A Ética Secular
A teoria da Ética Secular afirma que existe uma ética absoluta e inerente à natureza humana, sendo que o único modo de encontrá-la é através da razão e da lógica. Ela pretende determinar quais ações humanas são legítimas e quais são ilegítimas. Se não existisse tal ética absoluta, não faria sentido algum falar que um ato de estupro é um ato errado. Todos os massacres, as torturas, os assassinatos e quaisquer outras atrocidades já cometidas pelo ser humano ao longo da história seriam apenas eventos aleatórios ocorridos e não poderiam ser julgados objetivamente. O religioso alega que de fato existe uma ética absoluta, mas que ela pode ser encontrada nos escritos supostamente “divinos” de sua própria religião e não através da razão humana. Mas como saber em qual das milhares de religiões existentes e incompatíveis entre si nós deveríamos crer? Não precisamos cair no misticismo, a ética faz parte da natureza humana assim como a força gravidade faz parte da natureza dos astros. Faria sentido se um crente dissesse que deveríamos desconsiderar os estudos de Isac Newton e ir procurar pelas leis da física na Bíblia? Só a razão humana pode explicar a realidade.
A Ética Secular não é um assunto novo, ela já foi objeto de estudo de diversos filósofos antigos tais como Aristóteles, São Tomás de Aquino e John Locke, mas somente no século passado ela e as suas implicações foram formuladas de uma maneira realmente consistente e clara por Murray N. Rothbard.
Se a ética é um princípio natural que diz respeito à natureza humana, ela deve ser igualmente válida para todos os seres humanos e em qualquer momento histórico ou circunstância que envolva o ser humano. As leis da física, por exemplo, são universais e não se alteram com o nível de complexidade do caso analisado. Peguemos então o exemplo de Robinson Crusoé sozinho em sua ilha, para que assim possamos analisar o ser humano em sua ocorrência mais simples possível.
Sozinho em sua ilha, Crusoé controla o próprio corpo, é ele quem comanda os movimentos de seu corpo e os seus próprios pensamentos. Estando na condição de animal racional e não sendo ele dotado de instintos automáticos tais como os outros animais, Crusoé precisa de fato controlar o próprio corpo e mente para aprender sobre mundo à sua volta. Só assim ele pode sobreviver e prosperar. Podemos dizer então que Crusoé é o dono do próprio corpo, já que ele é quem toma as decisões finais sobre o uso de seu próprio corpo. Mas Crusoé não é uma entidade auto-sufiente, ele também precisa controlar outros recursos (comida, ferramentas, abrigo, etc...) além de seu próprio corpo para poder sobreviver e prosperar. Todos aqueles recursos que ele coloca em uso por intermédio de seu corpo se tornam bens controlados por ele. Podemos também dizer então que Crusoé é o dono daqueles recursos que ele coloca em uso por intermédio de seu corpo.
Analisemos agora o segundo caso mais simples de ocorrência humana, colocando uma segunda pessoa, Sexta-Feira, na ilha. Para que a condição da universalidade seja satisfeita, devemos dar a Sexta-Feira os mesmos direitos de Crusoé encontrados na análise anterior. Desta forma, Sexta-Feira também deve ser o dono do próprio corpo e daqueles recursos naturais apropriados por ele originalmente. Ele poderá fazer o que quiser com o próprio corpo e com tais recursos, desde que não invada o corpo e os bens apropriados por Crusoé, pois estaria ferindo o direito de propriedade de Crusoé sobre o próprio corpo e sobre os recursos que ele se apropriou originalmente. A mesma condição seria também válida para Crusoé. Se pensarmos bem, ambos poderiam se beneficiar muito se respeitassem estas regras. Eles poderiam voluntariamente fazer trocas de recursos e criar divisões de tarefas, maximizando assim o bem- estar de ambos. Mas dificilmente ocorreriam tais acordos se, por exemplo, Sexta-Feira chegasse roubando a vara de pescar de Crusoé, ferramenta esta que Crusoé havia gasto seu tempo e esforço para construir. Tendo feito esta breve análise, podemos enunciar a seguinte hipótese de uma fórmula geral da Ética Secular:
“Todo homem é dono do próprio corpo e daqueles recursos naturais que ele coloca em uso por intermédio de seu corpo”
