Eu não disse que deveria haver inércia absoluta, estou dizendo que, apesar da inércia ser mais provável/fácil (já que ascender socialmente é difícil, tão mais difícil quanto menos recursos se tiver), ainda assim houve alguma ascensão social considerável.
Considerável em relação a que? Se num determinado período recente, com maior esclarecimento e desenvolvimento, houve estagnação e até aumento da desigualdade isso vai contra a uma igualdade no desenvolvimento de ambas as etnias.
Considerável levando em conta que antes da abolição, eram escravos, não tinham nada. Hoje, ainda que em desigualdade, estão presentes em todas as classes sócio-econômicas.
Acho que o aumento da desigualdade deve ter sido o tão falado e repetido aumento da disparidade entre ricos e os pobres, não especificamente racial.
“A miscigenação roubou o elemento negro de sua importância numérica, diluindo-o na população branca.Aqui o mulato, a começar da segunda geração,quer ser branco, e o homem branco (com rara exceção) acolhe-o,estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos asseguram os etnólogos, e como pode ser confirmado à primeira vista, a mistura de raças é facilitada pela prevalência do ‘elemento superior’. Por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui.”
Oliveira Vianna, Populações Meridionais do Brasil (1920)
Esse é o pensamento da época.
Sem querer necessariamente desqualificar a referência, ela pode no mínimo ser usada para apontar que desde aquela época não havia tanto racismo quanto se poderia imaginar, conforme o que sublinhei.
Por outro lado, acho difícil se ter algo como amostra representativa do pensamento da época, o que se tem são fragmentos sempre, não sei até que ponto dá para generalizar, o que vale para qualquer lado, tanto para demonstração de racismo, quanto de não-racismo. Seria o caso para um tipo de meta-análise (bem, seria mais uma análise, pesquisa mais trabalhada, o que ninguém aqui tem condições de fazer, suponho).
Sim, eu não duvido disso, mas não acho nem que isso tenha sido necessariamente motivado por racismo (pode ter sido simplesmente resultado da necessidade de mão de obra qualificada, como há algum tempo, por exemplo, o Canadá estava incentivando imigração de trabalhadores da indústria siderúrgica), muito menos diga qualquer coisa sobre racismo atualmente.
O que de qualquer maneira não deixa de ser um abandono com um grupo que ajudou a construir a riqueza do Brasil trabalhando de forma escrava e depois ficou a esmo pelo governo. Existiam escravos que já trabalham nas indústrias nascentes. E boa parte do trabalho ainda era na agricultura o qual já vinham fazendo.
Bem, eu só estou dizendo que acho que o racismo, principalmente em épocas mais recentes, não é tão significativo para explicar a condição sócio econômica dos negros e mestiços de pele escura. Não ouso sugerir que já desde essa época já houvessem ideais expressivos de altruísmo, grupos ou políticas governamentais tentando ajudar aqueles em piores condições, e ausência total de racismo. E acho que deve ter valido tanto para negros quanto para brancos pobres em situação similar, ainda que os últimos fossem mais raros.
Mas veja o pensamento da época, repare na parte em negrito:
“O Brasil é uma nação formada dos elementos étnicos mais heterogêneos. Aqui se misturaram povos de procedências étnicas indígena,européia e africana,num tal ambiente de liberalismo e ausência de restrições legais à miscigenação que o Brasil se tornou a terra ideal para a vida em comum dos povos de procedências étnicas mais diversas. Esse grande 'laboratório de civilização', como já foi chamada a nossa terra, apresentou a solução mais científica e mais humana para o problema, tão agudo entre outros povos, da mistura de raças e de culturas.”
Manifesto da Sociedade Brasileira de
Antropologia e Etnologia, 1942
Novamente, não acho que estou forçando a interpretação de texto quando falho em ver indícios de racismo aí. Nesse trecho*, ainda mais ausente que no outro, ainda por cima. Dependendo do que vier a seguir, ele pode estar simplesmente dizendo que o choque de etnias foi em outros lugares do mundo, problemático, o que é verdade, geralmente sempre há conflitos étnicos. O que não implica em sugerir que o problema seja a mistura em si, a perda da "pureza" racial ou a mistura de costumes. Talvez seja otimismo meu, mas depende do que vem a seguir. Imagino que a seguir haja alguma afirmação positiva quanto a uma situação não-racista, e não algo como um apartheid.
