Troca constante de parceiro, formação de haréns, monogamia social e escapadas extraconjugais: homens e bichos usam as mesmas estratégias sexuais
Até que a evolução os separe
[por Débora Yuri e Roberto de Oliveira]
A discussão é caquética, de tão antiga, mas nunca sai completamente de cartaz e, volta e meia, encontra alguma razão para ressurgir com força: humanos são geneticamente talhados para a monogamia ou ela é uma imposição cultural/religiosa que tenta domesticar nossa suposta tendência biológica à promiscuidade? Que cada lado afie seus argumentos.
A bola da vez para ressuscitar o velho debate é o comportamento sexual adotado por (olha só a que ponto chegamos) pingüins antárticos, espécie enfocada no documentário francês “A Marcha dos Pingüins”, que estreou na última sexta.
Hit nas bilheterias do mundo inteiro, o filme acompanha uma colônia de pingüins-imperadores que marcham mais de 1.000 km pela gelada Antártida. Ao chegar ao local de procriação, procuram um parceiro, muitas vezes o mesmo do ano anterior, entre milhares de outros, por uma espécie de senha sonora. Religiosos e políticos conservadores americanos ficaram encantados com a suposta fidelidade das aves, consideradas um “exemplo ideal de monogamia” para os humanos.
É a mania de usar lentes antropomórficas para enxergar o mundo não-racional, atribuindo a ele características e, principalmente, valores humanos. Para que isso funcione, elegem-se alguns comportamentos “positivos” e omitem-se os “negativos” (leia na pág. 7). Nessa engrenagem, o diferencial humano por definição –a racionalidade– pode servir aos dois lados.
“Seres humanos não nasceram para ser adeptos da fidelidade, e a biologia mostra isso claramente”, afirmou à Revista o americano David Barash, 59, professor de psicologia da Universidade de Washington e autor de “The Myth of Monogamy: Fidelity and Infidelity in Animals and People” (O Mito da Monogamia: Fidelidade e Infidelidade entre Animais e Pessoas). A razão, segundo a biologia evolutiva: a busca por variação de parceiros está ligada à preservação da espécie.
Já a terapeuta Peggy Vaughan, 70, considerada pela imprensa dos EUA uma “especialista em casos extraconjugais”, vem na contramão. “É irrelevante saber se nascemos ou não com predisposição à infidelidade”, disse ela. “Diferentemente de animais não racionais, nós fazemos escolhas. Se fosse simplesmente uma questão de ‘fazer o que nascemos para fazer’, não existiria a decepção e a desonestidade, tão freqüentes”, observa ela, autora do best-seller “The Monogamy Myth: A Personal Handbook for Recovering from Affairs” (O Mito da Monogamia: Um Guia Pessoal para se Recuperar de Traições).
Decepção e desonestidade certamente são conceitos desconhecidos para os pingüins, mas não para a autora, que começou a pesquisar a infidelidade após ser traída pelo então marido. E é bem aí, no capítulo da variedade de sentimentos humanos, inexistentes em outras espécies, que mora a complexidade.
Exemplo ferrenhamente monogâmico: “O ser humano nasce, cresce e casa para gerar uma família, e deve cuidar dela até o final da vida”, resume o comerciante Francisco Marcondes dos Santos, 86, que “nunca, nem em pensamento”, traiu a mulher, em 62 anos de união.
Casado com a dona-de-casa Maria Aparecida Junqueira dos Santos, 84, os dois formam um tipo de casal que caiu em extinção: só namoraram um com o outro e se casaram virgens, ela aos 18, ele aos 20. “Claro que, depois de um certo tempo, a gente vai ficando velho e vira quase irmão. O respeito e a tolerância mantêm a fidelidade viva”, ressalva ela.
Um monogâmico sem dogma: “Meus pais são separados, não tenho religião nem me julgo conservadora, mas acho que, se você se sente completo com alguém, não há espaço para infidelidade”, diz a empresária de eventos Marina Renault, 28, uma loira de 1,76 m e 52 kg acostumada a ser cantada em bares e festas, que não vê um homem bonito ou interessante como uma tentação.