As implicações desta fórmula são inúmeras, mas algumas são claramente evidentes. Se o homem é o dono – isto é, o proprietário ou aquele que pode exercer o controle – do próprio corpo e daqueles recursos naturais que ele coloca em uso por intermédio de seu corpo (o que significa ser o primeiro a se apropriar diretamente de algo que nunca foi apropriado por mais ninguém), então ele pode fazer o que bem entender com o próprio corpo e com os seus recursos, desde que não inicie o uso ou a ameaça de violência física (agressão/invasão) contra o corpo ou os recursos de outro homem, pois estaria ferindo o direito de propriedade deste outro homem sobre seu próprio corpo e sobre os seus recursos. Então o homem é livre para pegar os seus recursos e criar recursos novos através da produção, criando bens de maior valor. O homem é livre para fazer trocas mutuamente voluntárias de seus bens com os bens de outros homens, mas ele não é livre para roubar. Ele é livre para trocar voluntariamente os seus bens ou o tempo e esforço de seu corpo (trabalho) pelos bens ou pelo trabalho de outros homens, mas ele não é livre para forçar outros homens a servi-lo. Ele é livre para dar voluntariamente seus bens a outros homens, mas ele não pode obrigar que outros homens dêem seus bens. Bens legitimamente adquiridos são definidos como propriedades. Isto nos faz chegar a uma segunda fórmula mais simplificada, também chamada de “princípio da não-agressão”:
“Nenhum homem tem o direito de iniciar o uso ou a ameaça de violência física contra o corpo ou propriedade de outro homem”
Estas fórmulas são altamente intuitivas. Uma criança, por exemplo, aprende muito cedo que não se deve bater em outras crianças ou pegar à força o que está sob a posse delas, pois, caso contrário, elas irão revidar. De fato, a grande maioria das pessoas já age de acordo com estas regras em suas vidas pessoais, porém a intuição moral não é prova de nada. Existem diferentes formas de se provar estas fórmulas, mas vejamos brevemente aqui uma delas desenvolvida por Rothbard:
Primeiramente nós devemos lembrar que, sendo a ética um princípio natural que diz respeito à natureza humana, ela deve ser universalmente e igualmente válida para todos os seres humanos. Tendo sido enunciada a nossa hipótese de uma fórmula geral da Ética Secular, através da intuição ou de uma simples investigação da natureza humana, podemos tentar negar a sua validade. Ao fazermos isso, nos deparamos com apenas duas possíveis hipóteses. Se cada homem não puder ser o dono do próprio corpo e daqueles bens adquiridos por ele através da apropriação original, da produção ou da troca voluntária, então:
1. Certa classe de pessoas, A, deve ter um direito de propriedade sobre os corpos e os bens adquiridos por outra classe de pessoas, B.
2. Todos têm o direito de possuir uma parcela igual de todas as outras pessoas e bens existentes.
A primeira alternativa claramente implica que a classe A deve ter direitos superiores à classe B, ela implica que a classe A pode explorar e, logo, viver parasiticamente da classe B. Desta forma, esta alternativa não cumpre o critério de universalidade, pré-requisito de qualquer teoria ética. O segundo caso parece cumprir tal condição de universalidade, porém, é logicamente impossível. Se todos têm o direito de possuir uma parcela igual de todas as outras pessoas e bens existentes, então nenhum ser humano poderia executar nenhuma ação (nem mesmo utilizar suas cordas vocais) sem antes ter a aprovação de todos os outros seres humanos. Mas como conseguir tal aprovação de bilhões de pessoas sem poder sequer iniciar qualquer ação? A humanidade iria obviamente se extinguir quase que instantaneamente. Tal alternativa é fisicamente impossível, pois é impossível que todos os homens mantenham registros contínuos sobre todos os outros homens e bens existentes para que assim possam exercer suas propriedades parciais sobre eles. Na prática, o controle e a posse dos homens necessariamente recairia sobre um grupo especializado, o qual, deste modo, se tornaria a classe dominante. Assim, de qualquer forma, estaríamos de volta à nossa primeira alternativa.
Temos então que a única alternativa correta é dar ao homem o direito absoluto de se possuir (também chamado de direito de auto-propriedade) e de possuir aqueles bens adquiridos por ele legitimamente (também chamado de direito de propriedade).
Autor: Eric P. Duarte
Fonte: Indisponível