O Paraguai em 7 PontosPor: Arthur Bernardes do Amaral 1
Resumo: este texto é a íntegra da entrevista concedida a Coryntho Baldez e publicada parcialmente no Jornal da UFRJ [Ano 3 • Nº 34 • Maio de 2008 • “Briga de vizinhos” • Páginas 20 e 21 • Disponível em:
]http://www.ufrj.br/docs/2008-maio-JornalUFRJ34.pdf]. Trata-se de um sucinto debate sobre os impactos da eleição de Fernando Lugo no Paraguai. Começo a discussão por temas históricos como a Guerra do Paraguai e a trajetória das relações bilaterais entre o Brasil e seu vizinho. Debato o suposto subimperialismo brasileiro e trato de questões como a ascensão de Lugo e suas reivindicações. Identifico distanciamentos e aproximações entre o caso de Lugo e outros líderes sul-americanos, além de abordar a relação do Paraguai com os Estados Unidos. Por fim, analiso as polêmicas em torno da questão de Itaipu e o tema dos brasiguaios.
Palavras-chave: Paraguai, Brasil, Fernando Lugo, Política Externa, Eleições, América do Sul
1 – Historicamente, como são as relações entre Brasil e Paraguai. A chamada Guerra do Paraguai deixou algum tipo de ressentimento ou desconfiança entre os dois países?Ao longo da história sul-americana, o relacionamento bilateral entre Brasil e Paraguai tem sido tão intenso quanto complexo. A interação entre os dois países é marcada inicialmente pelo conflito, mas, posteriormente, é a cooperação que prevalece.
Durante os primeiros três séculos da colonização ibérica no continente americano, era escasso o contato entre os parcos núcleos populacionais dos países que, em um segundo momento, viriam a se tornar o Brasil e o Paraguai independentes. O Paraguai se mantinha isolado do mundo desde 1814, quando declarou sua independência e teve o acesso ao Rio da Prata bloqueado pela Argentina de Juan Manuel de Rosas – quem se negava a reconhecer a separação do território que, anteriormente, havia sido parte do Vice-Reino do Rio da Prata. Quando Bartolomé Mitre é eleito presidente da Confederação Argentina a situação muda e o Paraguai passa a ter maior contato com os demais países do continente. A maior interação viria com os movimentos de independência e com os processos de consolidação dos Estados-nacionais na América do Sul.
O ponto mais traumático da relação bilateral, sem dúvida alguma, foi a Guerra do Paraguai (1864-1870) – ou Guerra da Tríplice Aliança, como os paraguaios a ela se referem. O Brasil foi o país com maior número de tropas, com cerca de 139 mil combatentes. Além disso, os principais comandantes operacionais eram brasileiros – Caxias, Osório, o Conde d’Eu, o Almirante Tamandaré, por exemplo – embora oficialmente estivessem subordinados ao presidente argentino Bartolomé Mitre, que atuou como Comandante-em-chefe das tropas dos aliados durante a maior parte da guerra. O saldo nefasto do conflito – uma redução de algo entre 60 a 70% da população paraguaia – criou uma chaga que ainda permanece aberta no imaginário político do Paraguai. Desde então, as relações com o Brasil se dão sob a forma de uma “aproximação reticente”.
Durante o governo do general Alfredo Stroessner (1954-1989), o Paraguai se acerca do Brasil como uma opção estratégia para de contrabalançar a influência argentina no país. Operou, assim, uma política externa pendular entre os dois vizinhos como forma de conseguir maior poder de barganha com ambos. A construção da Hidroelétrica de Itaipu e a fundação de Ciudad del Este (originalmente batizada de Puerto Stroessner) na Tríplice Fronteira faziam parte da agenda de aproximação bilateral.