“É uma questão de escolha. Mas não dá para generalizar e dizer que o ser humano é, por essência, poligâmico”, diz ela, que se casa em abril com o hoteleiro Paulo Ribeiro de Barros, 31, após três anos e meio de namoro.
Outro, poligâmico moderado: “Você pode sentir tesão por alguém, transar com ele e nem por isso amá-lo. Assim como é possível amar uma pessoa e transar com outra, sem que isso destrua sua relação, desde que haja sinceridade”, acredita a editora de imagens Mônica Britto de Oliveira, 34, casada há 11 anos com o administrador de empresas Márcio Pitta, 37.
O casal carioca, que diz não ver nenhuma relação entre amor e fidelidade, vive um casamento “aberto e honesto” –ou seja, com espaços para outros relacionamentos de ambos os lados. “Traição seria se eu escondesse algo dela ou armasse uma transa às escondidas. A tendência à infidelidade é natural entre animais, incluindo os humanos”, defende Márcio. “É hipócrita ocultar isso, mas a maioria se esconde por trás de valores morais impostos pela sociedade. A base da monogamia é um raciocínio de manipulação, domínio e hipocrisia”, acha ele.
Por fim, um infiel inveterado: “Se os homens já são propensos à infidelidade, imagine então quando dois seres dessa categoria estão juntos?”, brinca o sindicalista Antônio Carlos da Silva, 50, abertamente infiel em duas frentes: como hétero, no passado, e como gay, atualmente. Há três anos, ele vive com o técnico de segurança Nelson Matias Pereira, 39.
“Fui infiel nos meus quatro casamentos héteros. Não transo mais com mulheres, mas não vou ser hipócrita e dizer que não faço sexo com outros homens”, diz. “Já tive dois casamentos, de oito anos cada, em que mantinha uma relação de mentiras, acreditava que seriam eternos. Descobri que posso ser feliz num relacionamento aberto”, conta seu namorado, Nelson.
Fogo da variação Para comprovar que a graça da humanidade está na diversidade e que qualquer generalização pode sair pela culatra, um dos mais ferrenhos críticos da monogamia no Brasil é o psicoterapeuta José Ângelo Gaiarsa, 85, mesma faixa etária do casal Santos.
“A tese da tendência natural à infidelidade existe, e os modelos animais são claros. Entre humanos, existem o sexo como reprodução e o sexo como prazer. O primeiro tem a ver com casamento e filhos; o segundo segue a linha ‘quanto mais gente, melhor’”, diz ele, que contabiliza três casamentos e muitas namoradas.
A humanidade seria mais feliz sem a obrigação moral da monogamia, acredita o psicoterapeuta. “E não adianta nada trair e esconder: um dos casos mais típicos de homem que procura terapia é a culpa. Ele evita a traição por anos, aí cede, mas não aproveita nem um amor nem o outro...”
Com a experiência de 60 anos com psicoterapia, Gaiarsa também embarca, porém, na alternativa dos relacionamentos abertos (“É dificílimo dar certo”, diz) e defende a galinhagem temporária, com data marcada para terminar, conduta de muitos homens e mulheres entre os 20 e muitos e os 30 e poucos anos. “É um pensamento menos ridículo que o resto. Meu conselho: experimente vários, escolha o menos ruim e eduque-o para você. O fogo da variação tende a acabar entre 30 e 35 anos.”
Mesmo que a tendência à infidelidade seja natural, isso não quer dizer que não se possa resistir a ela, ressalvam profissionais. Para isso, existem os fatores culturais. “Como descendentes dos animais, os humanos não nasceram para a fidelidade, mas estão inseridos numa determinada cultura que dita as regras de normalidade, acrescida da religião, que propaga os valores morais”, afirma a psicóloga e terapeuta de casais Magdalena Ramos, coordenadora do Núcleo de Casal e Família da PUC-SP.
Só que dá trabalho: “Muita gente se mantém fiel, mas geralmente tem de dar duro para fazer isso!”, diz o americano David Barash. “Parte da idéia de ‘realmente amar alguém’ pode envolver negar suas próprias inclinações naturais à variedade sexual.”
