Autor Tópico: Encontros e desencontros  (Lida 1020 vezes)

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Encontros e desencontros
« Online: 10 de Março de 2011, 11:52:19 »
Esse texto se encaixa em tantas áreas que fiquei na dúvida qual seria a melhor para postá-lo, mas acho que as explicações presentes nele justificam sua presença aqui. Se alguém achar que se encaixa melhor em outra área, pode ser movido depois.

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Encontros e desencontros

Sempre que eu escrevo sobre religião, como foi o caso na coluna passada, sou invariavelmente assaltado com argumentos do tipo "É preciso que haja um Criador, pois a chance de a vida ter surgido por acaso na Terra é a mesma da de um vendaval varrendo um depósito de lixo fabricar um Boeing 747 a partir dos materiais lá disponíveis".

Admito que a analogia é divertida, mas pouco exata. Ela foi criada por um respeitável astrônomo britânico, sir Fred Hoyle, para defender a hipótese da panspermia, isto é, de que as moléculas que deram origem à vida surgiram no espaço e foram trazidas à Terra por cometas. Sir Fred, que se notabilizou por ser o cientista "do contra" (além da evolução química, opôs-se, entre outras coisas, ao Big Bang), acabou se tornando, por razões óbvias, o herói da turma do design inteligente. É uma pena, porque isso obscurece sua importante contribuição para a nucleossíntese estelar (mais especificamente, o surgimento dos átomos de carbono no núcleo das estrelas).

A ideia básica de Hoyle é que a probabilidade de se obter o conjunto de enzimas para a mais simples das células é de uma em 1040 000. Como o número de átomos existentes no úniverso é estimado em "apenas"1080, o astrônomo concluiu que mesmo um Universo repleto de sopa primordial teria dado pouca chance para processos evolutivos, daí a necessidade de um processo guiado. Apesar de tudo, Hoyle nunca chegou a defender a existência de um Criador. Foi até apelidado de "o ateu favorável ao design inteligente".

Há pelo menos um erro fatal no argumento, a que os biólogos moleculares chamam de falácia de Hoyle. O autor faz suas contas imaginando a probabilidade de uma primeira sequência chegar ao produto final num único passo. Só que nenhum biólogo ousa afirmar que sistemas complexos surgem num único passo. Mesmo quando se considera a origem da vida, é preciso levar em conta os passos intermediários que possam ter sido de alguma valia para a vida pré-celular do organismo. Ignorar isso leva a subestimar grosseiramente a probabilidade do processo.

Subjaz ao erro de Hoyle uma incompreensão fundamental sobre o papel do acaso na evolução. Embora mutações nos seres vivos de fato ocorram aleatoriamente, a seleção subsequente --que conserva o que é útil e despreza o que não o é-- nada tem a ver com acaso. Ela é, se quisermos, o avesso do acaso. Trata-se, na verdade, de um dos poucos processos naturais que conseguem simular o trabalho de projetistas. Só que funciona ao contrário. Ao preservar traços mesmo que milimétricos de utilidade e descartar todas as mutações que não servem para nada (a maioria delas é neutra ou resulta em cânceres, é oportuno lembrar), a seleção consegue, ao longo de inúmeras gerações, produzir estruturas que passam por entidades concebidas por uma inteligência.

Acho que vale a pena agora darmos uma guinada psicológica e tentar entender melhor por que as pessoas compreendem tão mal o acaso. Não parece exagero afirmar que já nascemos com preconceito contra ele. Entre os vieses fundamentais de nosso cérebro, aos quais já aludi algumas vezes neste espaço, está a obsessão pelo controle.

Nós, seres humanos, adoramos estar no controle. E adoramos tanto que achamos que estamos no comando mesmo quando não estamos. Como explica Leonard Mlodinov em seu "The Drunkard's Walk: How Randomness Rules our Lives" (o andar do bêbado: como o acaso comanda nossas vidas), um dos experimentos favoritos dos psicólogos é botar um sujeito diante de luzes que piscam num padrão aleatório e mandá-lo apertar um botão que não faz nada. Em pouco tempo o cara vai dizer que controla as luzes.

Numa variante, colocam um grupo de indivíduos diante de um círculo luminoso onde as luzes piscam ao acaso e dizem que, se elas se concentrarem, farão com que as luzes pisquem num movimento horário. Logo, essas pessoas ficam surpresas achando que conseguiram, embora as luzes sigam piscando aleatoriamente. É até possível fazer com que dois times compitam simultaneamente, um para fazer com que as luzes sigam em movimento horário, e, outro, em anti-horário. O interessante na história é que não haverá perdedores. Os dois lados vão clamar vitória.

A busca por controle está tão impregnada em nossas mentes que produz efeitos inesperados sobre nossos corpos. Num experimento seminal, Ellen Langer dividiu pacientes idosos de asilos em dois grupos. O primeiro podia decidir como dispor as coisas em seus quartos e também pôde escolher uma planta e cuidar dela. O segundo tinha seus quartos arrumados por funcionários. Esses velhinhos também ganharam um planta, mas não puderam escolhê-la nem podiam regá-la, tarefa que cabia ao pessoal de apoio dos asilos. Algumas semanas depois, ambos os grupos foram submetidos a testes que mensuravam o bem-estar. Como o leitor já deve ter adivinhado, o conjuto que exercia controle sobre seu ambiente se saiu bem melhor.

