Autor Tópico: Santa Ilusão  (Lida 687 vezes)

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Offline Res Cogitans

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Santa Ilusão
« Online: 11 de Janeiro de 2007, 18:32:24 »
Santa ilusão

Hélio Schwartsman

Ao contrário de 97,3% do mundo --incluindo vários ateus--, achei delicioso o último libelo do biólogo britânico Richard Dawkins contra Deus. Falo do livro "The God Delusion" (a ilusão ou o delírio de Deus; a obra ainda não foi traduzida para o português), que recebeu críticas acerbas mesmo de racionalistas militantes, como Marcelo Gleiser no caderno Mais!.

É fácil entender a revolta principalmente de religiosos com o texto de Dawkins. Os qualificativos que ele encontrou para aplicar a Altíssimo incluem: "misógino", "homófobo", "racista", "infanticida", "genocida", "filicida", "pestilento", "megalomaníaco", "sado-masoquista" e "valentão caprichosamente malévolo". O autor de fato não se vale de meias palavras para defender sua tese de que a religião é um grande engodo, um mal que deveria ser extirpado da face da terra. Só que Dawkins não se limita a afirmar essas coisas. Ele também pretende provar, com argumentos, que Deus é uma hipótese altamente improvável e totalmente desnecessária.

Há momentos em que se sai muito bem, outros, menos. Dawkins é por exemplo magistral ao demolir a tese do "design inteligente" (ID), segundo a qual determinadas características dos seres vivos são complexas demais para ser explicadas "apenas" pela seleção natural, exigindo uma espécie de deus-projetista. Ele demonstra, por A + B, que a teoria darwiniana é plenamente satisfatória e que o ID é muito mais uma combinação de religiosidade com preguiça intelectual do que uma objeção científica séria.

Menos convincentes são suas refutações a argumentos teológicos, como as cinco "provas" de santo Tomás de Aquino e a ontológica, de santo Anselmo. Aqui, o autor ignora séculos e séculos de sutis discussões dos doutores da igreja. Desconfio de que o fez de propósito, muito provavelmente por considerar que tudo não passa de verborragia vazia. Como ateu exemplar, também acho que essas "provas" não vão muito além da retórica, mas sou capaz de apreciar a beleza com que tais jogos de linguagem foram forjados. Não é porque não acredito em Deus que não admiro os oratórios de Händel, os afrescos da Capela Sistina ou a arquitetura da catedral de Notre-Dame.

Outro ponto que parece ter despertado a fúria dos críticos é o fato de Dawkins colocar no mesmo saco sutilezas metafísicas e argumentos divinamente tolos, como: "Ele (Deus) o ama tanto, como você pode rejeitá-Lo?". Entendo, porém, as razões que levaram o autor a proceder desta forma. Ele reuniu sem selecionar muito todos os raciocínios que já ouviu em seus longos anos de militância atéia e procurou rejeitá-los "en bloc". É por isso que se perde nessa e em outras questões bizarras que com alguma filtragem não valeriam a tinta em que são impressas, como tentar determinar se Hitler e Stálin eram de fato ateus e se isso em algum grau contribuiu para seus crimes.

O livro melhora bastante quando Dawkins volta a seu campo de atividade biológico e sugere explicações para a universalidade da religião entre humanos. Sua hipótese é a de que a fé em deuses/Deus é uma espécie de efeito colateral adverso de mecanismos cerebrais adaptativos. Teríamos uma propensão à credulidade cujo valor pode estar em fazer com que crianças obedeçam a seus pais sem levar em conta se o que eles dizem faz ou não sentido. Essa confiança incondicional pouparia os jovens rebentos de atirar-se em rios infestados de crocodilos, caminhar na encosta de precipícios e evitar outras ameaças que poderiam custar-lhes a vida caso insistissem em aprender por conta própria.

Outro ponto alto é quando ele relata experimentos psicológicos, notadamente os de Marc Hauser, que sugerem que o imperativo categórico kantiano está inscrito dentro de nós. Padrões de moralidade semelhantes aos descritos pelo filósofo prussiano --notadamente a idéia de que não devemos usar outros seres humanos apenas como meio para atingir objetivos-- fariam parte de nossa programação cerebral. Se isso é verdade, e tudo indica que é, cai por terra o argumento utilitarista de que a religião é a fonte da moralidade e é importante para manter a paz social. As pessoas não deixam de cometer crimes por temer ir para o inferno, mas porque têm um impulso biológico para acatar normas que julgam justas, em que pese a existência de certos indivíduos que sempre tenderão a burlar as regras.

A mais feroz das críticas a Dawkins, porém, não é de conteúdo ou argumentação. Censuram-lhe o próprio projeto do livro, que é o de convencer o maior número de pessoas a abraçar o ateísmo e os já ateus a "sair do armário". Viram aí uma "intolerância" em tudo igual à das religiões.

