Então, por acaso eu estou me envolvendo exatamente com esta questão na faculdade nos últimos meses.
Acabei de começar uma pesquisa em que entrará muito de psicologia evolutiva e um pouco ecologia comportamental humana (é uma revisão epistemológica sobre, adivinhem só, pesquisas acadêmicas das turma das miçangas e rasteirinhas sobre o delicioso tema "representação de gêneros nos livros didáticos").
Então tenho lido muitos, muitos paperes mesmo...
Muito interessante suas explanações sobre o tema. Vou pesquisar mais sobre o que levantou aqui.
Como o nosso colega Serginho, tenho concluído que esta é uma falsa dicotomia (determinismo cultural x determinismo biológico). Diante do que venho pesquisando e refletindo a respeito, tudo indica que o que há é uma interação entre genes e ambiente, de forma bastante complexa. Com a ressalva de que o meio cultural e natural externo aparentam ter maior prevalência nesta equação complexa.
Joseph, parabéns por ter entendido o Sérgio (se foi mesmo isso que ele disse) mas esta não é uma dicotomia pelo lado do nature do debate, apenas pelo lado nurture. Na mais famosa publicação pelo lado nature da coisa, o livro "Tábula rasa: a moderna negação da natureza humana", do Pinker, o psicólogo diz algo mais ou menos assim ainda nas páginas introdutórias: "A meta deste livro não é propagandear que tudo é biologia e nada é cultura: ninguém acredita nisso, mas investigar o porquê de a posição moderada, de que algo é biologia e algo é cultura, é vista como extrema e o porquê de a posição extrema, de que tudo é cultura, é vista como moderada"
Simon Baron-Cohen, outro proeminente pesquisador do lado nature do debate diz no documentário que citei algo como "Acho que uma posição moderada é entender que parte das nossas variações de personalidade vêm do ambiente e parte vêm da genética: não estamos dizendo que tudo é biologia, apenas que não ignorem a biologia".
Fenótipo é igual a genótipo mais ambiente é um axioma central da genética, repetido por qualquer professor de biologia do Ensino Médio umas 50 vezes durante o terceiro ano. Ambiente aí é exatamente onde entra a tal da cultura, ou como se deseje chamar o conjunto de fatores ambientais intrínsecos à natureza humana e que emergem da nossas habilidades especiais de cognição e comunicação.
Só quem entende a coisa como uma dicotomia entre tudo cultura vs tudo biologia é o pessoal do lado nurture (a maioria dos sociólogos, psicólogos não evolutivos, historiadores, pedagogos envolvidos na questão). O pessoal do lado nature (biólogos, psicólogos evolutivos, neurofisiologistas, médicos envolvidos academicamente na questão) geralmente propõe isto mesmo que você disse (e eu proponho o mesmo).
Aliás, estou lendo o Giddens (um dos principais livros texto em sociologia) em função das duas pesquisas em que estou envolvido sobre o tema (as coisas felizmente estão se encaminhando, a pesquisa de que eu tinha falado era no âmbito de um estágio vinculado à educação, mas graças a ela eu fui convidado para o principal laboratório de biologia evolutiva da UFRJ e devo começar a estudar a genética do dimorfismo sexual mais a fundo nas próximas semanas, tô discutindo o projeto, e espero fazer o suficiente para ganhar o direito de estudar isso nos próximos 6 anos, pós
strictu à vista
). O Anthony Giddens dedica meia página às explicações biológicas sobre masculinidade e feminilidade, basicamente para dizer que não vai considerá-las, e nesta meia página o principal argumento dele é de que os padrões de violência masculina interespecífica variam de povo pra povo e época para época.
Este é um tipo de refutação que não faz o menor sentido, exatamente pelos dois fatores que destaquei: variabilidade genética e plasticidade fenotípica, que são conceitos muito basais em biologia (ambos são trabalhados no ensino básico) mas que parecem faltar a pesquisadores como Giddens.
Apenas quanto à sua ressalva na última linha: talvez a sua impressão de que o meio cultural ou natural externo tenham maior prevalência venha da dificuldade em perceber que em boa medida eles ainda são biologia.
