Tudo bem. Mas em que medida um sequestro é uma atitude moral? A menina não parece ter sido consultada sobre sua preferência, se bem que provavelmente nem tem idade para decidir uma coisa dessas ainda, além disso, e o sofrimento causado às familiares da menina, desesperadas por saber seu paradeiro, imaginando que ela poderia estar sofrendo as piores violências?
De fato, os sentimentos da tia (e até certo ponto da mãe, que é negligente mas não é perversa) são argumentos contra. Não creio que sejam decisivos, porém.
Outra coisa: nós só supomos que o chefe de polícia aposentado e sua esposa dariam uma família melhor para a criança do que a própria mãe, mas isso é necessariamente verdade? Sabemos muito pouco sobre a vida privada dele para tirar essa conclusão, aliás, tudo o que sabemos sobre ele ouvimos de sua própria boca. O que nós sabemos sobre seus valores morais é que é uma pessoa capaz de planejar e executar o sequestro de uma criança - será que ele seria um exemplo tão bom assim?
Considerando os riscos que correu, seu histórico, e a forma como aceitou ter sua pensão de aposentadoria reduzida à metade para levar adiante o plano, eu diria que temos todos os motivos razoáveis para crer nisso, sim.
Você não acha suspeito que ele tenha precisado recorrer a métodos ilegais para conseguir cuidar de uma criança?
O filme deixou claro que ele não queria simplesmente adotar uma criança, e sim
oferecer um lar melhor para uma criança que tinha toda probabilidade de ser atingida seriamente pela negligência da mãe.
Não poderia ter tentado uma adoção, por exemplo? Se tentou, o fato de não ter conseguido não pode acender um sinal de alerta? Você se responsabilizaria por deixar uma criança nas mãos de alguém sobre quem sabe tão pouco?
Eu aceito passivamente que tantas crianças fiquem com pessoas que
sei que não as merecem. Por que me oporia em uma situação dessas?
Não concorda que um processo judicial de transferência de guarda, no qual a justiça tivesse amplas condições de avaliar famílias candidatas e decidir pela melhor seria muito mais adequado?
Talvez. Ou talvez não. A Lei raramente é capaz de decidir com sabedoria assuntos de família.
Nope. Para isso existe a Ética. A Lei e o Direito servem apenas para resolver situações concretas, sem abordar os méritos das questões morais subjacentes (embora muitas vezes pensem que sim).
Impressão minha, ou você acredita que a finalidade do Direito é resolver dilemas morais?
Alguns dilemas morais são insolúveis. Dependem de visões de mundo muito particulares, por exemplo, a questão do aborto, cuja polêmica toda está em decidir se um embrião é um ser humano ou não. Uma vez que uma pessoa firma uma posição sobre se é ou não é, não haverá como ela se entender com quem tenha a posição contrária.
A questão do aborto tem solução. Só que essa solução não pode ser limitada à esfera da decisão de abortar ou evitar o aborto simplesmente; é preciso atuar nas causas sociais e econômicas.
Penso que é essa a finalidade prática da moral e da ética: oferecer soluções práticas para dilemas morais, apontando medidas concretas. Não necessariamente restritas ao problema originalmente enunciado, mas ainda assim medidas concretas.
Cabe à lei estabelecer que regras serão seguidas pelas pessoas e ela deve se orientar na ética ao máximo possível, mas é claro que nem sempre "o máximo possível" é o suficiente.
A Lei não é a Ética; não pode substituí-la sem que haja distorção. E distorção, para certos assuntos de interesse humano maior, não é algo que possa ser tolerado.
Acredito que a mãe deveria ser responsabilizada por seus atos passados de negligência (mas não pelos futuros, claro), concordo que ela deu motivos suficientes para ter a guarda da criança questionada. Só não acredito que seja válido resolver essa situação com um sequestro.
Sequestro dificilmente é a melhor solução, concordo. Só não posso te dizer que acredito sinceramente que disputa judicial seja em algum sentido melhor.
Não questionamos atos futuros prováveis com frequência? Não é por isso que há, por exemplo, ordens judiciais para que certas pessoas se mantenham longe de outras?
Esse modelo não se aplica, já que a questão em foco é se devemos permitir que a criança continue exposta a riscos inaceitáveis ou em vez disso cercear os direitos da mãe biológica.
It's a no-brainer, really.
Seu argumento até faz sentido do ponto de vista do Direito, mas não do ponto de vista da Lógica. O argumento "criança foi exposta a riscos inaceitaveis pela mãe no passado, logo ela será exposta a riscos inaceitáveis no futuro" é um caso de indução, e acredito que você tenha conhecimento de que indução lógica é uma falácia, a conclusão não segue das premissas. Nesse caso você não pode invocar a Ética para pedir a perda de guarda da mãe.
Como OUSA me acusar de ter mais simpatia pelo Direito do que pela Ética e pela Lógica?!?
