, endurecendo mas jamais negando que a felicidade pode sempre ser encontrada. Ele cresce enfrentando as perdas, a morte, a adolescência, tudo detalhadamente narrado para nós em metáforas, em seus pensamentos, suas ações, suas preocupações, suas escolhas. Toda a série é sobre Harry caminhando de criança para homem. Ele, solitário, aprende a se apegar aos amigos e às informações que coleta sobre os pais, que ele nutre como lembranças. Mais tarde, a Dumbledore como figura paterna e, melhor ainda, a Sirius como um amigo, conselheiro, um padrinho, para lhe ajudarem a passar por todas as difíceis descobertas. E, depois, dolorosamente, cruelmente, realisticamente, ele é arrancado desses confortos com a morte de Sirius, a morte de Dumbledore, a descoberta que seu pai era uma pessoa falha e possivelmente detestável. Ainda tem os amigos, mas até quando? Gostaria de citar duas passagens do sexto livro que me são incrivelmente fortes neste aspecto.
No final do livro, durante um funeral, Harry entende que a realidade é dura e que não existe ninguém para protegê-lo, para ficar entre ele e a vida, nem literal nem metaforicamente. Nem seus pais, nem Sirius, nem Lupin, nem Dumbledore. Ele está sozinho. A realidade é essa, e não existe ninguém a sussurrar no seu ouvido que aquilo são apenas sombras, pesadelos e que se ele acordar tudo ficará bom. Agora a realidade era aquilo. Mas existe a possibilidade de um casamento em alguns meses e ele se sente agradecido por poder apreciar mais um dia de sol com Ron e Hermione. Happiness can be found even in the darkest of times, if one only remembers to turn on the light.
Quando Dumbledore e Harry saem da casa dos Dursley no capítulo 3, ele diz a Harry que ele não precisa se preocupar com um ataque, pois "Você está comigo." No fim do livro, ao deixar a caverna incrivelmente fraco e sendo ajudado por Harry a nadar até a saída, Dumbledore diz a um aflito Harry que não está com medo porque "Eu estou com você." Em algum ponto entre esses dois momentos, Harry virou um homem.
E é sobre esse homem e sobre esse homem descobrindo a verdade derradeira sobre si e sobre a vida que será o último livro.
Escrito por Radek, meu grande amigo, depois de madrugadas bebadas e insanas discutindo esse troço até de manhazinha!