Apenas um conto.
I.
-Letícia.
-Que foi dessa vez?
-Você é imbecil.
Ela pensa:
-Merda merda merda merda. Porra. Podia ser puta, vadia, bossal, estúpida. Podia ser piranha, cadela, vaca, lesma, o zoológico inteiro. Mas imbecil não. Por favor... não...
E desata a chorar.
O repertório de palavrões que ambos usavam um com o outro - sérios, na hora do sexo, ou brincando - era gigantesco. Mas Letícia sabia que Cláudio media as pessoas pelo intelecto.
E havia um agravante; ele tinha razão. Ela sempre foi burra. Invejava as amigas, já na faculdade, se sentia entre elas um buraco-negro em meio a uma constelação.
Ao lado de Cláudio, sentia sua burrice cada vez mais evidente. Cláudio conseguiu em 22 anos o que ela, em 28, jamais sonhara.
Se Cláudio tivesse nos músculos uma força equivalente à do cérebro, levantaria uma montanha na ponta dos dedos. Ele brutalmente devorava ao mundo em cada átomo, em cada próton, em cada quark. Ele almejava a onisciência, e na mente simples de Letícia, já a tinha.
A inteligência dele era um misto dos cabelos de Sansão e do calcanhar de Aquiles. Dava-lhe forças e era seu ponto fraco.
II.
Foi ódio à primeira vista. Cláudio nunca dirigiu muito bem, demorou a pisar no freio. A lanterna dianteira do carro dele foi completamente esmagada, assim como a traseira do carro de Letícia. Ela parou o carro, tirou o cinto, abriu a porta e, furiosa, apontando para "a porcaria da bunda do meu Fusca, sua topeira imbecil", gesticulava nervosamente com a outra mão como se a voz não fosse suficiente (e não era - pra ele era muito óbvio que ela estava reclamando da batida, mas o que ela falava era menos inteligível que um idioma alien).
Após muito caso, muito xingamento, finalmente ficaria combinado que ele pagaria pelo conserto.
III.
O bar. A louca desvairada. Ele pensa:
-O que essa vaca tem? TPM eterna? Eu tava quieto, no meu canto. Sequer olhei pra ela. Porra, e esses merdas dos meus amigos só rindo. Eu paguei o caralho do carro dela.
IV.
-Seu cretino, eu te odeio.
-Ótimo! Empatou.
Viram as costas, ele dá dois passos. Ela segura-o pelo colarinho e lhe dá um beijo. Fizeram sexo na mesma noite, bruto, animalesco, como se o mundo fosse acabar. Duas semanas depois, moravam juntos.
V.
Ninguém sabia o que Cláudio viu em Letícia, exceto o próprio Cláudio: Letícia era o elo que ligava o seu mundo às outras pessoas. Ele admirava a praticidade dela - ela é burra, mas o pouco que sabe, aplica - embora jamais tenha mencionado isso para ela.
VI.
Os legistas detectaram tetradoxina no sangue de ambos os corpos, assim como as taças. É quase certo que foi um suicídio e um assassinato.
Alguma opinião?