Desculpem ressuscitar o tópico, mas gostaria de fazer e deixar registrado aqui alguns contrapontos em relação a um texto sobre este episódio, que foi relativamente bastante propalado (tomei conhecimento dele no mural de uma escola, na sala dos professores!). Transcrevo abaixo o texto, de Ed René Kivitz, teólogo, Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Mostro só um link, mas basta colocar um trecho do texto no Google para perceber sua abrangência na rede.
http://entendaaportaestreita.blogspot.com/2010/12/os-meninos-da-vila-pisaram-na-bola.html
"Os meninos da Vila pisaram na bola. Mas prefiro sair em sua defesa. Eles não erraram sozinhos. Fizeram a cabeça deles. O mundo religioso é mestre em fazer a cabeça dos outros. Por isso, cada vez mais me convenço que o Cristianismo implica a superação da religião, e cada vez mais me dedico a pensar nas categorias da espiritualidade, em detrimento das categorias da religião.
A religião está baseada nos ritos, dogmas e credos, tabus e códigos morais de cada tradição de fé. A espiritualidade está fundamentada nos conteúdos universais de todas e cada uma das tradições de fé.
Quando você começa a discutir quem vai para céu e quem vai para o inferno; ou se Deus é a favor ou contra à prática do homossexualismo; ou mesmo se você tem que subir uma escada de joelhos ou dar o dízimo na igreja para alcançar o favor de Deus, você está discutindo religião. Quando você começa a discutir se o correto é a reencarnação ou a ressurreição, a teoria de Darwin ou a narrativa do Gênesis, e se o livro certo é a Bíblia ou o Corão, você está discutindo religião. Quando você fica perguntando se a instituição social é espírita kardecista, evangélica, ou católica, você está discutindo religião.
O problema é que toda vez que você discute religião você afasta as pessoas umas das outras, promove o sectarismo e a intolerância. A religião coloca de um lado os adoradores de Allá, de outro os adoradores de Yahweh, e de outro os adoradores de Jesus. Isso sem falar nos adoradores de Shiva, de Krishna e devotos do Buda, e por aí vai.
E cada grupo de adoradores deseja a extinção dos outros, ou pela conversão à sua religião, o que faz com que os outros deixem de existir enquanto outros e se tornem iguais a nós, ou pelo extermínio através do assassinato em nome de Deus, ou melhor, em nome de um deus, com d minúsculo, isto é, um ídolo que pretende se passar por Deus.
Mas, quando você concentra sua atenção e ação, sua práxis, em valores como reconciliação, perdão, misericórdia, compaixão, solidariedade, amor e caridade, você está no horizonte da espiritualidade, comum a todas as tradições religiosas. E quando você está com o coração cheio de espiritualidade, e não de religião, você promove a justiça e a paz. Os valores espirituais agregam pessoas, aproxima os diferentes, faz com que os discordantes no mundo das crenças se deem as mãos no mundo da busca de
superação do sofrimento humano, que a todos nós humilha e iguala, independentemente de raça, gênero, e inclusive religião.
Em síntese, quando você vive no mundo da religião, você fica no ônibus.
Quando você vive no mundo da espiritualidade que a sua religião ensina ou pelo menos deveria ensinar, você desce do ônibus e dá um ovo de páscoa para uma criança que sofre a tragédia e miséria de uma paralisia mental.Pois bem, evidentemente o texto transparece uma tentativa louvável de criticar a situação, mas "pisa na bola" tanto quanto o o que quer criticar. Vamos lá:
“Quando você começa a discutir se o correto é reencarnação ou a ressurreição, a teoria de Darwin ou a narrativa do Gênesis, e se o livro certo é a Bíblia ou o Corão, você está discutindo religião”. Típico da argumentação que, ao propalar ingenuamente a oposição aos doxas empedernidos, acaba se mostrando tão ideológica quanto o que pretende denunciar. A “teoria de Darwin”, mais especificamente a Teoria da Evolução pela Seleção Natural,
nunca teve um propósito religioso. O fato de suas conclusões baterem de frente com doxas essenciais de vertentes religiosas é só uma evidência da inadequação destas frente ao entendimento do mundo. O mesmo aconteceu com Galileu no século XVII, quando a igreja o acusou de Heresia por defender seu sistema heliocêntrico, que ia de encontro à filosofia religiosa aristotélica-ptolomaica que assumia a Terra como centro do universo. Mesmo não se tendo, a partir de Newton, no século XVIII, mais nenhuma dúvida quanto ao movimento da Terra, a igreja só veio a conceder um perdão público a Galileu em 1992!
Ao discutir sobre a Teoria da Evolução aos olhos de quem está compromissado com uma ideologia de imutabilidade e franca criação divina, naturalmente forja-se um debate religioso tão somente porque não se sabe do que está falando. Trata-se de um pseudo-debate, um debate interno à própria instituição religiosa, que procura, como sempre, defender sua filosofia inexpugnável de retificações benéficas e necessárias para a premente necessidade de bem viver com as diferenças alheias.