O que ninguém esperava, porém, aconteceu 18 meses depois, quando Langer deu início a um estudo de "follow-up": o grupo que não dispunha de controle apresentou uma taxa de mortalidade de 30%, contra 15% dos que regavam suas próprias plantas.

Outros experimentos de Langer mostraram que a necessidade de sentir-se no controle afeta nossa percepção de eventos aleatórios. Num deles, voluntários preferiram consistemente jogar contra um adversário que aparentava nervosismo a um que parecia calmo, mesmo sendo uma disputa de cara ou coroa, em que o resultado é determinado exclusivamente pelo acaso, e nada tem a ver com o estado emocional do jogador.

Meu palpite é que esse amor pelo controle, que tem como reverso uma certa fobia do acaso, está também na origem das religiões. Do vodu e dos cultos animistas às rezas, a religião busca transmitir a sensação de que alguém controla o curso dos acontecimentos. Mais do que isso, deixa uma janela para nós mesmos atuarmos. Implorar um favor a um ser onipotente já é tomar algum tipo de atitude, o que é mais do que limitar-se reconhecer o grande papel que o acaso tem sobre nossas existências.

E, como o livro de Mlodinov explora muito bem, esse papel é muito, muito maior do que gostamos de acreditar. É claro que também há espaço para o talento e a determinação, mas, mesmo assim, fatores aleatórios seguem com enorme influência.

No fundo, a conta é simples. Como diz Mlodinov, "se os eventos são aleatórios, nós não estamos no controle, e, se estamos no controle, eles não são aleatórios". Esse choque fundamental é uma das principais razões por que confundimos habilidade com sorte e ações sem sentido com controle. É também uma das razões por que muitos de nós acreditam em deuses e ficam de cabelo em pé com a simples sugestão de que a vida (e a nossa existência e a de todos os que amamos) resulte do encontro inopinado de moléculas de carbono com mais meia dúzia de produtos químicos baratos.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/886322-encontros-e-desencontros.shtml

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Offline VSR

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Re: Encontros e desencontros
« Resposta #1 Online: 13 de Março de 2011, 21:42:07 »
Bem interessante o texto... apesar de discordar, acredito que se o medo do "descontrole" fosse o impulso inicial das religiões veríamos religiões mais "controladoras" da realidade, na verdade as religiões mais tiram nosso controle em função do mundo do que nos dá controle à ele...

Não entendo muito sobre física, mas creio que a idéia de Hoyle seria desmentida, se admitirmos o tempo de existencia do universo ou ainda sua extenção... por menor que a probabilidade seja... num infinito ela ocorreria...
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Offline HeadLikeAHole

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Re: Encontros e desencontros
« Resposta #2 Online: 13 de Março de 2011, 23:56:22 »
Interessante. Essa necessidade de controle é realmente influente nas religiões. As orações são a expressão mais clara disso, quem faz quer interferir em algo aleatório ou que está fora do alcance de suas ações.

Offline Geotecton

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Re: Encontros e desencontros
« Resposta #3 Online: 14 de Março de 2011, 02:27:32 »
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Encontros e desencontros
[...]
A ideia básica de Hoyle é que a probabilidade de se obter o conjunto de enzimas para a mais simples das células é de uma em 1040 000. Como o número de átomos existentes no úniverso é estimado em "apenas"1080, o astrônomo concluiu que mesmo um Universo repleto de sopa primordial teria dado pouca chance para processos evolutivos, daí a necessidade de um processo guiado. Apesar de tudo, Hoyle nunca chegou a defender a existência de um Criador. Foi até apelidado de "o ateu favorável ao design inteligente".
[...]

A famosa falácia da probabilidade, tão querida dos criacionistas.
Foto USGS

Offline Lakatos

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Re:Encontros e desencontros
« Resposta #4 Online: 06 de Janeiro de 2012, 23:53:18 »
E assim como os grupo que tentavam controlar as luzes achavam que tinha conseguido influenciá-las, as pessoas religiosas enxergam no dia-a-dia a realização dos seus pedidos em orações.

Offline Vento Sul

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Re:Encontros e desencontros
« Resposta #5 Online: 08 de Janeiro de 2012, 16:09:22 »
Muito bom! valeu :ok:
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Resumindo: Ou acreditamos em mágica ou não!
 
 
 
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Offline Moro

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Re:Encontros e desencontros
« Resposta #6 Online: 08 de Janeiro de 2012, 23:13:43 »
Tem outro estudo mais elaborado sobre essa obsessão pelo controle: a caixa de skinner. O Giga postou o estudo em um topico
“If an ideology is peaceful, we will see its extremists and literalists as the most peaceful people on earth, that's called common sense.”

Faisal Saeed Al Mutar


"To claim that someone is not motivated by what they say is motivating them, means you know what motivates them better than they do."

Peter Boghossian

Sacred cows make the best hamburgers

I'm not convinced that faith can move mountains, but I've seen what it can do to skyscrapers."  --William Gascoyne

 

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