Após a queda de Stroessner, é o MERCOSUL quem orienta as relações bilaterais. Neste âmbito, avança a agenda da integração, mas também ocorrem crises pontuais, com o Paraguai requisitando uma postura mais “generosa” do Brasil no âmbito das concessões de financiamentos e incentivos dentro do marco institucional do bloco. Desta insatisfação se originou uma aproximação do Paraguai com os EUA, sobretudo após o 11 de Setembro: assim como fizeram antes entre Brasil e Argentina, agora o Paraguai faz uma política pendular entre os EUA e o MERCOSUL, ameaçando negociar acordos comerciais e militares à revelia dos países do Cone Sul.
A questão da Guerra do Paraguai não tinha sido levantada até 2005, quando os movimentos de oposição ao partido colorado começam a se organização com maior efetividade. Alega-se que o Brasil teria uma “dívida histórica” com o Paraguai em função da guerra. Lugo quer que o Brasil reconheça essa dívida histórica, como o fez Nestor Kirscher e Tavaré Vasquez, mas ao mesmo diz que “não quero nem recordar. Quero olhar para o futuro”. A mais recente forma de compensação requisitada gira em torno da questão dos pagamentos pela energia gerada em Itaipu. O argumento central é de que o tratado de 1973 foi assinado entre duas ditaduras e que, como tal, não teria legitimidade no momento democrático em que tanto paraguaios quanto brasileiros vivem hoje.
Trata-se de uma estratégia de mobilização política muito inteligente por parte da oposição, pois une em uma só agenda as questões da herança autoritária, a crítica ao atual governo e a oposição a um ente externo mais poderoso. A fórmula se provou eficiente. Fernando Lugo foi eleito, derrotando pela primeira vez em mais de seis décadas o Partido Colorado.
2- Hoje, há uma relação de subordinação entre Brasil e Paraguai, com o Brasil exercendo algum tipo de subimperialismo continental que afetaria especialmente o Paraguai?Não se pode dizer qualquer subordinação, pelo simples fato de que não há qualquer ingerência brasileira na política paraguaia. O que há é uma relação assimétrica, entre um país de grandes proporções geoeconômicas e outro país menor. Não é algo muito diferente, por exemplo, da relação do Paraguai com a União Européia. Ou da relação entre Brasil e China. O fato é que o Brasil detém 55% do PIB da América do Sul, enquanto o Paraguai contribui com apenas 0,5% do total de riqueza produzidas na região.
As diferenças de poderio e recursos entre os dois obviamente são importantes, pois o governo brasileiro tem maiores condições de mobilizar capital político e econômico em prol de seus interesses. O Brasil, contudo, não interfere de qualquer forma na soberania paraguaia. Não utiliza quaisquer formas de coerção militar ou sanções econômicas. Toda a relação bilateral é pautada pelo respeito ao Direito Internacional, freqüentemente dentro do marco institucional do MERCOSUL, uma opção de caráter essencialmente multilateral. Nesse sentido, há assimetria, mas não há subordinação. E não havendo subordinação não há “subimperialismo”.
Estes e outros discursos similares são imprecisos em termos analíticos, mas muito úteis politicamente. São instrumentos de mobilização política muito eficientes, pois criam e alimentam a idéia de um inimigo externo que é culpado por todas as mazelas que afligem o “país-vítima”. Para alguns setores da sociedade paraguaia – e não para o país como um todo – o Brasil é este “gigante opressor”, o mesmo papel que alguns setores da sociedade brasileira atribuem aos Estados Unidos. Itaipu é o carro-chefe dessa nova onda nacionalista. É no mínimo contraditório alegar que o Brasil é “subimperialista” quando se engaja com o Paraguai e, ao mesmo tempo, requisitar que nos aproximemos generosamente em função da “dívida histórica” que temos. Não fica claro se aproximação é rejeitada ou bem-vinda.