* No outro, ainda que o autor falasse em superioridade, não necessariamente ele estaria exprinmindo a própria opinião, mas da dos negros, aparentemente. Não que seja esse o caso, só estou dizendo que poderia ser, eu não tenho como afirmar nada apenas por esse trecho.
Um trecho do relatório da ONU:
A província de São Paulo, que recebeu 60% da mão-de-obra européia, adotou a política de imigração mais restritiva no que se refere à entrada de orientais e africanos: intencionava admitir trabalhadores italianos, suecos, alemães, holandeses, noruegueses, dinamarqueses, ingleses, austríacos e espanhóis, em uma clara indicação da coloração que se pretendia para a população local.Não obstante isso, a carência de imigrantes dessas regiões acabou levando a uma flexibilidade das políticas imigratórias. A imigração japonesa e do Oriente Médio tornou-se um fato e os portugueses também vieram para o Brasil em números expressivos.
Ora, os portugueses são tão brancos quanto os demais, que seriam preferidos. Não sei se isso implica necessariamente em uma cor desejada para a população local do que simplesmente preferir imigrantes ricos aos pobres.
Em São Paulo, houve por exemplo a São Paulo Railway, cujos trabalhadores responsáveis foram em grande parte ingleses, duvido que se devesse à um favoritismo para com os ingleses contra outros europeus em geral, tão brancos quanto, mas simplesmente a necessidade de mão de obra especializada, que dificilmente poderia vir da África (somando ainda o fato de que, SP foi província até 1889, e a abolição se deu em 1888, não dá para esperar mesmo muito pouco racismo tão cedo, ainda que a abolição em si provavelmente seja um indicativo de declínio), por exemplo, e que, ainda que pudesse vir de algum desses outros países, o inglês, provavelmente já rumava para ser a língua universal (pode também ter sido mais o caso de algo escolhido "a dedo" do que algo que realmente estivesse aberto a maiores possibilidades, não tendo tanto a ver o idioma inglês).
A magnitude do fenômeno imigrantista provocou impactos nas relações entre os grupos raciais no Brasil, levando a mão-de-obra de origem africana a lugares desqualificados e marginais no mercado de trabalho.O imaginário racial da época, fortemente influenciado pelo racismo científico, tomava os imigrantes europeus como “poderosos e inteligentes trabalhadores”, e particularmente os homens negros e mulatos passaram a ser vistos sob um prisma em que a ascendência escrava desqualificava os descendentes “libertos”, sendo-lhes imputados os estigmas de “vagabundos”,“irresponsáveis”,“malandros”e “inúteis”– uma reputação que iria bani-los do mercado de trabalho urbano, ou lhes destinar as ocupações malremuneradas, desqualificadas, o que se convencionou chamar de trabalho sujo e braçal.A contraface da falta de emprego foi a criação de leis antivadiagem, o que tornou os negros alvo de políticas e medidas de repressão social.
Eu não nego que houvesse racismo, e que tivesse tido mesmo alguma influência. Mas acho que a justamente à época em que o racismo era mais expressivo, o seu poder acabava sendo na maior parte eclipsado pela condição miserável dos escravos após a abolição (o que até ajudava a reforçar o racismo), em seu poder. Mesmo que não houvesse mais racismo que há hoje, as pessoas (negras ou não) em piores condições não conseguiriam sair tão facilmente, porque não haviam (tanto quanto sei), cursos técnicos e profissionalizantes. Os europeus não seriam bem vistos a toa, simplesmente por serem brancos, mas também traziam experiência adicional ao país:
Segunda fase (1850-1930)
Em 1850 é assinada a Lei Eusébio de Queirós proibindo o tráfico de escravos, e que trouxe duas consequências importantes para o desenvolvimento industrial:
- Os capitais que eram aplicados na compra de escravos ficaram disponíveis e foram aplicados no setor industrial.
- A cafeicultura que estava em pleno desenvolvimento necessitava de mão-de-obra. Isso estimulou a entrada de um número considerável de imigrantes, que trouxeram novas técnicas de produção de manufaturados e foi a primeira mão-de-obra assalariada no Brasil. Assim constituíram um mercado consumidor indispensável ao desenvolvimento industrial, bem como força de trabalho especializada.
Considere que os imigrantes não são descendentes de escravos, mas de homens livres, com melhores condições "iniciais", além de potencialmente já terem mais chance de ter trabalho também por maior experiência profissional... não acho que "escravo", ou "descendente de escravo" seja exatamente um bom dado curricular.
