Mudança da poupança desnuda contradições da economia, que também são as do governoSão tantos os nós que a impressão é que o governo em vez do especulador não consegue viver sem juros altosO governo realmente complicou e confundiu ao anunciar o que fará para tirar a tranca do juro fixo da caderneta de poupança e assim liberar o Banco Central a seguir com a dieta da taxa Selic, hoje a 10,25% ao ano, menos o Imposto de Renda de 15% a 22,5%, conforme o prazo da aplicação. Complicou porque se mostrou inseguro sobre as mudanças. Confundiu porque optou por regras complexas e incertas.
De relance, apreciando a bancada de ministros anunciando o que é que “deverá” mudar – sim, deverá, pois tudo está aberto -, ficou a impressão de que Guido Mantega, da Fazenda, e Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, poderiam deixar escapar a palavrinha “tablita” - neologismo associado a outro, de “tecnocracia”, ambos relacionados com redutores à época dos choques heterodoxos.
Nada se parece mais com tablita que a tabela de desconto do IR a ser introduzida sobre os rendimentos dos saldos superiores a R$ 50 mil nas contas das cadernetas. Atrelaram a coisa à Selic. Se ela ficar acima de 10,5%, não há imposto, nada muda. Abaixo de 10,5%, haveria seis faixas de incidência sobre o rendimento dos depósitos acima de R$ 50 mil: de 20% a 100%, caso a Selic recue até 7,25%.
A tributação será feita na declaração anual do IR de 2010, a ser apresentada em 2011. Há outros dispositivos que aliviam o poupador que dependa dessa renda. Mas, e a adversativa faz toda diferença, trata-se de uma proposta a ser levada ao Congresso via projeto de lei. Desconhece-se o teor do projeto e, segundo Mantega, “não há pressa”, já que as mudanças só valem para 2010.
Depende. Em véspera da eleição a tendência é que os parlamentares sejam hiperativos: poupança é assunto bastante popular. Pode sair do Congresso qualquer coisa, menos o que quer o governo: manter a atratividade dos fundos de renda fixa, cujos ativos em boa parte são papéis do Tesouro referenciados à Selic, e isso sem deixá-lo mal com o pequeno poupador, maioria entre os depositantes, e sem desfalcar a arrecadação do IR, que já vem em queda pela recessão.
Há um sujeito oculto em toda discussão que logo dará as caras: os governadores e prefeitos. O IR, assim como o IPI, é partilhado com estados e municípios. Eles perderam repasse tanto pela queda geral da arrecadação como pelas isenções de IPI dadas pelo governo para incentivar a venda de carros e eletrodomésticos entre outros bens.
Mazelas escondidasÉ como se o governo se atasse às muitas contradições da política econômica, que são as suas próprias, deixando transparecer, ainda que sem querer, que a elevada taxa de juros é solução, não a maior de todas as aberrações. O governo perdeu tempo com distrações, não aprofundou as reformas da economia, e agora se descobre acuado.
É real o risco de desequilíbrio dos fluxos financeiros. Caderneta rende 7%, grosso modo, entre o juro fixo de 0,5% ao mês e correção pela TR, a taxa referencial, que já fora mudada em 2006 pelo mesmo motivo: pressões da banca devido aos saques nos fundos.
Mutuário é esquecidoA Selic caíra de 17,25% no início de 2006 para 13,75% em outubro. Com TR de 2%, a caderneta pagava 6,95%. O fundo do Bradesco, por exemplo, excluído o IR, CPMF (que havia) e a taxa de administração de 4,5%, rendia 6,69%, abaixo da caderneta. A história se repete.
Em 2006, o então secretário de Política Econômica, Júlio Sérgio Gomes de Almeida, mexeu na TR, dando tempo a que o problema fosse apreciado em seu todo. Ele saiu do governo e o assunto morreu. A TR, porém, já está no osso, e ela corrige também os financiamentos da casa própria, outro ausente da discussão, já que, se diminuir o rendimento da caderneta, nada justifica manter os juros pagos pelo mutuário da habitação.
Se os ativos e os passivos não forem compensados, só lucrarão os operadores do sistema financeiro da habitação.
Escravo dos jurosQuestões complexas requerem soluções simples, especialmente se ao governo faltam condições políticas e tempo para fazer o certo. O simples seria fixar uma linha de corte da poupança, os tais R$ 50 mil, ou R$ 500 mil, segundo o governador Aécio Neves, e tributar o que a excedesse. Nada mais.
Ao jogar a mudança para 2010 o governo falou em baixar o IR dos fundos, mas não disse quando nem como ela ocorrerá, embora também condicionada à queda da Selic. A impressão é que em vez do especulador o governo é que não consegue viver sem juros altos.
É ironia, mas é verdade. A queda da Selic também afetará o desempenho dos fundos de pensão, e disso nem se falou ainda.
Como o mestre mandarA conjuntura de juros baixos revela também a disfuncionalidade do sistema de comando da economia, e não há nisso crítica à eficácia do ministro Mantega, mas ao papel que o presidente Lula o obrigou desde que tomou gosto pela área econômica após a saída de Antonio Palocci da Fazenda. Não é que Lula seja despreparado.
O problema é que por seu intermédio a política se sobrepujou aos resultados em detrimento da eficiência macroeconômica. É o que explica assessor palaciano falando como ministro sobre a caderneta e burocrata da Receita dando pito na Petrobras sobre crédito tributário. Sequelas da formulação voltada mais ao projeto político que à economia.
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