Autor: Catellius
Durante quase toda a história humana o mundo foi um lugar bestial. Adorava-se toda sorte de deuses, amaldiçoava-se os genitores, roubava-se até doces de crianças, homens raptavam as mulheres dos vizinhos, estes assassinavam aqueles em troco, os familiares das vítimas vingavam-se nos dos algozes, a criança escondida de olhar aterrado, única sobrevivente, crescia jurando eliminar todos desafetos. O que os movia não era o amor pelos iguais – por estes não vertiam uma lágrima -, mas o ardor pela desforra. As esposas de uns fornicavam com os maridos das outras, todos mentiam sempre (bastaria deduzir que o oposto do que era dito era a verdade, mas eram estúpidos), entregava-se à luxúria mais abjeta nas ruas em plena luz do dia, como fazem os cães, homens com homens, mulheres com mulheres, humanos com animais. E o pior – é-me penoso escrevê-lo: comia-se animais de patas fendidas que não ruminavam e misturava-se no mesmo tecido fios de lã e linho.
Não sabiam os torpes mortais que havia um único Deus, ciumento (disse-o ele próprio), que a tudo assistia de seu trono quando o céu não estava nublado e se arrependia (disse-o ele próprio) de tê-los criado, embora fosse incapaz de errar. A despeito de não existirem quaisquer leis para determinar o que era certo e o que era errado e estabelecer punições para cada crime, Deus castigou severamente Caim quando este assassinou ¼ da humanidade com uma única cajadada – algo de fazer inveja a Calígula, que gostaria que o povo tivesse um único pescoço, para cortá-lo -, e afogou a humanidade inteira exceto a família de Noé, incluindo depravados bebês de colo, para erradicar o mal na Terra, empresa para a qual seu engenho e onipotência se revelaram inúteis, como sabemos, uma vez que o mal se instalou novamente após Noé amaldiçoar o neto Canaã porque o pai deste viu aquele pelado e borracho sem o cobrir.
Antes do século XV a.C., incontáveis tentativas de se estabelecer uma moral, uma lei, fracassaram na China, Índia, Egito e Mesopotâmia. O Código de Hamurabi, por exemplo, jamais foi colocado em prática, pois os legisladores não possuíam autoridade divina. Foi, na verdade, fruto de sua soberba, pois se julgavam capazes de organizar as gentes sob leis morais sem o auxílio do Deus Único. Já tinham tentado, unidos, construir a Torre de Babel, para tornarem célebres seus nomes, conforme está escrito, mas Deus, a quem aborrecia os empreendedores, disse, com as seguintes palavras: “‘Eis que são um só povo, disse ele, e falam uma só língua: se começam assim, nada futuramente os impedirá de executarem todos os seus empreendimentos. Vamos: desçamos para lhes confundir a linguagem, de sorte que já não se compreendam um ao outro.”
Cansado de tanta iniqüidade e soberba entre suas criaturas, e de puni-las sem citar o artigo da lei que violavam, Javé deu-lhes, por meio de Moisés, o decálogo, que não eram dez mas dezenas de mandamentos. Ensinou-lhes, entre outras coisas, a adorá-lo mas nunca em altares feitos de pedras talhadas, a não fazer estátuas, não matar, não roubar, não levantar falso testemunho, a honrar os pais, a não cobiçar os bens do próximo.
Mas a espécie humana ainda era refém do pecado de Adão e Eva, os quais, paradoxalmente, só adquiriram malícia após pecarem e por conseguinte não pecaram de fato, e as leis mosaicas de nada adiantaram contra a marca passada de geração para geração que ele produziu. Deus entendeu ser imperativo enviar o filho, que ninguém conhecia, para que as bestas-feras humanas o destroçassem, como bem vimos no filme de Mel Gibson - era a única maneira de tirar os pecados do mundo, pensou. O motivo pelo qual não enviou o filho para ser morto na época de Noé, não nos é dado saber. Quiçá porque Pôncio Pilatos, Herodes, Judas e outros personagens dos evangelhos não haviam nascido ainda. O Filho de Deus mudou a lei divina vigente e, hipocritamente, disse nada ter mudado, que "passará o céu e a terra, antes que desapareça um jota, um traço da lei.”
Nos dois mil anos que se seguiram à vinda do Messias, o mundo continuou entregue à completa selvageria: trevas medievais, conquistadores sanguinários, saques, estupros, hordas de bárbaros, cruzadas, ordálias, justas, inquisições, guerras santas, perseguições e torturas, crimes de todos os tipos. Como que acordando de um longo delírio, Deus, de cuja permissão uma simples folha outonal precisava para se desprender da árvore, voltou atrás de sua antiga decisão e permitiu que os homens mesmos formulassem suas leis não divinas e as aplicassem, separassem o estado da religião, criassem direitos humanos universais, inéditos crimes de guerra, o sufrágio universal, o respeito às diferenças, a liberdade de credo, lutassem contra a escravidão e as castas, definissem ser errado apedrejar adúlteras e perseguir homossexuais, queimar feiticeiras e hereges, etc.
O mundo continuou selvagem, mas muito melhor do que na época em que Deus ditava as regras a seus representantes terrenos. O criador, finalmente, ficou feliz com suas criaturas, orgulhoso de Sócrates, Epicuro, Nietzsche, Bentham, Jefferson e outros luminares, arrependeu-se do arrependimento de tê-las inventado e percebeu, após tanto tempo, com um sorriso melancólico perdido entre os cachos brancos da barba, que estava sobrando na sua própria obra, para além de carregar infinitos crimes monstruosos nas costas, e então condenou-se a si mesmo à morte, à não existência. Foi o fim dos milagres grandiosos, dos mares se abrindo, das chuvas de rochas, dos anjos da morte a ceifar vidas de primogênitos. Os fiéis órfãos insistem em que não morreu, como Elvis, e que a prova de que ainda está por aí é sua própria criação, uma vaga alcançada em um estacionamento concorrido, uma unha encravada curada, um cancro que regrediu.
