2ª ParteA continuidade psicológica e o problema da duplicaçãoLocke usou o exemplo do príncipe e do sapateiro para mostrar que a identidade pessoal segue outro tipo de continuidade, a continuidade psicológica. Segundo a nova teoria proposta por Locke, a teoria da continuidade psicológica, uma pessoa no passado é numericamente idêntica à pessoa no futuro, se alguma houver, que tenha a memória da pessoa no passado, as suas características individuais, e por aí em diante — quer a pessoa no passado e a pessoa no futuro sejam ou não espácio-temporalmente contínuas entre si. A teoria de Locke afirma que o fanfarrão que está no corpo do sapateiro é de facto o príncipe e é portanto culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que é psicologicamente contínuo com o príncipe. Como vimos, este parece ser o veredicto correcto. Mas Locke enfrenta desafio fascinante que se segue, apresentado pelo filósofo britânico do séc. XX, Bernard Williams.
O nosso cientista malévolo entra de novo em cena e faz Charles, uma pessoa dos nossos dias, adquirir as características mentais de Guy Fawkes, um homem enforcado em 1606 por tentar fazer explodir o parlamento inglês. Obviamente, seria difícil saber se Charles está a fingir, mas se tiver de facto as características mentais de Fawkes, então, diz Locke, Charles é Guy Fawkes. Até aqui tudo bem.
Mas agora o nosso cientista, perversamente, provoca esta transformação também em outra pessoa, Robert. Adquirir as características mentais de Fawkes consiste apenas numa alteração do cérebro; se pode acontecer a Charles, então pode acontecer também a Robert. A teoria de Locke está agora em dificuldades. Tanto Charles como Robert são psicologicamente contínuos com Fawkes. Se a identidade pessoal é a continuidade psicológica, então tanto Charles como Robert seriam idênticos a Fawkes. Mas tal não faz sentido, uma vez que implicaria que Charles e Robert são idênticos entre si! Pois se sabemos que
x = 4 e y = 4
Então concluímos que
x = y
Do mesmo modo, se sabemos que
Charles = Fawkes e Robert = Fawkes
Então concluímos que
Charles = Robert
Mas é absurdo afirmar que Charles = Robert. Apesar de serem agora qualitativamente similares (cada um tem a memória de Fawkes e as suas características individuais), numericamente são duas pessoas distintas. Este é o problema da duplicação na teoria de Locke: o que sucede quando a continuidade psicológica é duplicada? (ou triplicada, ou quadruplicada...)
Williams preferiu a continuidade espácio-temporal e não a psicológica devido ao problema da duplicação. Antes de o seguirmos, pensemos um pouco mais na continuidade espácio-temporal. Tal como uma árvore pode sobreviver à perda de um ramo, uma pessoa pode sobreviver à perda de algumas partes, ainda que significativas. Mesmo que lhe amputassem as pernas ou os braços o leitor continuaria a ser a mesma pessoa. No entanto, a perda de partes provoca alguma descontinuidade espácio-temporal, uma vez que a região do espaço-tempo ocupada pela pessoa muda abruptamente de forma. Assim, a "continuidade espácio-temporal" deve ser entendida como continuidade espácio-temporal suficiente, de modo a permitir mudanças nas partes enquanto a coisa ou a pessoa permanecem as mesmas.
Quanta continuidade é continuidade espácio-temporal "suficiente"? Imagine que tem um cancro incurável na metade direita do seu corpo mas que a esquerda se encontra saudável. Este cancro abrange o seu cérebro: o hemisfério direito está canceroso ao passo que o hemisfério esquerdo se encontra saudável. Felizmente, há uns cientistas futuristas que podem separar o seu corpo em dois. Podem dividir os hemisférios cerebrais e remover a parte cancerosa. Dão-lhe próteses do braço e perna direitos, uma metade artificial do seu coração, e por aí em diante. Contudo, o leitor não precisa de qualquer prótese do hemisfério cerebral direito, porque o hemisfério esquerdo, que ficou saudável, acabará por funcionar do mesmo modo que todo o seu cérebro costumava funcionar. (Apesar de ficcional, não é de todo em todo implausível: os hemisférios cerebrais humanos podem de facto funcionar independentemente quando desligados, e replicar algumas funções — embora não todas — um do outro.) Seguramente, a pessoa depois da operação é a mesma que era antes: esta operação é uma maneira de lhe salvar a vida! Mas o resultado da operação é uma descontinuidade espácio-temporal significativa, uma vez que a continuidade entre a pessoa do antes e a pessoa do depois fica reduzida a metade do corpo. Lição: mesmo a continuidade de apenas metade do corpo seria suficiente para manter a identidade pessoal.