Um ótimo exemplo disso é o modo como nós biólogos entendemos a razão pelas quais os sistemas de acasalamento se formam (monogamia, poliginia, poliandria e promiscuidade). Este é um conceito um pouco mais complexo dos estudos em biologia e não é trabalhado no ensino básico. Se você tem acesso a revistas acadêmicas um ótimo artigo (publicado em uma das duas mais respeitadas revistas de biomédicas do mundo em 77 e hoje com quase 5000 citações) é este aqui:
https://www.sciencemag.org/content/197/4300/215.extractMas, ao contrário do que talvez seja intuitivo, existe uma organização biológica determinando quando em uma espécie/população haverá maior tendência a formação de pares monogâmicos; ou haverá uma tendência a que as fêmeas sejam fiéis a um mesmo macho que, por sua vez, terá várias fêmeas; ou haverá pares aparentemente monogâmicos mas em que haverá pulação de cerca por um ou ambos os lados... e este por sua vez (o tipo de sistema de acasalamento formado) é o principal fator para determinar se numa espécie/população os machos serão parecidos com as fêmeas ou não, tanto física quanto comportamentalmente.
Galos não são tão diferentes de galinhas (tanto física quanto comportamentalmente, ó que curioso
) e calopsitas-macho não são tão parecidas com calopsitas-fêmea (tanto física quanto comportamentalmente, ó que curioso
) porque deus quis. Eles assim o são porque os aspectos externos, ambientais, que enfrentaram ao longo de suas evoluções como espécie restaram vantajoso para
Gallus gallus que houvesse muita agressividade intraespecífica entre os machos, grande acúmulo de gordura no corpo das fêmeas, muito carinho por parte das fêmeas em relação aos pintinhos, muita cagaçãoeandação dos machos pelos pintinhos... do mesmo modo em
Nymphicus hollandicus os fatores ambientais foram determinantes para que o macho e a fêmea tivessem tão poucas diferenças físicas ou comportamentais que só dá pra saber com segurança quem é um e quem é outro fazendo teste de dna ou esperando pra ver quem bota ovo e quem não.
Sabe-se, em biologia, que ambientes com recursos alimentares escassos e mal distribuídos geograficamente (tipo, como os oásis em um deserto) favorecem a poliginia (um mesmo macho se casando com várias mulheres), o dimorfismo sexual (os machos são bem diferentes das fêmeas, em geral mais fortes e feios/carrancudos) e agressão intraespecífica entre os machos (os machos se agridem, frequentemente se matando, com muito mais frequencia que o esperado num ambiente com abundância de recursos e distribuição homogênea destes). A necessidade de cuidado biparental (como em aves voadoras, que têm que abandonar o ninho e viajar longas distâncias para catar comida, deixando a prole muito exposta caso não haja um parceiro para alterna a guarda do ninho) é outro fator que favorece a monogamia e por conseguinte o monomorfismo físico-cognitivo-comportamental.
Isto é o que se observa amplamente em outras espécies: é o motivo pelo qual , por exemplo, biólogos explicam as diferenças de agressividade intraespecifica, dimorfismo sexual e sistemas de acasalamento entre as espécies irmãs
Pan troglodytes (chimpanzé) e
Pan paniscus (bonobo) ou as também próximas
Panthera leo (leão) e
Panthera onca (onça/jaguar).
Agora, se pensarmos nas populações da nossa espécie? Você lembra de alguma população humana onde os machos sejam especificamente violentos uns contra os outros, tenham o costume de casar com várias fêmeas (costume este que foi determinado santo por um antigo profeta exatamente por conta da alta taxa de viuvez devido às guerras intermitentes, que deixavam muitas mulheres desamparadas) e vivam em ambientes desériticos onde há escassez de recursos e o pouco que existe está distribuído em "ilhas"?
Três sugestões de vídeo que abordam muito bem a interação entre aspectos ecológicos, fisiológicos, evolutivos e culturais (todos falando sobre comprtamento de gênero na espécie humana) mostrando que cultura e biologia estão muito mais próximas do que nos parecem intuitivamente: