Há vários tópicos aqui em que o keynesianismo é tratado. Há inclusive um que eu criei há muito tempo. Porém em todos esses tópicos nunca foi feita uma discussão sobre a polêmica keynesianismo vs economia clássica de forma mais consistente, focando apenas o aspecto econômico ou técnico da coisa. Ao contrário, nesses tópicos o assunto acabou desandando para disputas político-ideológicas de caráter mais panfletário do que lógico.
Pretendo então abrir uma discussão econômica sobre o keynesianismo, onde cada um poderá dar sua opinião dentro das suas possibilidades, desde que tenha pelo menos lógica.
O keynesianismo surgiu com o lançamento do livro A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda por Lord Keynes em 1936. Nesse livro, Keynes faz algo como uma tentativa de "reforma pela raíz" da teoria econômica, ou seja, põe em xeque postulados e princípios sobre a poupança, o juro, o equilíbrio econômico, o emprego e a moeda que até então eram considerados intocáveis.
A teoria econômica anterior a Keynes, desenvolvida por nomes como Adam Smith, David Ricardo, J.S.Mill, Alfred Marshall, Pigou e muitos outros, conhecida como liberalismo econômico, foi chamada em conjunto por Keynes de "Teoria Clássica".
Colocarei agora algumas diferenças fundamentais entre a teoria clássica e keynesiana, ou seja, as formas como cada teoria enxerga diferentes entes básicos da economia:
1- Juros: Para a economia clássica, os juros são um pagamento pelo adiamento do consumo. Eles possuem uma relação estreita com a "eficiência marginal do capital" (termo keynesiano, significa a perspectiva de lucro dos investimentos), ou seja, quando a EMC aumenta, a demanda por capital para investimentos aumenta, o que faz o preço do capital (juros) subir. Esse aumento dos juros provoca um incremento da poupança, ou seja, grande parte do dinheiro que seria gasto em bens de consumo é desviado para a poupança em busca dessa maior remuneração. Esse aumento da poupança fornece exatamente a quantidade extra de capital necessária para os investimentos. Como se vê, para a economia clássica, o juro é a referência para o equilíbrio entre poupança e investimento, da mesma forma que o preço é a referência para o equilíbrio entre a oferta e demanda.
Para a economia keynesiana, os juros são uma compensação pelo risco da ausência de liquidez, ou seja, as pessoas cobram juros não porque estão ávidas para consumir e ficarão um tempo sem poder, mas porque temem
de alguma forma não terem o dinheiro em mãos quando precisarem ou mesmo nunca o terem de volta. Keynes cita vários tipos de "incentivos para a liquidez" (colocarei texto abaixo). O mais importante é saber que para Keynes, há muitos outros motivos que estimulam ou desestimulam as pessoas a pouparem, grande parte deles com mais influência do que a própria taxa de juros. E ao contrário dos economistas clássicos, Keynes não considerava que a taxa de juros assegurasse automaticamente o equilíbrio entre poupança e investimento: o nível de poupança dependeria de muitos fatores objetivos e subjetivos que não estão necessariamente "sincronizados" com a demanda de capital.
A seguir, o trecho da Teoria Geral onde é citado os motivos para a liquidez:
"(i) O motivo-renda. Uma das razões para conservar recursos líquidos é garantir a transição entre o recebimento e o desembolso da renda. A força deste motivo para induzir uma decisão de conservar um montante agregado de moeda dependerá, principalmente, do montante da renda e da duração normal do intervalo entre o seu recebimento e o seu desembolso. O conceito de velocidade-renda da moeda é estritamente apropriado apenas a este contexto.
(ii) Os motivos-negócios. Da mesma maneira, os recursos líquidos são conservados para assegurar o intervalo entre o momento em que começam as despesas e o do recebimento do produto das vendas, incluindo-
se sob este título os recursos líquidos que conservam os empresários para garantir o intervalo entre a compra e a realização. A intensidade desta demanda dependerá, principalmente, do valor da produção corrente (e, portanto, do rendimento corrente) e do número de mãos através das quais passa essa produção.
(iii) O motivo-precaução. Entre outros motivos para conservar recursos líquidos, destacam-se os de atender às contingências inesperadas e às oportunidades imprevistas de realizar compras vantajosas e os de conservar um ativo de valor fixo em termos monetários para honrar uma obrigação estipulada em dinheiro. A força desses três tipos de motivos dependerá, em parte, do custo e da segurança dos métodos para obter dinheiro em caso de
necessidade, por meio de alguma forma de empréstimo temporário, especialmente retiradas a descoberto ou o seu equivalente, pois não há necessidade de conservar dinheiro ocioso para assegurar os intervalos se se pode obtê-lo sem dificuldade no momento oportuno. Sua força dependerá, também, do que podemos denominar o custo relativo da retenção de recursos líquidos. Se os recursos líquidos só podem ser retidos mediante o sacrifício da compra de um bem lucrativo, esta circunstância aumenta o custo relativo de sua retenção e, portanto, debilita o motivo para guardar certo montante de recursos líquidos. Se os depósitos auferem juros ou se se evitam despesas bancárias conservando o dinheiro, isso diminui o custo e reforça o motivo. Este fator, contudo, pode ser de importância secundária, salvo em caso de grandes alterações no custo da retenção de recursos líquidos.