Mas agora a teoria da continuidade espácio-temporal enfrenta o seu próprio problema da duplicação. Alteremos a história do parágrafo anterior de tal modo que o cancro esteja apenas no cérebro, mas em ambos os hemisférios. A única cura é a radioterapia, mas a probabilidade de sucesso é apenas de 10%. É uma probabilidade baixa. Felizmente, pode ser aumentada. Antes da radioterapia, os médicos dividem o seu corpo - incluindo os hemisférios - em dois. Como antes, cada metade é completada artificialmente; inicia-se então a radioterapia aos hemisférios cancerosos. Isto dá-lhe duas hipóteses com 10% de probabilidade de sucesso, em vez de uma. Mas agora vem a reviravolta na narrativa: suponha o resultado improvável de que o tratamento cura ambas as metades. Assim, o resultado da operação são duas pessoas, cada uma das quais tem um dos seus hemisférios originais. Repare que cada uma mantém continuidade espácio-temporal "suficiente" com o leitor, uma vez que concordámos que metade de uma pessoa é o suficiente para haver continuidade. A teoria da continuidade espácio-temporal implica então que o leitor seja idêntico a cada uma destas duas novas pessoas, e temos uma vez mais a consequência absurda de que estas duas pessoas são idênticas entre si.
Cada uma das nossas teorias, a teoria da continuidade psicológica de Locke e a teoria da continuidade espácio-temporal, enfrenta o problema da duplicação. Pode haver continuidade, psicológica ou espácio-temporal, entre uma só pessoa original e duas sucessoras. Cada teoria afirma que a identidade pessoal é um tipo de continuidade. Assim, a pessoa original é idêntica a cada sucessora, o que implica o absurdo de as sucessoras serem idênticas entre si. Como resolver este problema?
Alguns sentir-se-ão tentados a abandonar as teorias científicas voltando-se para a alma. A continuidade, psicológica ou espácio-temporal, não determina o que acontece a uma alma. Quando se duplica um corpo, a alma do corpo original pode ser herdada por um ou outro dos corpos sucessores, talvez por nenhum, mas não por ambos. Embora seja uma solução arrumada, os indícios disponíveis não a sustentam: continuamos a não haver razão para aceitar a existência de almas. Seria melhor reformular de alguma maneira as teorias científicas tendo em conta o problema da duplicação. (Se formos bem-sucedidos, temos ainda de decidir entre a continuidade espácio-temporal, a continuidade psicológica, ou uma combinação das duas. Mas deixemos isso de lado por agora.)
Na sua formulação original, as teorias científicas afirmavam que a identidade pessoal é continuidade. Podíamos reformulá-las, para que afirmem, ao invés, que a identidade pessoal é continuidade imbifurcante. Normalmente a continuidade não tem bifurcações: normalmente, só há continuidade, em cada momento, entre uma pessoa e outra pessoa anterior. Nesses casos há identidade pessoal. Mas os exemplos de duplicação implicam bifurcação, ou seja, num dado momento, há continuidade entre duas pessoas e uma pessoa anterior. Assim, segundo a teoria reformulada, não há identidade pessoal nesses casos. Não há identidade entre Charles e Guy Fawkes nem entre Robert e Guy Fawkes. O leitor não sobrevive ao transplante duplo.
Ao contrário da afirmação de que as pessoas sucessoras são idênticas entre si, esta não é absurda. Mas é bastante difícil de aceitar. Imagine o leitor que recebe uma boa notícia antes da operação: a pessoa que tem o seu hemisfério esquerdo irá sobreviver à operação de divisão. Excelente. Mas agora, se a teoria modificada da continuidade espácio-temporal está correcta, e se além disso a pessoa que tem o hemisfério direito sobrevive, o leitor não sobreviverá. Pelo que é pior para si se a pessoa que tem o hemisfério direito sobreviver. Tem de fazer figas para que a pessoa que tem o hemisfério direito morra. Que estranho! A notícia de que a pessoa que tem o hemisfério esquerdo sobreviveria era boa; a notícia de que a pessoa com o hemisfério direito também sobreviveria parece ser mais uma boa notícia. Como poderia mais uma boa notícia tornar as coisas muito piores?
Soluções radicais para o problema da duplicaçãoA duplicação é um problema realmente difícil! Talvez seja altura de investigar algumas soluções radicais. Eis duas.
