Ron Paul e seus iludidos
Confesso meu progressivo espanto com os comentaristas que resolveram sair em defesa de Ron Paul. É um debate importante, que me surpreende. Não gosto de discutir política a partir de mundos ideais. Não sou daqueles que debate o que fulano “está pensando” e naquilo que sicrano “quer fazer”. Prefiro ter um pé na realidade, único critério para se discutir a consistência de um projeto e a seriedade de seus argumentos.
Também é por esse critério que costumo avaliar as consequencias de uma ideia. Enquanto ela está no papel, pode ser muito bonita. Quando chega a vida prática, mostra seu valor real. A visão de um mundo sem Estado de Ron Paul é simplesmente irreal. Não existe nem seria possível de existir. Logo, temos de pensar nas consequencias de quem fala nessa ídeia. Os anarquistas de verdade pelo menos têm uma tese. Elimina-se a propriedade privada e retira-se a razão de ser do Estado. Não acredito nisso mas reconheço que faz sentido ao menos no papel.
Ron Paul quer manter a propriedade privada. Mas diz que não quer o Estado. Não é possível nem na teoria. Minha opinião é que teríamos um regime de propriedade privada ainda mais forte, poderoso e fora de controle do que temos hoje e em breve estaríamos sentindo falta do Estado.
Imagine a economia dos EUA, com 14 trilhões de dolares de PIB, sem Estado. Imagine aquelas corporações que atravessam o planeta com seus interesses, promovem guerras, controlam e destituem governos. O Estado existe para serví-las, certo.
Mas apenas o Estado é capaz de conter seus movimentos e trapaças, impede que possam agir num regime de descontrole total e absoluto. E é por essa razão que, sempre que possível, essas corporações procuram esvaziar e destruir o Estado. Ron Paul é a radicalização de um caminho que, nos EUA, foi aberto por Ronald Reagan e, na Europa, foi trilhado por Margareth Tatcher.
Num país com renda concentrada como os EUA, qual a idéia do Ron Paul para tornar os indivíduos mais iguais? Como pretende redistribuir a renda num país onde os mais ricos não entregaram vantagens e benefícios nem em 2008, quando o país afundou?
Confesso que o poder de sedução dessa idéia é maior do que se poderia imaginar. Sua raiz se encontra na desilusão com a democracia, numa convicção, talvez, de que a maioria nunca será capaz de impor seus direitos e sua vontade. Logo, imagina-se que a solução seria privatizar tudo.
O problema é que isso não é possível. Equivale a pensar num mundo sem política e sem dominação.
Acabo de ler uma comentarista que acredita que o fim das leis trabalhistas permitiria uma pessoa trabalhar o tempo que quiser, para ganhar o salário preferir. É puro absurdo.
A vida real não funciona assim. Os indivíduos não são senhores de seu tempo nem de seus ganhos. Quem define sua jornada de trabalho e seu salário é a empresa, não o funcionário. Hoje, o Estado assegura algumas garantias mínimas de remuneração, de jornada de trabalho e assim por diante. É só por essa razão que alguns direitos são respeitados. A presença do Estado regula o mercado, estabelece regras e limites. Pune (ou pelo menos deveria fazê-lo) quem não cumpre regras estabelecidas.
Foi para fugir do Estado que, nas últimas décadas, grandes empresas se mudaram para a China, para a India e outros países emergentes. Elas foram atrás da mão-de-obra barata, que não tem direitos nem garantias.
Não custa lembrar que não havia Estado nas relações de trabalho do início do século. Nessa situação, as crianças trabalhavam doze horas po dia. As mães amamentavam no meio das máquinas. Quem ficava doente ia para o olho da rua e morria em qualquer lugar. Os mais velhos não tinham aposentadoria.
Quem sente-se prisioneiro desses direitos?
Concordo que, para algumas pessoas, que tem tantos confortos herdados e acumulados, essas vantagens parecem indiferentes. Para outras, até porque ainda não chegaram a vida adulta, pensam que não farão falta. Mas estamos falando de uma minoria, sem relação com a turma que acorda cedo, pega duro e paga as contas.
Que liberdade é essa? Que libertário é esse?
http://colunas.revistaepoca.globo.com/paulomoreiraleite/2012/01/04/ron-paul-e-seus-iludidos/