Chico depois da morteAndrea Regis e Eduardo Horácio Jr.
2003-11-17
Marcel Souto Maior buscou isenção e imparcialidade ao escrever As Vidas de Chico Xavier (Editora Planeta, 271 págs.). Conseguiu, pelo menos no início. Na segunda metade do livro, o jornalista deixou-se impressionar. Principalmente pelas mensagens enviadas pelos mortos aos familiares. O que não prejudica a integridade da obra, até hoje a única biografia de Chico escrita por um não-espírita. No início da década de 90, por quase dois anos, Marcel percorreu a trilha do médium. Independente da religião (o autor não tem nenhuma), o livro prova que, acima de tudo, Chico Xavier foi um grande personagem. Para falar desse personagem, entrevistou parentes, amigos, conhecidos, acompanhou sessões em Uberaba e fez profunda investigação. Em 1994, estava pronta a obra, que foi reeditada depois da morte do médium.
Da nova edição, 50 mil exemplares foram vendidos. Num cuidadoso trabalho de observação, o jornalista detalha a trajetória do espírita mais famoso do País. Apesar de conter elementos da doutrina em questão, foca-se primordialmente na história do personagem, muitas vezes dramática, algumas vezes curiosa e, de vez em quando, tragicômica. A fórmula torna a leitura instigante, tanto para adeptos quanto para não-adeptos do kardecismo. Esse é o charme de As vidas de Chico Xavier, que será lançada em Goiânia na sexta, 21, na Saraiva Mega Store, no Shopping Flamboyant. Marcel falou com exclusividade à
Tribuna do Planalto na quarta-feira, 12, e não se esquivou de nenhuma pergunta, como o leitor pode conferir na entrevista abaixo.
Tribuna do Planalto - Qual imagem de Chico Xavier ficou mais forte no imaginário da população brasileira: a de santo, de personagem exótico ou de algo que vem do sobrenatural?Marcel Souto Maior - Acho que estas imagens se misturam. Chico é um santo para milhões de brasileiros, é um personagem extravagante e misterioso para muita gente e é, sim, algo que vem do sobrenatural. É o homem capaz de servir de ponte entre vivos e mortos, de pôr no papel mensagens, poemas, crônicas assinados por espíritos. No meu livro, tento reconstituir sua trajetória com o máximo de isenção e objetividade. Que trajetória é esta? É a história do menino pobre, mulato, filho de pais analfabetos que – primeiro – se transforma num escândalo nacional ao passar para o papel textos assinados por mortos ilustres ou anônimos e que, depois, com o tempo e com muito trabalho, vira um ídolo popular. Nesta trajetória, as imagens de santo, personagem exótico e sobrenatural se fundem. Um fato, no entanto, é indiscutível, comprovado, acredite-se ou não em vida depois da morte: Chico escreveu mais de 400 livros, vendeu mais de 20 milhões de exemplares e doou toda a renda dos direitos autorais para instituições beneficentes. "Eu não escrevi livro nenhum. Os espíritos escreveram", repetia.
Chico pode ser considerado um ídolo mais popular do que religioso como Padre Cícero e Mãe Menininha? Ou está mais para um santo, já que realizava atos que são similares aos de alguns?Ele é um ídolo popular. Sempre fez questão de se afirmar como um homem comum, o Cisco Xavier. Quando diziam que ele era um iluminado, ele respondia: "Sou só uma tomada entre dois mundos." Quando o chamavam de Papa do Espiritismo, ele brincava: "Só se for a papa do angu na panela." Quando lançou o livro número 100, foi uma festa entre os espíritas no País. Ele agradecia, tímido, meio envergonhado, e repetia: "Este é o livro número cem, mas cem com s." Sem livros. Chico não se considerava um santo e eu também não o encaro assim. Ele foi um personagem raro, único. Alguém com um sentido de missão, de doação e de aceitação quase insuperáveis, mas que também errava, como todos nós.
