Quem está matando os cortadores de cana?Este relato pode ser lido como uma obra de ficção policial, mas é o retrato de uma tragédia de carne e osso que está em curso: cortadores de cana estão morrendo de exaustão nas usinas de São Paulo. Em pleno século 21, no estado mais desenvolvido do Brasil, tombam vítimas do mesmo mal que três séculos atrás matava os seus ancestrais escravizados nos engenhos de cana do Recôncavo Baiano, descritos por Antonil.* É o que relata, em detalhes, o professor Francisco Alves,** da Universidade Federal de São Carlos, na denúncia que serve de base a esta série.
A ocorrência macabra gerou um pedido de CPI na Assembléia Legislativa paulista, por iniciativa da deputada Ana Martins (PCdoB), ela própria, na infância, uma trabalhadora do campo. A base de apoio ao governador Geraldo Alckmin na Assembéia impede a instalação da CPI, como vem fazendo com outras 66 no segundo mandato do pretendente tucano à Presidência da República (clique aqui para ver a série de Rodrigo de Carvalho a respeito).
Timba, 47, morreu de trabalhar, por R$ 38,20Uma morte específica gerou a iniciativa de Ana Martins. Em outubro passado, José Mário Alves Gomes, conhecido como Timba, 47 anos, morreu depois de uma jornada em que cortara 410 metros de cana, ou 25 toneladas, na usina Santa Helena, do Grupo Cosan, em Rio das Pedras, a 155 km da capital paulista.
Timba foi contratado na base de R$ 0,08 (oito centavos) por metro cortado. Ele iria receber, ao fim do dia, exatos R$ 32,80.
Segundo a Pastoral do Migrante, entre as safras 2004/2005 e 2005/2006 (de maio a outubro) morreram dez cortadores de cana na Região Canavieira de São Paulo. Tinham idades entre 24 e 50 anos. Todos eram migrantes, vindos do Norte de Minas, Bahia, Maranhão, Piauí. As causa mortis em seus atestados de óbitos são vagas; apontam morte por parada cardíaca. O pedido de CPI aponta cerca de 20 mortes, só em 2005. E Francisco Alves, que estuda a questão há 20 anos, estima que as mortes contabilizadas "são uma amostra insignificante do total que deve morrer clandestinamente".
O sistema de trabalho na canaO exame das condições de trabalho das vítimas joga mais luz sobre essas causas.
O corte da cana se dá em um retângulo, com 8,5 metros de largura, equivalendo a 5 "ruas" (linhas em que é plantada a cana) e um comprimento que varia conforme a produtividade do trabalhador. Este retângulo é chamado eito; a distância medida ao final do dia indica o ganho diário do trabalhador. Os metros lineares de cana, multiplicados pelo valor da cana pesada na usina, dão o valor da diária a receber.
Estima-se que 6 toneladas de cana (considerando uma cana de primeiro corte, de crescimento ereto) correspondem a um comprimento de 200 metros. O trabalhador, além de cortar a cana contida neste retângulo de, deve cortar também as pontas e transportar
No Centro-Sul o utensílio de trabalho do cortador de cana é o podão, espécie de machete de ponta chata, pesando cerca de meio quilo, que o próprio trabalhador mantém afiado como uma navalha, graças à lima que leva para o eito. A vestimenta precisa cobrí-lo por inteiro, apesar do calor, numa armadura para escapar das folhas de cana que cortam como facas. Inclui botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida com mangote de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu ou boné. Hoje, pode incluir óculos protetores.
No princípio de cada jornada, o supervisor da turma designa o eito do cortador e este e inicia o trabalho: começa a cortar pela linha central, onde será depositada a cana, em seguida corta as duas linhas laterais à central, sem deixar linhas sem cortar ("deixar telefone").
Perda de água em média de 8 litros/diaEm sua rotina de trabalho, o cortador abraça um feixe, de cinco e dez canas, curva-se e corta. Os cortes são bem rente ao chão (uma vantagem do corte manual sobre a colheitadeira), pois é no pé da cana que se concentra a sacarose; mas não podem atingir a raiz para não prejudicar a rebrota. Se a cana estiver "deitada" ou "acamada", exigirá mais cortes. A seguir, o trabalhador corta o "palmito" – a parte de cima das canas, onde estão as folhas verdes, que são jogadas ao solo. Por fim, transporta o feixe para a linha do meio (3ª linha) que dista 3 metros das extremidades do eito. Depois começa tudo de novo.
Um bom cortador de cana é como um corredor fundista: não depende tanto da massa muscular, mas da resistência, em uma atividade repetitiva e exaustiva, a céu aberto, sob o sol, às vezes aguentando fuligem, poeira e fumaça, por um período que varia entre 8 a 12 horas.
O dispêndio de energia do trabalhador, sob o sol, com esta vestimenta, leva a suar abundantemente, perder muita água (em média, 8 litros/dia) e sais minerais. Isso produz desidratação e câibras frequentes. As câibras começam em geral nas mãos e pés, avançam pelas pernas e chegam no tórax, o que provoca fortes dores e convulsões, dando a impressão de que um ataque epiléptico. Para conter as câibras e a desidratação, algumas usinas ministram aos trabalhadores soro fisiológico, e até suplementos energéticos.
Leia amanhã, na parte final deste artigo, como e por que a produtividade do trabalho do cortador de cana, usando o mesmo podão, quadruplicou em duas gerações.
* O livro do padre Antonil, é "Cultura
e opulências do Brasil por suas
drogas e minas" (1711); foi confiscado
pela Coroa portuguesa, que viu
nele a revelação de segredos do
sistema produtivo dos engenhos
** Professor adjunto do Departamento
de Engenharia de Produção da UFSCar
Fonte:
www.pastoraldomigrante.org.br