O fato dos cientistas terem conseguido, a partir de substâncias químicas simples, "montar" uma cadeia de ácido nucleico com instruções funcionais para multiplicação só mostra que é possível que substâncias químicas se juntem e formem esse tipo de estrutura. Se você quiser, dá pra extrapolar e dizer que isso mostra que o RNA (ou DNA) não precisa ter aparecido "pronto" da primeira vez para ser, a partir de então, copiado dentro de células.
Nem isso. Bem, na verdade não quanto a esse experimento, no qual, tanto quanto sei, fizeram esse DNA "sintético" usando o maquinário bioquímico de leveduras (em leveduras, vivas), não qualquer tipo de reação espontânea. E nem algo significativamente "muito" sintético, embora, se não me engano, hajam técnicas "mais" sintéticas, de se fazer algo parecido "em tubo de ensaio".
Outro experimento mais recente, de qualquer forma, teve resultados que demonstram mais algo na linha do que você disse. Até há um bom tempo, não tinham conseguido fazer ribonucleotídeos se originarem espontâneamente, largavam lá as "peças", mas nada deles se juntarem em nucleotídeos. O impressionante foi que conseguiram alcançar isso largando
subcomponentes menores dessas "peças"
(Wired).
Não é uma prova de que a vida surgiu assim. Só mostra que é possível que isso aconteça. Também não é uma prova de que é preciso alguém "fazendo" as coisas, porque quando a gente faz uma reação química, a gente simplesmente coloca as substâncias necessárias no ambiente propício. O fato de isso ter sido feito em laboratório não mostra que é preciso um ser ciente para que isso aconteça, nem que é impossível acontecer fora de condições controladas.
Ou seja: se olharmos para a hipótese "A vida surgiu a partir de reações químicas que geraram os primeiros seres vivos", podemos considerar que o experimento de "vida artificial" é uma forma de falsear essa hipótese. O sucesso da experiência mostra que essa hipótese não foi falseada.
Olha, a não ser que eu esteja perdendo muita coisa, acho que esse experimento todo da célula "sintética" não tem praticamente qualquer relevância teórica para conhecimentos sobre a origem da vida, justamente por ter sido sim, tudo muito "manual", e se aproveitando de organismos vivos. Sem querer desmerecer o trabalho, acho que o avanço é muito mais técnico do que de conhecimento teórico. É meio como um aperfeiçoamento no "transplante" bacteriano. Mas de certa forma não tem muito mais a ver com origem da vida ou conhecimento teórico sobre qualquer coisa do que tiveram os primeiros transplantes cardíacos bem sucedidos.
Reproduzindo um post do RV para não ter que escrever tudo de novo:
Bem, a equipe montou um genoma inteiro e funcional do zero. Mostra, além do domínio da técnica, o nível de conhecimento, básico que seja, para manter uma célula funcionando e se dividindo.
E nem foi um genoma "inventado", mas simplesmente a reconstituição do genoma da própria espécie da qual usaram a célula. Só acresceram os "créditos", os nomes do pessoal da equipe no genoma.
O que teve de especial nessa experiência, que a diferencia de um simples transplante de genoma, foi o fato desse DNA ter sido montado quimicamente ao invés de ter sido produzido "naturalmente" por uma célula durante uma replicação.
A espécie da célula era outra. O genoma montado artificialmente foi de outra bactéria, que após ter sido implantado, assumiu o comando da célula.
Em resumo: no lugar de uma replicação natural (na qual um DNA serve como molde para a síntese de outro, usando enzimas celulares), ocorreu uma montagem de DNA utilizando sintetizadores químicos e guiado por informações de um computador ao invés de um DNA pré-existente.
Na verdade, a replicação de DNA sintética não é "mais" química que a natural, não foi por exemplo, feita "num tubo de ensaio", mas em leveduras (essa sim, uma espécie mais distante). Existe, de qualquer forma, maneira de se ter DNA se reproduzindo fora de qualquer célula, inclusive há um tempo fizeram um evoluir em um DNA auto-replicante, meio como haviam feito com RNA em meados dos anos 80, se não me engano. Mas não foi assim que fizeram. Então transplantaram o genoma todo para uma diferente espécie (ou talvez subespécie), do mesmo gênero.
Sem querer desmerecer Venter e todo o pessoal, mas é difícil entender o estardalhaço pelo que é praticamente a reprodução do que já haviam feito, e que, mesmo antes, não era algo assim estrondoso em termos de novos conhecimentos, mas apenas de técnica. Talvez se tenham aperfeiçoado muito a técnica, aí sim, mas não vi notícias disso.
Nesses últimos anos, houveram descobertas bem mais interessantes nessa área, que não ganharam um décimo do destaque que essa está ganhando antes mesmo de ser publicada (acho). Por exemplo, se tratando de DNA artificial, bolaram "letras" diferentes para o DNA, que funcionam do mesmo jeito, e são mais fáceis de fazer. No que concerne a questões de origem da vida, e bem mais relevante do que todos esses trabalhos do Venter e sua equipe, uma equipe desativou algum gene ou alguns genes relacionados a formação da parede celular numa bactéria, fazendo com que ela se desenvolvesse sem ela, mas apenas com uma membrana lipídica, como uma simples micela, que pode se originar espontâneamente. Coincidentemente, ao mesmo tempo, havia um pessoal trabalhando em modelos de como micelas proto-biontes se "reproduziriam" por fragmentação, e eis que os resultados de ambas são bem parecidos, só que no primeiro caso, os "fragmentos"/"desprendimentos" têm genomas.
A coisa mais significativa em termos de origem da vida que o Venter vem fazendo é uma espécie de desmantelamento do genoma de alguma(s) espécie(s) de Mycoplasma, que já tem um genoma bem reduzido para começar (e nem sei o quanto ele conseguiu reduzir). É o que chamam de abordagem "top-down", de-cima-para-baixo. Com sorte, eventualmente acabam conseguindo descer a ponto de esbarrar no que o pessoal que trabalha "de-baixo-para-cima" vai descobrindo, mas ainda está bem longe, e talvez seja até meio impossível o pessoal do "top-down" avançar (ou seria regredir?) muito mais, devido a toda aquela coisa da analogia dos estágios intermediários na construção de uma porta em arco, que desaparecem uma vez que o arco está pronto (analogia para explicar a aparência de "complexidade irredutível"). Mas ainda está bem longe de se ter chegado em algo que se pudesse supor ser próximo ao "primeiro genoma", se é que faz sentido se falar nisso, ainda é bem grandinho, e necessariamente houve um bocado de evolução até ficar desse tamanho. É talvez até mais relevante para os primórdios da evolução do que para origem da vida em si.