O livro é marcado com exemplos de caridade, perdão e, principalmente, humildade. Estariam aí os maiores legados do líder espírita? Este é, sem dúvida, o principal legado de Chico. Ele dizia que, se pudesse, se tivesse algum poder na Terra, mandaria pintar nas fachadas de todas as casas a frase Amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Chico abriu mão de tudo – de bens materiais, da possibilidade de construir a própria família, de sua privacidade – para se dedicar à missão de ajudar o outro sem esperar nada em troca e de divulgar a doutrina espírita. É um exemplo difícil de ser seguido. Graças à renda gerada por seus livros, uma rede de solidariedade se mantém ativa e integrada em todo o Brasil. Graças a seus livros – e às mensagens difundidas por eles – dezenas de milhares de famílias encontram o consolo e conseguem superar tragédias pessoais, como a perda de filhos. Quantos suicídios Chico ajudou – e ainda ajuda – a evitar? Quantas crianças e idosos são ajudados indiretamente por ele em todo o País?
O personagemPara biógrafo, Chico Xavier era mais do que um personagem. Foi um missionário que dificilmente será substituído
O senhor afirma que resolveu fazer a biografia de Chico Xavier porque as disponíveis eram feitas por espíritas. Mas, no fim das contas, principalmente a partir da segunda metade do livro, não há momentos em que o sr. parece um kardecista? O sr. inclusive é convidado freqüentemente para fazer palestras em centros espíritas... Foi possível manter algum tipo de imparcialidade jornalística realizando a obra?Eu tentei ao máximo ser isento e imparcial. Foi um compromisso meu, desde o início do trabalho. Mas não consegui realmente disfarçar a surpresa diante, por exemplo, das mensagens dos mortos para suas famílias psicografadas por Chico, de olhos fechados, em velocidade impressionante, durante as sessões públicas. Cada carta surgia repleta de nomes, apelidos, sobrenomes de família, informações detalhadas sobre as circunstâncias da morte e sobre o dia-a-dia do morto na outra dimensão. Como explicar estas mensagens? Muitas vezes Chico só tinha trocado duas ou três palavras com os pais para quem o morto enviava notícias. Estas mensagens me impressionaram, mas eu tentei manter o distanciamento diante delas e de outros fatos surpreendentes da trajetória de Chico.
Como o trabalho foi recebido pelos colegas e por sua família? Houve preconceito por se tratar de um personagem ligado diretamente a uma religião?Houve preconceito sim. Na redação do Jornal do Brasil, onde eu trabalhava, os amigos brincavam quando souberam do meu projeto: "Não é o Chico Buarque não? Não é o Chico Anysio? O Chico Mendes?" Não. Era Chico Xavier. Na família, apenas algumas pessoas estranharam, porque eu não tinha nenhum vínculo com qualquer religião, mas todas reconheciam a importância do personagem para o Brasil.
O sr. considera que, ao final da redação do livro, adquiriu algum aprendizado?Com certeza. Chico revela outros caminhos além desta corrida incessante, esta roda-viva meio alucinada em que nós nos envolvemos: "ganhar dinheiro-comprar-fazer dívidas-ganhar dinheiro comprar-fazer dívidas"… Ele estava fora, muito longe, deste círculo consumista, vazio, que não nos preenche nunca. Solidariedade, tolerância, paciência, esperança. Foram lições que ficaram deste trabalho.
Em entrevistas, o sr. costuma dizer que há uma crise de fé gravíssima no País. Isso, por um lado, não é bom? As pessoas não estão procurando caminhar por si mesmas, sem precisar de ajuda de um outro como a religião? Ou o sr. considera a fé um elemento necessário?Quando falo em crise de fé, não falo de religião. Falo num sentido mais amplo: há uma crise de valores, de crença em objetivos maiores, uma multidão voltada apenas para o próprio umbigo, alheia ao que está acontecendo em volta. Há uma desvalorização absurda da vida. O que é viver? É perder cinco quilos para o verão, comprar o carro zero em 12 prestações sem juros, enfrentar o terrorismo internacional a tiros e bombas? Muita gente vive numa bolha artificial, desprezando (e ironizando) valores básicos como os incorporados por Chico. O amor e a bondade, por exemplo…
O Brasil é que tem mais kardecistas no mundo. É exagero atribuir boa parte desse fenômeno a Chico Xavier ou o próprio Chico é um reflexo do fenômeno?Não é exagero. O Chico teve um papel fundamental para tornar o Brasil o País com o maior número de espíritas kardecistas do mundo.
