Questiono a ignorância dos maus ateus em não apreender corretamente a dimensão do sagrado e da experiência mística, mas critico da mesma forma a ignorância dos teístas no trato com os conceitos materialistas. Para deixar claro que o problema não é o ateísmo ou o materialismo, e nem o teísmo, mas sim a ignorância em si, gostaria de tratar neste tópico dos erros fundamentais que religiosos cometem em suas concepções equivocadas da "matéria" e do "humano". Para isso, me servirei de alguns trechos do filósofo ateu Mikhail Bakunin em comparação com citações de Léon Denis, representante ideal do deísmo maçônico.
DENIS
"a matéria não é tudo; há leis superiores a ela, leis de ordem e harmonia, e o Universo não é somente um mecanismo inconsciente"
"em toda parte a matéria obedece a uma força que a domina, a organiza e a dirige"
"o espírito é mais ainda, ele é a força oculta, a vontade que governa e dirige a matéria"
"cega, inconsciente, sem-objetivo, como a matéria poderia diversificar-se, desenvolver-se no plano grandioso cujas linhas aparecem para qualquer observador atento? como poderia coordenar seus elementos, suas moléculas, de maneira a formar todas as maravilhas da Natureza, desde as esferas que povoam o Espaço até os órgãos tão delicados do corpo humano, até o insero, o pássado, a flor?"
"como a matéria cega poderia governar através das leis inteligentes e sábias? como, desprovida de razão, de sentimento, poderia produzir seres razoáveis e sensíveis, capazes de discernir o bem do mal, o justo da injustiça?"
BAKUNIN
"A matéria da qual falam os materialistas, matéria espontânea, eternamente móvel, ativa, produtiva, a matéria química ou organicamente determinada e manifesta pelas propriedades ou pelas forças mecânicas, físicas, animais e inteligentes, que lhe são forçosamente inerentes, essa matéria nada tem de comum com a vil matéria dos idealistas. Essa última, produto da falsa abstração deles, é efetivamente uma coisa estúpida, inanimada, imóvel, incapaz de dar vida ao mínimo produto, um caput mortuum, uma infame imaginação oposta a essa bela imaginação que eles chamam Deus; em relação ao Ser supremo, a matéria, a matéria deles, despojada por eles mesmos de tudo o que constitui sua natureza real, representa necessariamente o supremo nada."
MEU COMENTÁRIO
Quando um materialista sério fala "somos apenas matéria" e um religioso responde dizendo que "não somos apenas matéria!", eles apenas pensam estar falando da mesma coisa. Uma coisa é o mundo, tal como é, independente de nossas abstrações, outra são as nossas representações e conceitos que interpretam o mundo. Matéria, dentro do contexto espiritualista, metafísico, religioso, assume um significação radicalmente contraditória com a própria maneira como a matéria se apresenta no mundo - inerentemente viva, ativa, dinâmica, dotada de energia e vibração. O movimento e a solidez da matéria são uma manifestação una - o que as divide é justamente o modelo religioso de representação do mundo, e, após dividir conceitualmente o que é uno, cria causas diferentes - matéria, no imaginário religioso, passa a ser uma espécie de massa morta, amorfa, estática, que só poderia ser animada, organizada e vivificada mediante atuação ativa de um Logos superior.
BAKUNIN
"Eles retiraram da matéria a inteligência, a vida, todas as qualidades determinantes, as relações ativas ou as forças, o próprio movimento, sem o qual a matéria sequer teria peso, nada lhe deixando da impenetrabilidade e da imobilidade absoluta no espaço; eles atribuíram todas essas forças, propriedades ou manifestações naturais, ao ser imaginário criado por sua fantasia abstrativa; em seguida, invertendo os papéis, denominaram esse produto de sua imaginação, esse fantasma, esse Deus que é o nada, 'Ser Supremo'; e, por consequência necessária, declararam que o Ser real, a matéria, o mundo, era o nada. Depois disso eles vêm nos dizer gravemente que essa matéria é incapaz de produzir qualquer coisa que seja, até mesmo colocar-se em movimento por si mesma, e que por consequência deve ter sido criada por seu Deus."
DENIS
"abandonada a si mesma, a matéria nada pode. Inconscientes e cegos, os átomos não saberiam dirigir-se para o objetivo. A harmonia do mundo só se explica através da intervenção de uma vontade. é pela ação das forças sobre a matéria, é pela existência de leis sábias e profundas que essa vontade se manifesta na ordem do universo."
"a alma humana é suscetível de amar até o sacrifício, o sentido do belo e do bem está gravado nela, e ela seria o resultado de um elemento que não possui essas qualidades em grau nenhum? nós sentimos, amamos, sofremos, e emanaríamos de uma causa que é surda, inexorável e muda?"