Derek Parfit, o filósofo britânico contemporâneo, põe em causa um pressuposto fundamental que temos mantido acerca da identidade pessoal, o pressuposto de que a identidade pessoal é importante. No início deste capítulo, concordámos que a identidade pessoal está ligada à antecipação, ao arrependimento e ao castigo. Isto é uma parte da importância da identidade pessoal. O último parágrafo da secção anterior pressupôs outra parte: que é muito mau para o leitor se no futuro não houver continuidade entre outra pessoa e o leitor. Isto é, deixar de existir é muito mau. Parfit põe em causa este pressuposto de que a identidade é importante. O que é realmente importante, defende Parfit, é a continuidade psicológica. Na maior parte dos casos triviais, a continuidade psicológica e a identidade pessoal andam par. Isso é porque, segundo Parfit, a identidade pessoal é continuidade imbifurcante, e a continuidade raramente bifurca. Mas no caso da duplicação ramifica. Nesse caso o leitor deixa de existir. Mas no exemplo da duplicação, diz Parfit, deixar de existir não é mau. Pois ainda que o próprio leitor deixe de existir, preservará tudo aquilo que importa: terá continuidade psicológica (em dose dupla, na verdade!).
As perspectivas de Parfit são interessantes e provocadoras. Mas podemos realmente aceitar que por vezes deixar completamente de existir é insignificante? Isso implicaria uma revisão radical das nossas crenças habituais. Haverá mais opções?
Podíamos, ao invés, reconsiderar um dos nossos outros pressupostos acerca da identidade pessoal. O argumento da duplicação pressupõe que se há identidade pessoal entre a pessoa original e cada uma das sucessoras, temos a conclusão absurda de que as sucessoras são idênticas entre si. Mas este resultado absurdo só se segue se a identidade pessoal for identidade numérica, a mesma noção que o sinal de igualdade (=) exprime em matemática. Fizemos esta pressuposição logo à partida, mas talvez seja um erro. Talvez a "identidade pessoal" nunca seja realmente identidade numérica. Talvez o resultado de toda a mudança seja mesmo uma pessoa numericamente distinta. Se é assim, então não seria preciso afirmar que a bifurcação destrói a identidade pessoal. Porquanto podíamos regressar à ideia de que a "identidade" pessoal é continuidade (psicológica ou espácio-temporal — falta decidir isso.) Nos casos em que há bifurcação, pode haver relação de "identidade pessoal" entre única pessoa e duas pessoas distintas; isto não é absurdo se a identidade pessoal não for identidade numérica. Teríamos ainda de distinguir entre a mera semelhança qualitativa ("ele não é a mesma pessoa que era antes de ir para a faculdade") e uma noção mais estrita de "identidade" pessoal que se associe ao castigo, à antecipação e ao arrependimento. Mas mesmo esta noção mais estrita seria mais frouxa do que a identidade numérica.
Poderemos realmente acreditar que as nossas fotografias de infância são de pessoas numericamente distintas de nós? Também isso exigiria uma revisão radical de crenças. Mas às vezes é precisamente isso o que a filosofia pede.
autor: Theodore Sider - Universidade de Rutgers
Tradução de Vítor Guerreiro
Retirado de Riddles of Existence, de de Earl Conee e Theodore Sider (Londres: Clarendon Press, 2005).
fonte:
http://criticanarede.com/met_idpessoal.html----------------------------------------------------
Sugestões de leitura
A antologia de John Perry Personal Identity (University of California Press, 1975) é uma excelente fonte para leituras adicionais acerca da identidade pessoal. Contém um excerto de John Locke em defesa da perspectiva da continuidade psicológica, um ensaio de Derek Parfit que argumenta que a identidade pessoal não é tão importante como normalmente pensamos que seja, um artigo de Thomas Nagel sobre a bissecção cerebral, e muitos outros artigos de interesse. A introdução de Perry à antologia é também excelente.
Outro bom livro, também intitulado Personal Identity, é da co-autoria de Sydney Shoemaker e Richard Swinburne (Blackwell, 1984). A primeira parte, redigida por Swinburne, defende a teoria da identidade pessoal com base na alma e é particularmente acessível. A segunda parte, redigida por Shoemaker, defende a perspectiva da continuidade psicológica.
Bernard Williams introduz o problema da duplicação em "Personal Identity and Individuation", no seu livro Problems of the Self (Cambridge University Press, 1973).