Uma historinha sobre um passaro com habilidades "mediúnicas", tirado do site
http://nebulosabar.com/ e que ilustra muito bem o que tratamos aqui:
"De quando em quando tenho a oportunidade de respirar o ar do campo, uma baforada dracônica de alívio imediato para minha rinite alérgica — a maldição de todo nerd que se preze — e com cheiro de pinus silvestre. Na última vez, tive o privilégio de ouvir o canto de um pássaro que, segundo uma carinhosa senhora que vive pelas redondezas e nos acolhe com delícias de chocolate, tem a habilidade de adivinhar quando uma visita está para chegar, e mais: a ave tem o dom de saber se a visita é familiar, um desconhecido ou alguém que chega para pernoitar.
Além de adivinhar mais que astrólogos, ainda voa.“Minha mãe me contava essa história quando eu era criança, e curiosamente sempre funcionava”, disse ela. Quando o pitiguari (Cyclarhis gujanensis) canta diante da janela da cozinha, é sinal de que alguém familiar está para chegar. Se o pássaro canta na direção da janela da sala, seria um desconhecido; na janela do quarto, uma pessoa que procurava uma cama.
Como isso é possível? Analisemos a situação: não sabemos qual a preferência do pitiguari em relação a seu cômodo favorito, então consideremos que ele cante ao acaso nas três janelas. Desse modo, a probabilidade do pássaro acertar na sorte qual dos três tipos de visita chegará naquele dia é de 1/3 ou 33% aproximadamente. Dificilmente, então o pássaro adivinha corretamente o tipo de visita — pelo perdão da palavra — na mais pura e límpida cagada.
Qual será o segredo desta ave? Teria ela poderes paranormais? Será ela uma ótima companhia para videntes e donos de pousadas? Que tal analisarmos o problema mais profundamente? Devemos primeiramente construir o espaço amostral do problema, ou seja, listar todas as possibilidades possíveis de ocorrer em determinado dia entre o tipo de visita e a localização do canto (supondo, logicamente, que não mais que um tipo de visita apareça em casa, para não dar nó na cabecinha do passarinho).
Pessoa: estranho, Local do pássaro: quarto
Pessoa: estranho, Local do pássaro: salaPessoa: estranho, Local do pássaro: cozinha
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: quarto
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: sala
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: cozinha
Pessoa: hóspede, Local do pássaro: quartoPessoa: hóspede, Local do pássaro: sala
Pessoa: hóspede, Local do pássaro: cozinha
Os itens em negrito representam as combinações corretas, ou seja, quando o pássaro está cantando no lugar certo naquele dia.
Primeiramente, com alguma observação in situ, notei que é possível simplificar o problema. Esta senhora raramente recebe a visita de estranhos, tanto pela natureza das pessoas daquela região (onde todos são conhecidos uns dos outros) quanto pela distância da cidade, eliminado as visitas até mesmo de carteiros. Aproximadamente de cada 50 visitas de conhecidos, há uma de desconhecidos. Caso queiramos incluir os estranhos em nosso cálculo, o resultado final seria de algumas casas decimais. Dessa maneira, nosso espaço amostral pode ser simplificado a:
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: quarto
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: sala
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: cozinha
Pessoa: hóspede, Local do pássaro: quartoPessoa: hóspede, Local do pássaro: sala
Pessoa: hóspede, Local do pássaro: cozinha
As chances do pássaro acertar ao acaso continuam sendo de 1/3, mas agora há outro detalhe que deixamos passar. Em nossa cultura, é socialmente esquisito deixar completos estranhos dormirem na sua casa. Portanto, uma pessoa que se enquadra como hóspede provavelmente é algum conhecido. Logo, há novas combinações de acerto:
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: quarto
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: sala
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: cozinha
Pessoa: hóspede, Local do pássaro: quartoPessoa: hóspede, Local do pássaro: sala
Pessoa: hóspede, Local do pássaro: cozinhaFicou agora um pouco mais provável que o pássaro adivinhe a estirpe das visitas ao acaso, já que suas chances são de 1/2, ou seja, a mesma probabilidade de você conseguir uma cara ao jogar uma moeda. Com certos detalhes da nossa conversa, é possível ir um pouco além. Na época da sua infância, os carros eram um bem muito raro. Devido à distância em que se localizava sua residência, supõe-se que quando houvesse a visita de familiares eles teriam de pernoitar. Minhas expectativas se confirmaram quando a senhora disse: “… e ao final da tarde, quando chegava uma visita, ela (a visita) ficava surpresa por sabermos antecipadamente de sua vinda”. Desse modo, nosso espaço amostral agora tem a seguinte configuração:
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: quartoPessoa: conhecido, Local do pássaro: sala
Pessoa: conhecido, Local do pássaro: cozinha
Pessoa: hóspede, Local do pássaro: quartoPessoa: hóspede, Local do pássaro: sala
Pessoa: hóspede, Local do pássaro: cozinhaAs chances agora do pássaro adivinhão são de 2/3, um valor duas vezes mais generoso do que nossa primeira estimativa de 1/3. Se, então, levássemos em conta o número de quartos na casa em questão, haveria muito mais área de dormitório para o pássaro cantar, e as chances subiriam para 4/5. Este número parece ser especialmente plausível se considerarmos a fraqueza da hipótese do pássaro ter poderes misteriosos, já que muitas vezes que estive lá o pássaro cantou e não apareceu nenhuma alma penada; ou se considerarmos o fato natural do ser humano não ser capaz de perceber nem produzir uma seqüência aleatória de eventos, e tentar buscar padrões que confirmem suas crenças pessoais em meio a eventos sem correlação alguma entre si."