Cabe ao Brasil tratar o Paraguai com o respeito que o país exige e merece, mas nunca em função de uma “consciência pesada” pelo passado, e sim pelo potencial futuro do país vizinho. Há de se negociar ouvindo e respeitando as reivindicações do sócio menor, mas também preservando os interesses do Brasil. Não é possível uma negociação onde somente uma das partes ceda. Se o Brasil tentar impor arbitrariamente sua vontade, caminharia rumo àquele pretenso subimperialismo. Se o Paraguai se negar a ceder em suas posições para torná-las mais palatáveis ao Brasil e fazer das negociações um diálogo mais ponderado, estará trabalhando contra seus próprios interesses.
O bom-senso deve prevalecer e, neste caso específico, implica que os tratados internacionais sejam respeitados, mas que o Brasil pense em medidas paralelas de compensação. Um caminho interessante nesse sentido é suporte ao investimento massivo em infra-estrutura no Paraguai, tanto para melhorar as condições de vida da população como um todo, quanto para viabilizar uma transformação qualitativa na estrutura produtiva do país vizinho. O Paraguai necessita, por exemplo, de uma melhor rede de distribuição de energia elétrica, pois mesmo diante da fenomenal abundância gerada em Itaipu, a cidade de Assunção ainda tem “apagões”, uma vez que a malha de transmissão elétrica é obsoleta e causa grandes perdas de energia no caminho de Itaipu até a capital paraguaia. O Fundo para Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM) é um instrumento crucial nesta tarefa e deve ser acionado pelos governos no bloco para apoiar o desenvolvimento dos sócios menores como o Paraguai.
3 – O que representou para o Paraguai a vitória no pleito presidencial do ex-bispo católico Fernando Lugo, que liderou uma aliança que derrotou o Partido Colorado?Lugo venceu como candidato da oposição. A frase parece óbvia, mas no caso paraguaio o simples fato de o candidato eleito não pertencer ao Partido Colorado já representa, por si só, uma crucial transformação. A ANR (Associación Nacional Republicana, o nome oficial dos colorados) já governava o país desde 1948, passando por um período de seis anos de crise que desembocou no golpe de 1954, quando o General Alfredo Stroessner assumiu a presidência. Seu governo foi sustentado ao longo de quase 35 anos com base em um tripé formado pelo (1) aparato do Estado, (2) as Forças Armadas e (3) o Partido Colorado.
Mesmo com o fim da ditadura, o Partido Colorado sempre se manteve no governo do país, elegendo ou empossando quatro presidentes. A vitória de Lugo representa a efetiva redemocratização no Paraguai. Finalmente, observamos a alternância de poder e a pluralização do cenário político no país, duas condições essenciais ao exercício e à consolidação da democracia como a conhecemos. Nos próximos anos, poderemos observar a consolidação da aliança entre o PLRA e o movimento Tekojoja atuando como uma força progressista no Paraguai. O centro do espectro político poderá ser ocupado pela UNACE de Oviedo, que atuará como uma espécie de “fiel da balança” na disputa pela governabilidade do país. Já os colorados caminham rumo a um processo de fragmentação entre duas vertentes, uma tradicional associada a Nicanor Frutos e outra de viés neoliberal liderada por Luis Castiglioni.
No campo da política externa, podemos esperar uma transformação no relacionamento com os vizinhos através da busca por relações mais “solidárias”, nas palavras do próprio Lugo. Ademais, parece evidente que se adotará uma postura nacional mais reivindicativa e “orgulhosa”, na acepção positiva da palavra. As negociações com o Brasil serão prioridade, pois Lugo, assim como Evo Morales, fez destas reivindicações sua principal bandeira de campanha e delas dependerá, tanto hoje quanto amanhã, para manter seu suporte junto aos movimentos políticos que o catapultaram para a vida política. É razoável pensar que a relação com Hugo Chávez venha a ser cautelosa, pois durante toda a campana Lugo buscou se distanciar e diferenciar do presidente venezuelano. A maior aproximação será com Evo Morales e com Tabaré Vazquez, junto aos quais Lugo estaria interessando em retomar a iniciativa “Urupabol”, antigo projeto de integração que nasceu em 1963 com o intuito de formar uma aliança trilateral para coordenação econômica.