O sucesso e a popularidade de Chico Xavier não se explicam também pelo fato de seu espiritismo ser sincrético, com muitos elementos católicos, por exemplo?Sim. Chico era, antes de tudo, cristão. Seguia à risca as lições de Jesus Cristo e de Kardec. Nunca cobrou de ninguém, em momento algum, que esta pessoa se tornasse espírita. Sempre respeitou todas as religiões. O que importava para ele é que a pessoa vivesse em paz, ajudasse os outros, contribuísse para tornar o mundo menos injusto, mais solidário. Para ele não importava se a pessoa era espírita, budista, católica, evangélica, protestante, agnóstica.
Quais os motivos que levaram algumas pessoas a agredir Chico Xavier com veneno, faca e revólver?O desequilíbrio dos outros. Chico era um ídolo popular e incomodava também muita gente. Muitos o acusavam, por exemplo, de ser vaidoso, exibicionista, assistencialista. Chico passou a vida sendo atacado e criticado, por mais que ele fizesse. Quando recebia títulos de cidadania, aparecia na TV ou promovia campanhas de doações noticiadas em todo o País, ele era alvo não só de admiração como também de sentimentos menos nobres, como inveja ou desprezo. Não adiantava ele dizer "faço tudo isto pela doutrina espírita". Ele mobilizava nos outros emoções fortes: paixão, idolatria e (em poucos casos) raiva.
Como é a história de que Chico queria aprender piano para terminar sinfonias inacabadas de mestres da música?Quando era jovem, Chico sonhou servir de canal para os espíritos de mestres da música. Através dele – o médium é um instrumento – estes compositores mortos poderiam concluir as obras que deixaram inacabadas na terra. Mas para servir de instrumento afinado, Chico deveria aprender um mínimo, ao menos, de música. Foi o que ele tentou fazer em Pedro Leopoldo, a cidade mineira onde nasceu. As pessoas já o procuravam em busca de apoio e a fila na porta da casa dele começou a se formar, enquanto ele dava as primeiras marteladas no piano. As aulas mal começaram e Chico viu seu guia espiritual, Emmanuel, se aproximar irritado. "O que você está fazendo?", o guia teria perguntado. "Aula de piano", Chico respondeu. Emmanuel apontou a fila de necessitados na porta e fez o discípulo reconhecer que aquela gente toda não poderia ficar esperando por ele enquanto ele se dedicava à música.
A quê o sr. atribui a notável inteligência e versatilidade dele? E a ausência do cansaço físico, que se manifestou somente na terceira idade? Chico era movido por uma fé inabalável e por um sentido de missão absoluto. Acho que este sentido de missão o mantinha em atividade constante. Ele não podia perder tempo. Trabalho era palavra-chave na sua vida. Trabalho em favor do outro era a receita que ele dava a todos e adotava para si mesmo todos os dias.
Por que Chico Xavier apoiou publicamente a candidatura de Fernando Collor, tendo garantido, inclusive, que ele daria a volta por cima após o impeachment? Não seria sensato ele se manter longe da política?Chico repetia sempre: "Todo médium é falível. Todos nós erramos." Ele errou.
O sr., pessoalmente, considerava virtude Chico ser um amante das normas e legalista radical?Chico era uma referência nacional, um líder e – como líder – tomava todo o cuidado possível para não ferir leis nem normas. Ele era muito cuidadoso.
No livro, o sr. não entra em mais detalhes sobre o filho adotivo de Chico. Teria ele, em sua opinião, realmente agilizado a visita de interessados a Chico por meio de aceitação de dinheiro?Nenhuma das denúncias foi comprovada. Sem provas, não podemos nunca afirmar nada. Chico era muito ligado ao Eurípedes. Eurípedes era muito ligado ao pai e enfrentou uma missão inglória, muito antipática: a de criar uma espécie de cordão de isolamento em torno de Chico para preservar a saúde dele nos últimos anos de sua vida. Com isso, ele desagradou a muita gente.
Há espaço no Brasil para um novo Chico?Não. Chico era um missionário, que abriu mão de tudo para se dedicar à sua missão. Hoje o Brasil tem psicógrafos fantásticos, líderes espíritas dedicados a trabalhos assistenciais admiráveis, mas nenhum deles (eles mesmos reconhecem isso) incorpora tantas qualidades juntas como Chico Xavier. Hoje todos nós podemos ser um pouco sucessores de Chico, fazendo a nossa parte para tornar este mundo um pouco menos injusto e mais solidário.
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Tópico: A Biografia de Seu Chico (Lida 6666 vezes)