Os escravos tinham tanto potencial quanto os europeus. Já desenvolviam muitas das atividades que os imigrantes vieram a desenvolver, e poderiam facilmente assimilar novas funções. Mas como você bem observou o estigma de ex-escravo os acompanhava (o que pode ser entendido como racismo).
Eu não nego que pudesse haver rejeição que seria na verdade, injustificada, puramente racista. Mas também tem o fato de que os europeus não vieram para cá na mesma condição que os escravos, também traziam novas técnicas e famílias. E além do racismo clássico, é esperada uma forma um tanto mais amena que seria ajudar a outros imigrantes do mesmo país, preferencialmente a qualquer um. Isso em algum grau acaba acontecendo mesmo sem que necessariamente haja sequer um favoritismo, mas pela simples causa do idioma em comum dos imigrantes. Acho que essas coisas todas tiveram papel mais preponderante do que um senso de inferioridade dos negros especificamente (não que isso não existisse).
Bem, eu acho que a desigualdade racial é simplesmente desigualdade social, não algo especial. Se os escravos tivessem sido brancos, não estaria se falando em políticas para promover melhoras nas condições sócio-econômicas gerais e outras especiais para a melhora das condições sociais especificamente dos descendentes de escravos; todos são simplesmente pobres. Pode-se até ter políticas diferentes para diferentes graus de pobreza, mas não é necessário "rotular" a ajuda a aos mais pobres como ajuda a negros especificamente*, além de não fazer isso permitir cuidar também de exceções, de brancos em extrema pobreza, que seriam negligenciados por não serem da raça certa para as políticas do estado, de outra forma.
Não tem problema algum em mencionar a desigualdade dos negros devido a escravidão, que foi uma escravidão étnica, de um outro povo, os africanos. E isso causa impactos até hoje. O importante ao meu ver, é entender que a diferença atual da desigualdade é devido a essas questões históricas, a equívocos do passado. Reconhecer que os negros estão em desvantagem por isso não é rotula ninguém, pois é uma realidade.
Eu acho que, ainda que os negros estejam em desvantagem, eles não precisam ser ajudados especialmente, como negros. E eles estão, estatísticamente, em desvantagem, de forma similar à que os destros estão, com relação aos canhotos, pelos primeiros serem mais numerosos que os segundos. Isso não significa que se deva ter políticas especiais para os destros, e negligenciar-se os canhotos. Podem ser tratados todos como iguais (que é a lição que deviamos tirar dessa história toda, não?), para corrigir a condição que é de fato o problema, a pobreza, comum à diversas etnias/raças, ainda que de forma heterogênea.
Aqui você está caindo no uso do politicamente correto, que condena o uso do critério cor para entender a desigualdade sócio-raciais no país. Não são diferenças individuais, como muitos querem impor com a questão de mérito. Também não é apenas a questão socioeconômica, pois a escravidão e o racismo científico tiveram sua influência na diferenciação racial. Se um em maior grau que o outro não importa muito, embora a questão aqui seja determinar isso.
Não é questão de ser politicamente correto, é metodologicamente correto, e pragmático. Qual o problema a ser resolvido? Pobreza. Quais as causas históricas da pobreza? Escravidão, que já foi abolida, e uma miríade de outras causas complexas, afinal não são só os negros pobres e todo o resto numa boa. Tem relevância saber que a escravidão foi o principal determinante na pobreza numa parcela da população? E se todas pessoas tivessem tido amnésia, todos os livros tivessem sido destruídos, etc. Não se poderia resolver a pobreza dessa parcela, independentemente de perceber que há desproporção nas cores das pessoas pobres, como se fossem todos iguais, "pobres", em vez de "pobres negros", "pobres mulatos" e "pobres brancos"? Claro que se poderia. Então é irrelevante. Não só é irrelevante, como é possivelmente danoso, conforme eu já mencionei brevemente, sobre a ameaça do estereótipo e efeito Rosenthal.
E é especialmente importante "ignorar" a questão do ponto de vista racial justamente se há preocupação com o racismo, justamente por esses pontos que acabo de repetir. Focalizar na questão racial, além de inútil para a questão sócio econômica (provavelmente a mais importante), pode ser um tiro pela culatra, se o que se quer é diminuir o racismo e coisas relacionadas.