Se foram mencionados, aqui, os 'bullshits filosóficos', posso dizer que essa besteira de qualia é um dos maiores bullshits filosóficos já criados. A argumentação para defendê-los é tipicamente crente. Quem acredita não consegue conceber como alguém "racional" não "vê" que eles (qualia, deuses, espíritos e demais artefatos mentais mágicos) "existem" e que são um "sério problema a ser resolvido" (normalmente, para o crente, "a ciência" não é *nem será capaz* de resolvê-los) pois o universo, a realidade, a vida não fazem sentido se eles não existirem. E quem é racional-científico não consegue entender como alguém pode se deixar levar por essas tolices fantasiosas.
Vamos a alguns prolegômenos que acho necessários para ajudar na "digestão" do que quero apresentar, que é a demonstração de que, em síntese, é exatamente a linguagem, em qualquer nível ou estruturação, a geradora de toda e qualquer sensação de subjetividade. Não sei se conseguirei apresentar um remate de uma só vez (vou tentar) mas, no correr do debate, poderemos chegar lá. Logo em seguida, apresentarei justificações físicas, bem objetivas e práticas para fundamentar o que exponho a seguir.
Eu já falei, algures aqui neste forum, que o problema todo da ilusão é que ela não pode ser percebida diretamente pelo iludido. Essa é toda a questão que fundamenta o cerne de debates como esse. É o fulcro do problema. Mas pode, sem dúvida, ser percebida indiretamente. Tentemos isso.
O "problema *difícil*" (por favor, traduzamos o hard do hard problem assim) da consciência não existe pois que é, simplesmente, *a* ilusão. Veja, não é, simplesmente, "uma" ilusão. É a própria, em "pessoa". A ilusão é a essência da consciência; é a própria "substância" de que a consciência, o "eu", é feito. É por isso que não é possível percebê-la diretamente pois tal seria equivalente a um tipo de suicídio quase arquetipicamente equiparável ao da mitológica Medusa olhando-se no espelho.
Toda ilusão é criada linguisticamente. A linguagem é a única maneira pela qual um sistema cognitivo pode distorcer a realidade porque a linguagem estrutura-se por representações simbólicas da realidade e, também (e aqui está o problema), por representações simbólicas das representações simbólicas*.
*Acho que a proposta do Gilberto passa por aí.
Subjetividade implica em individualidade *filosófica*. Esta individualidade é diferente daquela competitiva darwiniana, do tipo que você postou naquele tópico, Adriano, Seja individualista... Individualidade filosófica, no sentido estrito da subjetividade, implica em solipsismo, num discurso 'autólogo', que seria, mais ou menos: O "vermelho" do vermelho é meu e ninguém tasca! Ninguém jamais saberá como eu o vejo! É meu! É meu! Fique você com o seu vermelho! Isto é, se você existir mesmo. Tenho grande propensão a achar que você é meu também...
Aliás, diga-se de passagem, que o que sempre acho intrigante mesmo é porque é, justamente, o vermelho a cor normalmente evocada para a finalidade desse tipo de argumentação.
Vou atacar o problema e tentar mostrar que não faz sentido algum acreditar nesta suposta "realidade" da subjetividade pelo viés da problemática subjetiva das cores.
A pergunta não é por que nós vemos assim; a pergunta é o que você esperaria ver se não fosse assim. No processo evolutivo, o sistema óptico-cerebral (ou neuro-óptico..., não estou certo de qual seria o termo mais adequado) "teve que encontrar" alternativas para além das percepções de luminância (gradações de cinza) para enriquecer, de alguma forma, a eficiência competitiva. Então, o sistema visual evoluiu para a percepção de outro tipo de *gradações* (porque é o que a percepção de cores é; nada qualitativo mas gradativo) -- cores (ou, mais apropriadamente, matizes) variando gradualmente. Só isso, o reconhecimento de que todo um aparato físico visual totalmente específico para a percepção de cromaticidades teve que evoluir na fisiologia neurológica e visual, sem o qual nenhuma "subjetividade colorida" poderia ter lugar já é suficiente para demonstrar a natureza física dessa subjetividade.
Também, não há qualquer motivo para concluirmos que, já que foi um processo evolutivo cujo resultado estrutural (portanto, herdado por todos os descendentes normais) que delineou o aparato visual de cromaticidades, uns enxerguem algo diferente dos outros. E os distúrbios de percepção cromática, que até devem reforçar essa concepção que acabo de apresentar, também devem determinar perceções idênticas em cada um dos portadores de cada tipo de distúrbio. Assim, qualquer variedade de dicrômatas e acrômatas, daltônicos, tritanópicos, etc. devem ter, em cada grupo específico, as mesmas percepções visuais, ainda que consideradas subjetivamente.
Mas vamos um pouco além. Basta uma simples 'olhada' atenta no diagrama CIE para entender isso (e alguns livros o apresentam em preto e branco). A distinção "qualitativa" (não é subjetiva, esta, pois são duas propriedades físicas totalmente diferentes da luz que são distinguidas) nesta visão mais complexa desenvolvida evolutivamente não é entre cores variadas, entre vermelho, verde, azul ou qualquer outro matiz, mas, apenas, entre luminância e matizes. Os matizes interpenetram-se quando variam, *exatamente*, assim como tons de cinza (luminâncias variadas). Apenas, nunca demos nomes específicos para certas gradações distinguíveis de tons de cinza, a menos de claro ou escuro que pode gerar a tal "subjetividade" também. Poderíamos, assim, falar na "cinzicidão" (com um nome específico, claro) de um certo cinza em relação a outros e nos perguntarmos se todos vêem aquele cinza específico "da mesma forma" e se há subjetividade nisso. Não existe subjetividade em nada além da ilusão. Aliás, o cinza, normalmente, é considerado uma cor também, *qualitativamente* diferente de branco ou preto, que não são considerados, tecnicamente, cores. Na escala dos matizes (tons de cinza "coloridos") teríamos algo análogo aos limites preto e branco -- as transições vermelho/infravermelho e violeta/ultravioleta.
Poderá o iludido dedicado e insistente alegar que a ilusão não pode ser provada. De fato, talvez seja a única coisa (paradoxalmente) "provável" que não pode ser provada. Mas pode ser feito algo muito melhor que isso: a ilusão pode ser mostrada assim como tem sido inumeravelmente mostrada a inexistência de deuses e demais artefatos mágicos e, inutilmente, para quem insiste na decisão de acreditar. Todavia, como a consciência não existe, não existem decisões e escolhas; tudo é como tem que ser.
Por enquanto, e na pressa com o pouco tempo que tem me restado, é isso. Mas estou disposto a ir bem mais além nesse debate interessantíssimo. Respostas e questionamentos poderão me ajudar a alavancar e articular melhor as argumentações.