"para alcançar a perfeição, é preciso conquistar a ciência da unidade, que está acima da sabedoria; é preciso elevar-se ao ser divino, que está acima da alma e da inteligência"
BAKUNIN
"Todas as religiões, com seus deuses, seus semideuses e seus profetas, seus messias e seus santos, foram criadas pela fantasia crédula do homem, que ainda não alcançou o pleno desenvolvimento e a plena posse de suas faculdades intelectuais. Em consequência, o Céu religioso nada mais é do que uma miragem onde o homem, exaltado pela ignorância e pela fé, encontra sua própria imagem, mas ampliada e invertida, isto é, divinizada. A história das religiões, a do nascimento, da grandeza e da decadência dos deuses que se sucederam na crença humana, não é nada mais do que o desenvolvimento da inteligência e da consciência coletivas dos homens. À medida que, em sua marcha historicamente progressiva, eles descobriam, seja neles próprios, seja na natureza exterior, uma força, uma qualidade, ou mesmo um grande defeito qualquer, eles os atribuíam a seus deuses após tê-los exagerado, ampliado desmedidamente, como o fazem habitualmente as crianças, por um ato de sua fantasia religiosa. Graças a essa modéstia e a essa piedosa generosidade dos homens, crentes e crédulos, o Céu enriqueceu-se com os despojos da Terra, e, por consequência necessária, quanto mais o Céu se tornava rico, mais a humanidade e a Terra tornavam-se miseráveis. Uma vez instalada a divindade, ela foi naturalmente proclamada a causa, a razão, o árbitro e o distribuidor absoluto de todas as coisas: o mundo não foi mais nada, ela foi tudo; e o homem, seu verdadeiro criador, após tê-la tirado do nada sem o saber, ajoelhou-se diante dela, adorou-a e proclamou-se sua criatura e seu escravo."
MEU COMENTÁRIO
Depois da divisão conceitual de um fenômeno uno, se segue uma sequência de ressignificações de atributos inerentes ao mundo e à vida que são agora distanciados da mesma e associados à causa supernatural - a divindade - ela própria uma concepção mental humana. Se a divindade anima o cosmo, disso decorre que a ela pertencem toda a harmonia, toda a beleza, todo o bem, toda a moral, e nasce daí o dualismo supremo matéria-espírito. A matéria, sem o espírito, seria nada, pura trevas, pura morte, puro sofrimento. Se frio e calor são dois polos da mesma e una coisa, agora todo o frio é inerente à matéria, que é morte, e todo o calor, bem como toda a vida, e toda a "positividade" provém do ente supernatural que age sobre a matéria. Conclui-se, daí, que o mundo real, o único que existe, não seria nada sem Deus. E todas as coisas positivas e valiosas do mundo real são então atribuídas a um conceito que não existe externamente ao homem - Deus - uma abstração a ser adorada.
DENIS:
"o eu humano não está na matéria variável, mas no espírito"
"o mal, oposição à lei divina, não pode ser a obra de Deus; é, então, a obra do homem, a consequência da sua liberdade"
"Deus, alma do mundo, foco universal de vida e de amor, em quem nos sentimos viver"
"a razão humana é um reflexo da Razão Eterna: É Deus em nós"
BAKUNIN
"O que é seu Deus? É o nome genérico de tudo o que parece grande, bom, belo, nobre, humano. Mas por que não dizem então: o homem? Ah! É que o rei Guilherme da Prússia e Napoleão III, e todos os idênticos a eles são igualmente homens: eis o que os embaraça muito. A humanidade real nos apresenta um conjunto de tudo o que há de mais vil e de mais monstruoso no mundo. Como sair disso? Eles chamam um de divino e o outro de bestial, representando a divindade e a animalidade como dois polos entre os quais eles situam a humanidade. Eles não querem ou não podem compreender que esses três termos formam um único, e que se os separarmos, nós os destruímos."
MEU COMENTÁRIO
Por meio da crença literal nas fábulas religiosas e da adoração cega das imagens externas, o homem corta sua conexão com o mundo real, a fonte una e verdadeira de toda a vida, divide este mesmo mundo (que é uno) em conceitos e representações, e, então, toma estes conceitos e representações pela realidade. Acontece que esses conceitos, como belo e moral, não existem antes do homem, que os cria. E o homem, material e vivo, não existe antes das condições materiais que lhe propiciam a existência. O homem concebe deus a partir de si, projetando suas qualidades e atributos, espelhando seus valores morais e culturais e, ao situá-lo conceitualmente como externo a si, passa a tomar seus próprios valores morais e culturais como de origem divina, bem como interpretar sua própria capacidade de razão e virtude como heranças deste ente superior. O homem, enfim, cria divindades à sua imagem e semelhança.