4 – Essa vitória confirma uma virada à esquerda do tabuleiro político na América Latina? Que semelhanças ela tem com outros movimentos vitoriosos em países como Bolívia, Venezuela e mesmo o Brasil? O caso do Paraguai se insere no âmbito dos movimentos de contestação das elites políticas tradicionais na América do Sul, mas há uma série de peculiaridades que devemos observar. Sem dúvida, a vitória de Lugo evidencia o esgotamento de vertentes políticas que prometeram mudanças positivas, mas que não foram capazes de levar maior desenvolvimento econômico e melhores condições de vida à população sul-americana em um âmbito mais geral e aos paraguaios, em particular. Nesse sentido, podemos considerar a vitória de Lugo como mais uma componente na onda de renovação política e transformações institucionais que vem tendo lugar na América do Sul.
Fernando Lugo, contudo, tem um perfil progressista, mas não se declara socialista. Nesse sentido, se aproxima dos casos de Brasil e, sobretudo, do Uruguai. Ao mesmo tempo, Lugo tem origem em movimentos sociais e deles depende para sua sustentação política, o que faz que com tangencie o exemplo Evo Morales. Mas ao contrário do que ocorreu na Bolívia, Equador e Venezuela, o Paraguai não vivenciou um colapso do sistema de partidos tradicionais. No caso paraguaio, as forças políticas pretéritas sobreviveram, embora tenham sido enfraquecidas e fragmentadas.
O Partido Colorado perdeu a presidência, mais ainda tem a maioria do congresso. A Aliança Patriótica para a Mudança (APC, em espanhol), a coalizão de mais de 20 grupos diferenciados que elegeu Lugo, é sustentada em grande medida pelo PLRA (o Partido Liberal), uma das mais antigas agremiações do país. Foi o PLRA quem conquistou a segunda maior bancada no congresso e os poucos cargos de governadores que não continuaram sobre controle dos Colorados. O vice-presidente recém-eleito, Julio César Franco é membro desta agremiação. Sem a aliança com este partido tradicional, Lugo não teria condições de governar com estabilidade.
Além disso, o novo fiel da balança no campo da governabilidade é a UNACE, um partido “novo” (fundado em 2005), mas que, na verdade, é uma dissidência do Partido Colorado. E é precisamente a UNACE de Lino Oviedo, uma figura antiga da cena política paraguaia, quem poderá decidir se o governo de Lugo ou a oposição colorada terá o controle sobre o congresso.
Em poucas palavras, Lugo não pode prescindir do apoio das forças políticas tradicionais. Lugo representa a mudança, mas não a ruptura; ao menos não no campo partidário-institucional. É uma força progressista, mas não é um revolucionário. Sua vitória pode constar como mais um triunfo da esquerda sul-americana, mas é, acima de tudo, conseqüência do descrédito das elites tradicionais.
5 – Até que ponto essas mudanças põem em risco a histórica influência estadunidense na região e o poder das forças oligárquicas locais?Ainda é difícil fazer prognósticos sobre as conseqüências para as relações bilaterais entre Paraguai e os EUA. No âmbito regional está claro que os Estados Unidos perdem mais um aliado em seu projeto implementar acordos de liberalização comercial bilateral, como os Tratados de Livre Comércio (TLCs) que estão sendo negociados e progressivamente aprovados com os países da América Central, além do Peru e Colômbia na América do Sul.
Enquanto o governo de Nicanor Frutos operava uma política pendular entre Estados Unidos e MERCOSUL como forma de pressionar o Brasil a ceder a suas reivindicações, Lugo provavelmente dará prioridade à integração regional. Isto não significa que haverá um alinhamento automático com o MERCOSUL, muito pelo contrário.
O mais provável é que o novo governo fomente alinhamentos políticos alternativos como o Urupabol, criando um eixo horizontal entre os países pequenos do bloco (Uruguai, Paraguai e Bolívia) para fazer frente ao eixo vertical dos países grandes (Brasil, Argentina e Venezuela). Nesse contexto, os Estados Unidos tendem a perder espaço. Contudo, se este alinhamento dos sócios menores falhar e o Brasil não for capaz de atender a algumas demandas do lado paraguaio, Lugo pode se sentir tentando a reeditar a política pendular de Nicanor, mesmo que de modo mais tímido.
As relações bilaterais com os Estados Unidos teriam um decisivo aprofundamento caso fosse eleito o colorado Luis Castiglioni, ex-vice-presidente de Nicanor Frutos. Castiglioni perdeu as internas coloradas no começo de 2008 e teve de se retirar da corrida presidencial, dando lugar a Blanca Ovelar, candidata de Nicanor que seria posteriormente derrotada por Lugo. Castiglioni havia protagonizado uma grande aproximação com os EUA a partir de meados de 2005, quando visitou Washington e recebeu Donald Rumsfeld no Paraguai, a primeira visita de um Secretário de Defesa dos Estados Unidos ao Paraguai em cinco décadas. Deste diálogo, resultou o polêmico acordo que concedia imunidade diplomática às tropas norte-americanas que realizariam treinamento conjunto com forças militares paraguaias.
No campo interno, Lugo enfrentará o forte aparelhamento do Estado pelo partido colorado, que tem cerca de 200 mil funcionários públicos como seus afiliados (mais de 3% da população total de 6,1 milhões de pessoas e quase 60% de todos os empregados estatais), um dos principais “legados” da ditadura Stroessner. Além disso, segundo dados da ONG Transparência Internacional, o Paraguai é um dos países mais corruptos do mundo [138º lugar no ranking de percepção de corrupção]. Lugo terá de enfrentar muita resistência em sua empreitada de moralização da vida política paraguaia. Muitos dos funcionários corruptos estão intimamente ligados às elites do agronegócio e do circuito comercial de reexportação que tem seu centro em Ciudad del Este, não sendo algo incomum que eles próprios façam parte do negócio.
Esta situação de potencial enfrentamento com a burocracia encastelada no aparato estatal e associada os interesses das pequenas, porém poderosas elites econômicas do país, será um dos maiores desafios ao novo governo.
6 – O novo governo afirma que pretende recuperar a sua soberania energética. Como você avalia a possibilidade de renegociação do Tratado de Itaipu? Os preços fixados pelo Tratado estão mesmo bem abaixo do mercado e as regras de comercialização são prejudiciais ao Paraguai?Desde que iniciou sua campanha, Lugo tem sido associado à figura de Evo Morales. Há semelhanças entre sua trajetória e reivindicações que dão fundamento a raciocínio. Assim como Morales tem suas raízes políticas no campesinato “cocalero” da Bolívia, Lugo entrou na política junto aos camponeses do pauperizado departamento de San Pedro.
Morales está à frente de um movimento com forte componente indígena, o MAS, enquanto Lugo lidera o movimento tekojoja (“igualdade” em guarani), que tem como principais bases de apoio o campesinato indígena do interior do Paraguai. Assim como Morales fez com o gás, Lugo pretende reivindicar melhores condições nos acordos energéticos assinados pelo seu país, agora se aplicando ao caso da energia elétrica produzida em Itaipu. Os paralelos entre o caso boliviano e paraguaio, contudo, param por aí.
Lugo, ao contrário do que muitos temem, não pode tomar atitudes como as de Morales. Primeiramente, por que se deslocassem tropas para Itaipu, como Morales fez nos campos da Petrobrás, estaria declarando guerra ao Brasil. Morales tratava com uma empresa que estava plenamente em seu território e Lugo trata com um país soberano com o qual divide um rio binacional (o Rio Paraná) que alimenta Itaipu. O governo brasileiro não tinha obrigação de um confronto direto com Morales para defender os interesses de uma Empresa, mas teria de tomar uma atitude enérgica em defesa de seus interesses caso estes fossem feridos pelo Paraguai.
Desde que foi eleito, Lugo tem buscado o diálogo para a renegociação. Tem indicado, ademais, que um tom mais ameno prevalecerá no médio prazo. O Brasil não é obrigado a renegociar o tratado, que tem validade até 2023. Até segunda ordem, a função dos tratados internacionais é exatamente impedir ajustes ad hoc nas relações internacionais ao estabelecer regras a serem seguidas, mesmo diante da mudança conjunturais e potencialmente efêmeras nas opiniões dos signatários.
Lugo reclama que os preços de Itaipu estão vinculados a uma cotação do barril de petróleo a US$ 3, quando o valor atual do combustível vem flutuando em torno dos US$ 100. Conseqüentemente, ele requer que o Paraguai receba US$ 1,8 bilhões por ano pelo excedente de energia cedido ao Brasil, ao invés dos atuais US$ 300 milhões.
A remuneração pela energia produzida é baixa porque, como não tinha recursos, o Paraguai teve de recorrer ao Brasil para financiar toda a obra. Hoje, o Brasil paga US$ 45,31/MWh, preço não muito diferente dos US$ 35/MWh que, em média, custa a energia produzida por outras hidrelétricas situadas plenamente em território brasileiros. Destes US$ 45,31/MWh, US$ 42,5 são destinados ao pagamento das dívidas acumuladas pelo Paraguai com a construção e US$ 2,81 vão diretamente para o Tesouro paraguaio, gerando os US$ 300 milhões líquidos (com o perdão do trocadilho) que mencionei acima.
Não é possível dizer se os preços são “justos”, mas sem dúvida são justificados. Obviamente, é legítimo que o Paraguai busque uma melhor remuneração e é o papel do presidente paraguaio defender os interesses do país, mas é igualmente legítimo que o Brasil defenda seus interesses invocando a legalidade do tratado de Itaipu. O mais provável é, pois, que os preços estipulados se mantenham como estão, talvez havendo espaço para algum leve ajuste ou oferta de compensação paralela que o Brasil possa fazer como demonstração de “generosidade” e/ou como gesto de “boa-vontade” para com o novo governo paraguaio.
7 – Boa parte do território oriental paraguaio foi invadido por latifundiários brasileiros produtores de soja. Isso será também um foco de tensão?O caso dos brasiguaios é uma das mais relevantes e também uma das mais delicadas pautas do relacionamento bilateral entre Paraguai e Brasil. Lugo entrou na vida política em função de seu envolvimento com movimentos camponeses em San Pedro, província em que atuou durante 11 anos, de 1994 até 2005. Dessa forma, o novo presidente é muito sensível à temática agrícola e fundiária.
No início de abril, logo antes de ser eleito, Lugo já havia prometido que não expropriaria as terras dos brasiguaios. Para Lugo, os brasiguaios já são paraguaios, pois já tem filhos e raízes no país. O boato sobre a expropriação provavelmente foi difundido pelos colorados, como uma forma de instigar medo na população contra Lugo. À época o então candidato à presidência prontamente respondeu dizendo que se tratava de um “medo infundado” e prometendo que os brasiguaios teriam todas as garantias em seu futuro governo.
Notas:
1. Mestrando em Relações Internacionais (PUC-Rio), Pesquisador-associado do Laboratório de Estudos do Tempo Presente [
www.tempopresente.org] e Editor da Revista Habitus UFRJ [
www.habitus.ifcs.ufrj.br]. Contato: arthur.bernardes@gmail.com
AMARAL, Arthur Bernardes do. O Paraguai em 7 Pontos. Rio de Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 3, Nº18, Rio, 2008 [ISSN 1981-3384]