Até por isso, há quem aposte no fim da idéia de monogamia como é vista atualmente. “Na sociedade ocidental, a monogamia é cultivada, mas acredito que daqui a 20, 30 anos, a família do modo como está não se sustentará mais. Você vê cada vez mais relacionamentos efêmeros, separações. A instituição família está desgastada, e a monogamia entra nesse bolo. Os casais não estão mais tolerando isso”, diz Magdalena, que pinta o futuro assim: os casais viverão em casas separadas; os filhos dividirão seu tempo entre os dois lares; não se dará tanta importância à fidelidade.
A “nova mulher” também tem peso decisivo nesse processo de ruptura, já que é independente financeiramente e não fica mais obrigada a manter um casamento insatisfatório. Uma minoria, diz ela, vai na contramão: são jovens, de ambos os sexos, que desejam casar de papel passado. “Eles acreditam que esse é um tipo de compromisso mais sério e mais difícil de ser desfeito. Já começa que os pais gastam uma fortuna para fazer aquelas festas homéricas...” De qualquer forma, analisa, a monogamia não será mais um padrão de normalidade.
Homem = animal Segundo César Ades, 63, especialista em comportamento animal e professor da USP, todos os animais, incluindo o ser humano, se enquadram em quatro tipos de estratégia sexual, que podem ser acumulados ou alternados, em fases: 1. procura constante por mais de um/a macho/fêmea (praticada pelos chamados “galinhas” ou “pegadores”); 2. formação de haréns (em sociedades poligâmicas); 3. monogamia social (a dos adeptos da fidelidade); 4. episódios esporádicos de cópula fora do relacionamento (as popularíssimas “escorregadas” extraconjugais).
Mas humanos têm uma peculiaridade, diz ele. “Na verdade, o mais importante é diferenciar os relacionamentos a curto prazo (CP) e a longo prazo (LP). Nós fomos feitos para relacionamentos a LP, não necessariamente baseados em fidelidade, que estão ligados à permanência contínua da espécie. A estratégia do CP implica variedade de parceiros, sentir prazer.”
O professor exemplifica: para o CP, elas querem caras bonitos, bons de cama, divertidos e interessantes, mas, pensando no LP –o casamento–, escolherão aquele mais confiável, sensível, responsável e capaz de cuidar bem da família. Você é/está CP ou LP?
"A fidelidade não é natural nos seres humanos, mas muitas coisas não são naturais e vale a pena fazê-las. Tocar violino, por exemplo, requer muita prática, treinamento, habilidade e talento, mas é possível e até desejável tocá-lo. Não confunda o que é natural com o que vale a pena."
David Barash, 59, professor de psicologia da Universidade de Washington (EUA)
"Ser fiel não tem nada a ver com amar. Há gente que ama o parceiro e é fiel, mas também existem os que amam e não são. Achar que "se ele/ela me ama, não vai me trair" é um mito. Honestamente, nem relacionamentos de longa duração monogâmicos nem casamentos abertos são fáceis ou mais freqüentes."
Peggy Vaughan, 70, escritora americana que pesquisa a infidelidade há 25 anos
Nem só de amor se faz um ninho
por Claudio Angelo
Os conservadores religiosos americanos que vêm usando “A Marcha dos Pingüins” para fazer campanha em prol da família e da monogamia deveriam realmente pensar duas vezes: afinal, pingüins-imperadores trocam de cônjuge todo ano e fêmeas que perderam seu filhote não hesitam em tentar seqüestrar bebês de outras. Definitivamente, não parecem um exemplo de virtude.
Talvez um modelo mais adequado sejam os chimpanzés, parentes mais próximos do ser humano. Será? Vejamos: fêmeas de chimpanzé no cio copulam com até cinco machos em uma única rodada. No período fértil, passam virtualmente o dia inteiro transando, com quem aparecer. Não há maneira de dizer quem é o pai.
Outro primo-irmão dos humanos, o bonobo (uma espécie de chimpanzé), extrapola: além da promiscuidade ainda maior, as fêmeas, mesmo fora do período fértil, têm relações sexuais entre si –um ato sugestivamente batizado de “hoka-hoka” pelos africanos. O objetivo é formar alianças entre fêmeas e impedir a dominação dos machos na sociedade. O cola-velcro funciona: os bonobos são a única espécie de grande primata na qual a violência masculina não tem vez.
