Várias vezes já aconteceu de eu me perguntar qual seria exatamente o atrativo do que se costuma chamar de forma geral de "lado negro" na religião, na arte e na ficção. Um comentário sobre três personagens de ficção em outra lista de que participo me deu um estalo: será que esse atrativo não estaria na possibilidade de fazer conexão com conteúdos emocionais que se consegue compreender e, quem sabe, partir desse terreno familiar para daí chegar a algum tipo de crescimento ou realização pessoal?
Nesse caso, o apelo da contracultura, dos quadrinhos viscerais ("Comix") de R. Crumb e outros, de personagens agressivos como Wolverine, de religiões "do contra" como a Thelema e o Satanismo, até mesmo de rótulos aparentemente negativos como "doido", "esquizofrênico", "animal" e "transgressor" viria não de uma rejeição à virtude propriamente dita (o que seria estranho, já que por definição rejeitar a virtude é uma atitude autodestrutiva) e sim do alívio de encontrar uma linguagem e um contexto com os quais se possa trabalhar; em outras palavras, é a deficiência da cultura e dos valores mais tradicionais em se fazer entender e aceitar por segmentos da população que cria a necessidade de uma contracultura e de valores alternativos.
Exemplo concreto na ficção (tá, isso é contraditório, mas leiam): por que o Wolverine é tão mais popular do que, por exemplo, o Ciclope dos X-Men (a ponto de ter usurpado o lugar deste no terceiro filme de cinema)? Nunca entendi muito bem, mas suspeito que seja porque para muita gente é mais difícil aceitar e ter simpatia pelo ideal de lucidez e contenção representado por Ciclope do que pela natureza impulsiva e inconsequente simbolizada pelo Wolverine. Wolverine é um personagem que impressiona por suas falhas, que chegam inclusive a ser contraditórias. Mas ele tem a qualidade de aceitar a si próprio sem (usualmente) cair em comportamentos significativos de auto-depreciação. É o tipo de pessoa que você não gostaria de ter por perto se pudesse escolher, mas que não tem como evitar encontrar entre seus amigos e entes queridos a não ser que escolha ter uma vida muito solitária. Isso sem considerar que você próprio pode estar na situação de inadequação e falta de discernimento que tão frequentemente ocorre com esse personagem. É uma situação particularmente provável na turbulenta época da adolescência.
Claro que não é exatamente a coisa mais fácil do mundo aceitar como modelo um ser tão claramente defeituoso como Wolverine, muito menos se inspirar nele. Eu não entendia por que tanta gente tentava e conseguia. Mas se é frustrante ter como referência um tolo violento do qual não se pode falar muito de lisonjeiro, é muito pior tentar encontrar essa referência em um sábio contido e insondável com o qual não se consegue aprender nada. É muito mais construtivo, no fim das contas, ser aceito por um patife do que ser ignorado por um virtuoso que, só para piorar, está fazendo o melhor que pode para nos inspirar. Seria ótimo se estivéssemos todos devidamente instruídos e emocionalmente amparados para entender e tirar bom proveito só dos bons exemplos. Mas a partir de certo ponto, o contraste exagerado prejudica em vez de ajudar. Talvez por isso já na mitologia grega antiga os verdadeiros heróis eram figuras trágicas, mais notáveis pela coragem do que pela nobreza de caráter, e quase sempre predestinados a ser arruinados no final dos seus destinos. Heróis caídos são mais fáceis de amar - e de querer imitar ou entender - do que personagens auto-suficientes que não tem necessidade de nos entender ou mesmo de perceber nossa existência.
Essa não é necessariamente uma constatação deprimente; pelo contrário, penso eu que consolidar uma meta de crescimento pessoal lúcida e realista, que saiba respeitar nossa verdadeira capacidade de nos inspirar e motivar, é um primeiro passo necessário e insubstituível para uma eventual transição para modelos menos conturbados de ideal. A melhor atitude que qualquer um pode ter é aquela que é possível na situação real. Não há mérito algum em estar preparado apenas para decisões que não são as que se apresentam na prática diante de nós.
É nesse ponto, creio eu, que algumas correntes religiosas perderam o rumo, principalmente algumas mais tradicionais em nossa cultura como o Cristianismo e o Islã. Os dilemas de seus adeptos mudaram muito ao longo das últimas décadas, porque a realidade social e cultural também mudou. Mas essas igrejas não souberam ou não quiseram ajustar sua linguagem e metas de uma forma suficientemente ágil e coordenada, e por isso oferecem hoje um remédio que serve para a dor do passado, não para a do presente. Não é nada desprezível o dano que tais iniciativas pouco esclarecidas causam, pois para muita gente não é fácil aceitar que a Igreja que tanto era valorizada por seus pais e avós lhes é inútil ou mesmo prejudicial. O primeiro pensamento que vem é o de que "deve haver algo comigo, afinal serviu para eles". E aí vem uma culpa sem solução e sem sentido, que não pode ser resolvida porque não tem uma causa verdadeira, é apenas um sentimento auto-induzido para tentar restaurar o senso de proximidade e lealdade com a geração anterior.
Claro está, auto-aceitação também pode ser buscada em demasia. Crenças alternativas não são sempre e automaticamente algo que segue o rumo mais construtivo, e de fato é interessante o quanto de auto-depreciação velada está embutido em coisas como a insistência de crenças como o Espiritismo e a Thelema de dizer que "não são religiões". Seria ótimo se a rejeição ao Cristianismo tradicional levasse sempre a algo melhor, mas não é o que acontece; por vezes se pula da frigideira para o fogo. Algumas vezes parece mesmo que o Satanismo no fundo quer é pedir que o Cristianismo cuide melhor de si próprio e se torne mais relevante para seu próprio rebanho, para que não aconteça mais com tanta frequência o tipo de decepção que o tornou possível. Esse não é um caso único; eu diria mesmo que se a complexidade do mundo atual confunde pessoas mais conservadoras e faz com que elas tenham aversão a esses novos e desconhecidos (quem sabe perigosos) caminhos, muito pior é para os que de fato participam dessas novas alternativas; esses sabem que não estão felizes no caminho tradicional, mas ao mesmo tempo não tem garantia alguma de que serão mais felizes se aventurando por coisas novas. O preço do pioneirismo é alto.
Queria a ajuda de vocês. A leitura que estou fazendo sobre o apelo dos valores menos tradicionais faz sentido para vocês? Em que vocês discordam?