Vou contar para minha mãe
Falando sério agora, acho que vou ter de concordar em discordar neste ponto. Acho sim que seria a decisão lógica, ética e natural.
As mães mais desafortunadas não deixaram muitos descendentes, de forma que a maioria das pessoas vivas hoje descendem de uma linhagem de mães, se não perfeitas, pelo menos boas o bastante.
A evidência anedótica que tenho para oferecer aponta no sentido oposto, infelizmente
Quem sabe aulas sobre paternidade responsável, junto com as de orientação sexual nas escolas não seriam uma boa idéia?
Não é das piores
embora eu ache que esse tipo de assunto tem de ser mobilizado pela população, mais do que pelo Estado.
De qualquer forma, como você espera que o Estado dê afeto em massa a milhões de crianças? E mesmo que ele tente, você espera que ele tenha resultados melhores do que as próprias famílias?
Não, claro que não espero.
Acredito e espero que eventualmente surgirão movimentos sociais para a paternidade responsável, independentes do Estado e provavelmente em algum grau conflitantes com este. Movimentos que entre outras coisas questionem e fiscalizem a qualidade e o alcance da atividade do Ensino Público, das instituições carcerárias voltadas aos adolescentes, dos Conselhos Tutelares.
Eu nunca confiaria apenas no Estado para algo tão importante.
O conceito de livre-arbítrio tem seus problemas, claro, mas eu não vejo como a ética pode ser dissociada da ideia de que o ser humano tenha no mínimo alguma liberdade para tomar decisões, mesmo as mais difíceis.
Alguma, sim. Mas isso é o de menos, já que são os fatos e não as intenções que definem o valor moral dos atos.
Aí, tá vendo? Eu penso o contrário, as intenções são mais importantes que os atos ao se julgar um valor moral.[/quote]
Para avaliar possíveis punições, provavelmente são mesmo.
Para definir metas desejáveis para a sociedade, não, não acho que sejam.
Caso importantes fossem os fatos, independente das intenções, você poderia atribuir valor moral a uma jaca que cai na cabeça de um ladrão.
Se houvesse como influenciar a chance da jaca cair, imagino que sim
Falsa dicotomia; não se deixa de punir um ser humano por ele não ter tido escolha razoável.
Acho que você está errado. Tanto que não se pune uma pessoa que mata por legítima defesa ou que rouba para não morrer de fome.
Tem certeza de que não?
Como aliás também não se deixa de punir um gato por ser um gato e precisar arranhar coisas, mas essa já é outra questão.
Aí já é com razões de adestramento. Mas se seu gato arranha suas coisas você não vai julgar o seu caráter, não é? Se seu gato ataca o seu aquário e come seu peixinho, você o acusa de assassinato? Se fosse eu a matar o seu peixinho, isso não seria mais grave?
Seria mais grave, mas apenas porque a sua bagagem cultural lhe dá motivos para evitar tal ato. O gato não tem essa capacidade, e nesse sentido não tem caráter algum. Outra pessoa, de outra cultura, poderia (por exemplo) achar que comer o peixe do aquário é algum tipo de bom sortilégio.
Nem por isso o dano deixaria de ser real. E portanto, o valor moral do ato não mudaria significativamente, mas a forma de encorajar uma mudança de rumo, essa sim poderia mudar.
Concordo que há limites para a liberdade humana. Mas se a liberdade de decisão não existe, acho que um cérebro tão volumoso para possibilitar a faculdade da razão é um desperdício.
O cérebro trata dos processos cognitivos; não tem poder sobre liberdade de decisão. Que eu saiba, pelo menos.
Tomar uma decisão não é um processo cognitivo? Se não é com nosso cérebro que tomamos decisões, então é com quê?[/quote]
Eu me referia ao órgão biológico em si. Ele processa informação e gerencia muitas funções do organismo, mas não há evidências conclusivas sobre até que ponto ele nos capacita a decidir livremente. Muitas das nossas decisões, talvez a esmagadora maioria, se devem muito mais a condicionamentos e idiosincracias do que à lógica.
Aliás, culturalmente o ser humano é um tanto avesso à lógica, talvez mais do que outros animais.
Não discordo, mas deve-se levar em conta que a intenção do sujeito é importante para dar valor moral à ação. Uma pessoa que acidentalmente atropela um psicopata que ia matar dez pessoas não é um herói. O Dexter, daquele seriado de um psicopata que mata psicopatas também não é uma pessoa boa.
Um ato acidental não tem valor moral exceto, é claro, por acidente, concordo.
Dexter é outra história. Ele flerta constantemente com o próprio apreço pelo homicídio, sim. Em uma situação real ele dificilmente conseguiria ficar muito tempo sem se deixar levar por racionalizações e perder o rumo de vez. Mas é teoricamente possível matar intencionalmente "virtuosamente", pelo menos em condições bem específicas. Vem daí o mito dos heróis de guerra, inclusive.