Nem mesmo algumas espécies monogâmicas de ave, que já foram consideradas exemplo de fidelidade, escaparam ao escrutínio. Testes de DNA mostraram que muitas fêmeas se aproveitavam da ausência dos machos no ninho para copular com outros machos –aumentando assim suas chances de produzir descendentes viáveis.
Lição do dia: os animais não estão nem aí para a virtude. Seu único objetivo é passar seus genes adiante, e para isso utilizam todas as ferramentas e estratégias de que a evolução lhes dotou. Usá-los como modelo para tecer juízos morais sobre comportamentos humanos é uma parvoíce, dessas que só poderiam vir mesmo da direita fundamentalista e cientificamente analfabeta.
Ao fazer isso, incorre-se naquilo que os cientistas chamam de “falácia naturalista”, ou seja, achar que o que é natural é inerentemente bom. Mas a ficha corrida “natural” dos próprios seres humanos também não ajuda muito, como veremos.
Infinito enquanto dure O Homo sapiens é um caso raro entre mamíferos de animal que forma um par estável. Os sociobiólogos e psicólogos evolutivos costumam de fato comparar nossa espécie às aves marinhas (como os pingüins), nesse sentido.
No caso humano, há uma excelente razão evolutiva para que isso aconteça. Ela está ligada ao desenvolvimento do cérebro. Diferentemente de um bebê chimpanzé, o bebê humano tem uma infância ampliada, período necessário para que ele amadureça o cérebro e desenvolva as habilidades cognitivas que ajudam o H. sapiens a manter sua dieta de carnívoro social sem ter garras nem presas. Bebês humanos não conseguem procurar comida sozinhos.
A formação de par, em oposição à promiscuidade dos chimpanzés, está relacionada ao grau de investimento de ambos os pais humanos na criação do filhote. Um chimpanzé macho dificilmente vai perder tempo cuidando de um filhote, portanto, tanto faz se ele é o pai. Pais humanos dedicam uma energia enorme à criação do bebê. Portanto, é bom que eles estejam certos de que o filho é mesmo deles –daí o casal.
E o que as mulheres ganham com isso? Há várias hipóteses, que vão de maior chance de sobrevivência da cria (entre os índios achés, do Paraguai, um estudo de 1995 mostrou que a taxa de mortalidade de crianças em famílias sem pai era 50% maior) até a troca da certeza da paternidade por comida ou proteção de coerção sexual.
A própria constituição física da espécie indica algum grau de monogamia: há pouco dimorfismo sexual, por exemplo. Homens e mulheres medem e pesam praticamente a mesma coisa. Machos de primatas promíscuos têm caninos enormes e são muito maiores que as fêmeas, o que faz sentido quando se precisa disputar acesso a elas com outros machos.
Aliás, fêmeas humanas são “desenhadas” para estar receptivas ao sexo o tempo todo, diferentemente das fêmeas de chimpanzé, que só ficam atraentes no cio. Também se debate a razão, mas uma teoria do antropólogo Richard Wrangham, da Universidade Harvard (EUA), sustenta que o design feminino humano (que inclui seios proeminentes e ovulação sem sinais externos) teria surgido há 1,8 milhão de anos, época em que a espécie teria aprendido a cozinhar e armazenar comida. O sexo seria, portanto, uma espécie de seguro contra roubo: a mulher fica com um homem por perto para proteger seus estoques de alimento de ladrões.
Mesmo assim, tudo indica que algum grau de poliginia (um homem, várias mulheres) seja mais regra do que exceção em sociedades humanas: de 849 estudadas, 83% apresentam poliginia. E homens de status mais alto tendem a ter mais esposas. Isso vale para caçadores-coletores de Botswana. E para os almofadinhas da Academia Militar de West Point, EUA, flagrados por antropólogos cometendo “poliginia serial”, ou seja, casando e se separando.
O comportamento “natural” da espécie humana, no entanto, não deve ser usado como álibi para quem quiser pular a cerca. Fazer isso seria incorrer na mesma falácia naturalista e aliar-se a tipos como Bento 16 e os neoconservadores americanos. Credo.
Claudio Angelo é editor de Ciência da Folha. http://www1.folha.uol.com.br/revista/rf1501200603.htm