(iv) Resta o motivo-especulação. Ele requer um estudo mais detalhado que os outros, tanto pelo fato de ser menos compreendido, como por ser especialmente importante para transmitir os efeitos de uma variação na quantidade de moeda.
Em circunstâncias normais, o volume de moeda necessário para satisfazer os dois motivos, transação e precaução, é principalmente o resultado da atividade geral do sistema econômico e do nível da renda
nacional em termos monetários. Todavia, a administração monetária (ou, em sua ausência, as mudanças fortuitas que podem advir da quantidade de moeda) faz sentir seu efeito sobre o sistema econômico por sua influência sobre o motivo-especulação. Isso porque a demanda de moeda para satisfazer os motivos anteriores é, em geral, insensível a qualquer influência que não a de uma alteração efetiva na atividade econômica geral e no nível da renda, ao passo que a experiência mostra que a demanda de moeda para satisfazer o motivo-especulação varia
de modo contínuo sob o efeito de uma alteração gradual na taxa de juros, isto é, há uma curva contínua relacionando as variações na demanda de moeda para satisfazer o motivo-especulação com as que ocorrem
na taxa de juros, devidas às variações no preço dos títulos e às dívidas de vencimentos diversos.
De fato, se assim não fosse, as operações de mercado aberto seriam impraticáveis. Eu disse que a experiência indica a relação constante há pouco mencionada porque de fato o sistema bancário está sempre apto, em circunstâncias normais, a comprar (ou vender) títulos e obrigações em troca de moeda, oferecendo por eles um preço de mercado modestamente maior (ou menor); e quanto maior for a quantidade de recursos líquidos que os bancos desejam criar (ou cancelar) pela compra (ou venda) de títulos e dívidas, maior deverá ser a baixa (ou alta) na taxa de juros. Entretanto, quando as operações de mercado aberto (como nos Estados Unidos em 1933-1934) se limitam à compra de títulos de vencimento muito próximo, o seu efeito pode, evidentemente, limitar-se
à simples taxa de juros a prazo muito curto e provocar apenas ligeira reação sobre as taxas de juros a longo prazo, que são muito mais importantes.
Ao tratar do motivo de especulação, convém distinguir, entre as variações da taxa de juros, as que se devem a mudanças na oferta de moeda disponível para satisfazer esse motivo, sem que haja ocorrido alteração alguma na função de liquidez, e as que têm como causa principal as mudanças nas expectativas que afetam diretamente essa função. As operações de mercado aberto podem, sem dúvida, influir sobre a taxa de juros de ambas as maneiras, quer alterando o volume de moeda, quer dando origem a novas expectativas relativamente à política futura do banco central ou do governo. As mudanças próprias da função de liquidez, resultantes de modificações nas informações que provocam revisão das previsões, são freqüentemente descontínuas e engendram descontinuidades correspondentes nas variações da taxa de juros. Decerto, só haverá lugar para uma atividade maior de negócios no mercado de títulos na medida em que a variação de informações for interpretada de modo diferente pelos diferentes indivíduos ou afete os interesses individuais de maneira desigual. Quando uma mudança
no noticiário afeta a opinião e as necessidades de cada um de forma precisamente idêntica, a taxa de juros (tal como é indicada pelos preços de títulos e dívidas) se ajustará imediatamente à nova situação sem necessidade de quaisquer transações de mercado. Assim sendo, no caso mais simples em que todos os indivíduos têm opiniões e interesses semelhantes, uma alteração nas circunstâncias ou nas expectativas não ocasionará nenhum deslocamento de moeda;apenas modificará a taxa de juros no grau necessário para contrabalançar o desejo que, no nível anterior de juro, cada indivíduo sentia no sentido de ajustar suas reservas líquidas às circunstâncias ou expectativas novas, e, desde que todos mudem, no mesmo grau, suas idéias quanto à taxa que os induzam a alterar suas reservas líquidas, não resultará transação alguma. A cada conjunto de circunstâncias e de expectativas corresponderá uma taxa de juros apropriada e nunca se verificarão suspeitas de alguém modificar suas reservas líquidas habituais. De modo geral, entretanto, uma alteração nas circunstâncias ou expectativas provocará um reajuste nas reservas líquidas individuais — desde que, de fato, uma mudança influa nas idéias dos diferentes indivíduos de modo diverso, devido, em parte, às diferenças de meio ambiente e ao motivo que os levou a guardar dinheiro e, em parte, às diferenças de conhecimento e interpretação da nova situação. Desse modo, a nova posição de equilíbrio da taxa de juros estará associada a uma redistribuição da retenção dos recursos líquidos. Todavia, o que mais nos interessa é a mudança na taxa de juros e não a redistribuição dos recursos líquidos. Esta última é devida apenas a diferenças eventuais entre os indivíduos ao passo que o fenômeno essencial é o que ocorre no caso mais simples. Mais do que isso, mesmo no caso geral, a variação da taxa de juros é, comumente, o efeito mais importante da reação a uma mudança nas informações. O movimento nos preços dos títulos e obrigações está, como costumam dizer os jornais, “fora de qualquer proporção com a atividade dos negócios” — e é natural que assim o seja, tendo-se em vista que as reações dos diversos indivíduos
às informações são muito mais similares do que dessemelhantes. "
Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Keynes. Capítulo 15. Seção I