Foi melhor assim. Se valessem até hoje todos os mandamentos ditados a Moisés e se o legislador e o juiz ainda fossem vivos, nós ateus seríamos salvos enquanto a maior parte dos cristãos, nomeadamente os católicos, iria para o inferno. Façamos o teste!
Êxodo, 20
1.Então Deus pronunciou todas estas palavras:
2.“Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair do Egito, da casa da servidão.
CATÓLICOS E ATEUS: Isto independe de crença.
3.Não terás outros deuses diante de minha face.
CATÓLICOS: Têm o Pai, o Espírito Santo, Jesus, Maria (embora digam venerá-la), Santos (semideuses).
ATEUS: Não têm outros deuses (não têm nenhum, mas isto é um mero detalhe)
4.Não farás para ti escultura, nem figura alguma do que está em cima, nos céus, ou embaixo, sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra.
CATÓLICOS: Esculturas de divindades estão entre as coisas preferidas pelos católicos.
ATEUS: Fazem esculturas artísticas e de homens notáveis.
5.Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto. Eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso que vingo a iniqüidade dos pais nos filhos, nos netos e nos bisnetos daqueles que me odeiam,
6.mas uso de misericórdia até a milésima geração com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.
CATÓLICOS: Prostram-se diante delas. Prestam-lhes culto.
ATEUS: Não prestam culto a esculturas artísticas e tampouco a representações de figuras históricas. Os comunistas que se dizem ateus – pelo menos por aqui comunistas são quase sempre católicos - têm seus ídolos e devotam a eles um fervor religioso.
7.“Não pronunciarás o nome de Javé, teu Deus, em prova de falsidade, porque o Senhor não deixa impune aquele que pronuncia o seu nome em favor do erro.
CATÓLICOS: Quanto mais piedoso um devoto, mais usa o nome de Deus por qualquer bobagem.
ATEUS: Ateus não pronunciam o nome de Javé em prova de falsidade, nem ficam usando o seu nome em vão. A maioria – na qual não me incluo – sequer pensa em deuses.
8.Lembra-te de santificar o dia de sábado.
9.Trabalharás durante seis dias, e farás toda a tua obra.
CATÓLICOS: Santificavam o domingo, e olhe lá. Agora nem isso.
ATEUS: Como os católicos, não santificam dia algum.
10.Mas no sétimo dia, que é um repouso em honra do Senhor, teu Deus, não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem tua serva, nem teu animal, nem o estrangeiro que está dentro de teus muros.
11.Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo o que contêm, e repousou no sétimo dia; e por isso. o Senhor abençoou o dia de sábado e o consagrou.
CATÓLICOS E ATEUS: Trabalham no sábado, se for preciso, e apertam botões de elevadores, mesmo os kosher.
12.Honra teu pai e tua mãe, para que teus dias se prolonguem sobre a terra que te dá o Senhor, teu Deus.
CATÓLICOS E ATEUS: Boa parte dos católicos e ateus age conforme o mandamento.
13.Não matarás.
CATÓLICOS E ATEUS: Boa parte dos católicos e ateus age conforme o mandamento.
14.Não cometerás adultério
CATÓLICOS E ATEUS: Boa parte dos católicos e ateus age conforme o mandamento.
15.Não furtarás.
CATÓLICOS E ATEUS: Boa parte dos católicos e ateus age conforme o mandamento.
16.Não levantarás falso testemunho contra teu próximo.
CATÓLICOS E ATEUS: Boa parte dos católicos e ateus age conforme o mandamento.
17.Não cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem nada do que lhe pertence.
CATÓLICOS E ATEUS: Boa parte dos católicos e ateus age conforme o mandamento.
(...) 23.Não fareis deuses de prata, nem deuses de ouro para pôr ao meu lado.
CATÓLICOS: Reprovados.
ATEUS: Ateus não fazem deuses nem de prata nem de ouro nem de platina nem de adamantium.
24.Tu me levantarás um altar de terra, sobre o qual oferecerás teus holocaustos e teus sacrifícios pacíficos, tuas ovelhas e teus bois. Em todo lugar onde eu fizer recordar o meu nome, virei a ti para te abençoar.
CATÓLICOS e ATEUS: Nunca fizeram isso. Matam esses bichanos para comê-los.
25.Se me levantares um altar de pedra, não o construirás de pedras talhadas, pois levantando o cinzel sobre a pedra, tê-la-ás profanado.
CATÓLICOS: Católicos constroem altares com pedras talhadas. Templos bonitos espalhados mundo afora, construídos na melhor das intenções, mas que desagradam sobremaneira seu deus.
ATEUS: Ateus não levantam altares, mas SE levantassem um altar de pedra, não o construiriam com pedras talhadas.
26.Não subirás ao meu altar por degraus, para que se não descubra a tua nudez.”
CATÓLICOS: Os altares católicos são acessados por degraus, amiúde.
ATEUS: Ateus não têm altares.
E seguem outros mandamentos, desnecessário transcrevê-los por aqui.
Itens avaliados: 16
CATÓLICOS: Pontuação: 6 em 16 = 37,5% = INFERNO!
ATEUS: Pontuação: 12 em 16 = 75% = PARAÍSO! Com direito a anjinhos com harpa e tudo!