Não existe um debate de cunho religioso concernente à Teoria da Evolução na comunidade científica, e nem sequer existe um debate sobre uma possível teoria da evolução definida com um significado popular de mera hipótese. A Teoria da Evolução tem absolutamente o mesmo grau de veracidade que a Teoria da Gravitação Universal, a Teoria Eletromagnética, a Teoria Cinética dos Gases, a Teoria da Relatividade e a Teoria Quântica. O termo “teoria”, em ciência, tem um significado epistemológico que denota um sistema explicativo de alta correlação empírica e de elevado valor heurístico. Algo bem diferente de conjecturas levianas. A Teoria da Evolução tem literalmente milhares de evidências ao seu favor e, contrariamente o que acontece mesmo com outras teorias altamente produtivas, como é o caso da Teoria da Gravitação Universal (que levou o homem à Lua, tamanha sua precisão), não apresenta uma
única evidência contraditória. A mutabilidade e a especiação são tão factuais quanto a gravidade.
Quando se traz este tema para o plano religioso, mostra-se o desconhecimento do
modus operandi da ciência e a necessidade, talvez inconsciente, de afastar o tema de um saudável debate enriquecedor de nossas explicações naturais.
“Toda vez que você discute religião você afasta as pessoas umas das outras, promove o sectarismo e a intolerância”. Ficaria melhor assim: “Toda vez que você discute religião você afasta as pessoas que não querem aprender sobre as razões das outras pessoas, promove o sectarismo de quem acha que sua religião é a única correta, e promove a intolerância naqueles que naturalmente não admitem o diálogo e o crescimento humano frente às diferenças”. Ou seja, ao se colocar a religião em uma posição absoluta, intocável, indiscutível, perpetua-se, mais uma vez, o que se quer combater: a individualidade intolerante.
“Quando você está com o coração cheio de espiritualidade, e não de religião, você promove a justiça e a paz”. Ficaria melhor assim: “Quando você está com o coração cheio de justiça e paz, e não de religião, você promove a justiça e a paz”. O fato de que os textos religiosos são lidos de tantas maneiras diferentes é um claro sinal de que a bagunça que se faz com interpretações coloca a religião como um amálgama de benevolências evidentes com atrocidades e impropérios. A justiça e a paz são, pois, forçosamente associadas à espiritualidade, uma vez que são conceitos totalmente independentes.
“Quando você vive no mundo da espiritualidade que sua religião ensina [...] você desce do ônibus e dá um ovo de páscoa para uma criança ...”. De quais ensinamentos estamos falando?
Josué, ao comando de Deus, mata todo mundo (inclusive os bebês e crianças) - ou, como a Bíblia diz, "toda alma que nela havia". [10:28-32]
Se você vê uma mulher bonita entre os presos e a querer como esposa, é só trazê-la para sua casa e "entrarás a ela." Depois, se você decidir que não gosta dela, "a deixarás ir à sua vontade." [Deuteronômio 21:11-14]
Se você tiver um filho teimoso e rebelde, então você e os outros homens de seu bairro o apedrejarão até que ele morra. [Deuteronômio 21:18-21]
"Mulheres, sede submissas aos vossos maridos, como convém no Senhor" - Colossenses 3:18
O homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem. - I Coríntios 11:9
As mulheres devem ficar caladas nas assembléias de todas as igrejas dos santos, pois devem estar submissas, como diz a lei. - I Coríntios 14:34
Que a mulher aprenda em silêncio, com total submissão. A mulher não poderá ensinar nem dominar o homem. - I Timóteo 2:11-12 Naturalmente pode-se argumentar que devemos saber ler a bíblia (vocês dariam as passagens acima para uma criança ler? Afinal é o “livro de deus”, não é?), e que se deve ficar com as coisas boas. E quem define quais ensinamentos são bons? Poderíamos pensar: “qualquer um sabe que as passagens acima são erradas, e que não roubar, por exemplo, é algo bom. E é aí exatamente que reside o cerne da questão: para selecionar quais “ensinamentos” são bons, valemo-nos de juízos que transcendem a religião em questão. Se praticar os ensinamentos da religião é seguir os preceitos apresentados em seus textos sagrados, então é logicamente lícito apedrejar uma mulher até a morte (coisa que os muçulmanos fazem freqüentemente). Se devemos praticar apenas os ensinamentos bons, então naturalmente não precisamos de ensinamentos para nos dizer o que fazer.
Se se pratica a justiça por se seguir uma doutrina, não se reconhece o valor intrínseco da justiça. E se sabemos que justiça e paz são naturalmente o certo a se praticar, então nenhuma doutrina é necessária para se ser bom e justo.
As questões psicológicas e as questões cultural-familiares de se seguir uma doutrina religiosa, com os “ensinamentos” corretos, é uma outra questão, bem mais sutil e merecedora de atenta análise. Se não se percebe o bem intrinsecamente, e se este bem é atingido por meio de uma doutrina, seus efeitos benéficos certamente são preferíveis em detrimento de um pernicioso “vazio existencial”. Mas propalar a necessidade de valores supostamente cristãos para obter a plenitude de benevolência é não só negar a capacidade de discernir o bem do mal, como aceitar que não podemos ser justos sem uma doutrina religiosa. É perder totalmente a fé no ser humano.
Ainda me decepciono com a leviandade de "mestres em ciências da religião". Ts ts...