Talvez, mas acho que os críticos perdem de vista o profundo senso de humor com que "The God Delusion" foi escrito. O livro todo é uma grande provocação, mas uma provocação "à propos". Por que os textos usados nas escolas dominicais podem ter caráter doutrinário e uma defesa do ateísmo não? Por que, pergunta-se o autor, devemos aceitar a convenção social segundo as quais idéias religiosas devem ser respeitadas? Uma idéia idiota é sempre uma idéia idiota, não importando o campo semântico em que seja proferida. Por que podemos afirmar sem nenhum problema que determinada tese científica, econômica, ou jurídica é imbecil, mas, se ousamos dizer o mesmo em relação a uma "verdade religiosa", somos tachados de intolerantes e quem sabe até processados?

Se alguém nos dissesse acreditar que brotou de uma árvore e que sempre que segura sua caneta ela se transforma num coelho voador, teríamos boas razões para duvidar da sanidade desta pessoa. Por que então não tratamos como louco o católico que afirma que Jesus nasceu sem pai biológico, de uma mãe virgem e que, toda vez que se celebra uma missa, o vinho se torna sangue e um tipo esquisito de biscoito se converte no corpo do homem?

Para colocar questões mais republicanas, por que um ministro religioso, apenas por ser religioso, fica livre do serviço militar, enquanto pessoas que apenas deplorem a violência correm o risco de ter de servir ao Exército? Por que igrejas não pagam impostos e eu, que também tenho um sistema de crenças e uma ética (na minha opinião muito melhores), não faço jus à mesma regalia?

O fato de eu compreender os propósitos políticos de Dawkins não significa que eu concorde inteiramente com eles. Acho que seu projeto é inexeqüível por razões que ele próprio aponta: a religião é um universal humano. Talvez em fins do século 19, para um observador incorrigivelmente otimista, tenha sido possível acreditar que a ciência sepultaria as crendices. Os mais de cem anos que se seguiram, entretanto, indicam o contrário. As religiões seguem firmes, fortes, separando as pessoas e provocando incompreensões e guerras. Oferecem, também, é preciso dizê-lo, conforto psicológico aos que nelas acreditam. Por índole e seguindo minha programação kantiana, acho que devemos deixar a cada um o direito de escolher o que deseja ser. Podemos e devemos mostrar nossos argumentos contrários a um Deus sobrenatural, mas sem jamais transpor a linha que separa a exposição da imposição. Não creio, entretanto, que Dawkins a tenha atravessado. Ao contrário de igrejas, ele jamais ameaçou mandar os crentes para a fogueira ou explodi-los.


Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
 
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Offline FxF

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Re: Santa Ilusão
« Resposta #1 Online: 11 de Janeiro de 2007, 19:48:46 »
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também acho que essas "provas" não vão muito além da retórica, mas sou capaz de apreciar a beleza com que tais jogos de linguagem foram forjados
Ele fala corretamente.
Eu já li as cinco provas, e já ouvi que é o uso da ciência e religião, quando vou resumir como são as provas:
tudo precisa de um início, e o início é Deus - são meros "é Deus" jogado em mistérios ou paradoxos da ciência.
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Outro ponto alto é quando ele relata experimentos psicológicos, notadamente os de Marc Hauser, que sugerem que o imperativo categórico kantiano está inscrito dentro de nós. Padrões de moralidade semelhantes aos descritos pelo filósofo prussiano --notadamente a idéia de que não devemos usar outros seres humanos apenas como meio para atingir objetivos-- fariam parte de nossa programação cerebral. Se isso é verdade, e tudo indica que é, cai por terra o argumento utilitarista de que a religião é a fonte da moralidade e é importante para manter a paz social. As pessoas não deixam de cometer crimes por temer ir para o inferno, mas porque têm um impulso biológico para acatar normas que julgam justas, em que pese a existência de certos indivíduos que sempre tenderão a burlar as regras.
O ser humano vive em sociedade instintivamente.

Offline PauloCesar

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Re: Santa Ilusão
« Resposta #2 Online: 11 de Janeiro de 2007, 21:00:26 »
Achei a análise bastante interessante. Mas o que mais me chamou a atenção foram os seguintes trechos:
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A mais feroz das críticas a Dawkins, porém, não é de conteúdo ou argumentação. Censuram-lhe o próprio projeto do livro, que é o de convencer o maior número de pessoas a abraçar o ateísmo e os já ateus a "sair do armário". Viram aí uma "intolerância" em tudo igual à das religiões.

Talvez, mas acho que os críticos perdem de vista o profundo senso de humor com que "The God Delusion" foi escrito. O livro todo é uma grande provocação, mas uma provocação "à propos". Por que os textos usados nas escolas dominicais podem ter caráter doutrinário e uma defesa do ateísmo não? Por que, pergunta-se o autor, devemos aceitar a convenção social segundo as quais idéias religiosas devem ser respeitadas? Uma idéia idiota é sempre uma idéia idiota, não importando o campo semântico em que seja proferida. Por que podemos afirmar sem nenhum problema que determinada tese científica, econômica, ou jurídica é imbecil, mas, se ousamos dizer o mesmo em relação a uma "verdade religiosa", somos tachados de intolerantes e quem sabe até processados?

Para colocar questões mais republicanas, por que um ministro religioso, apenas por ser religioso, fica livre do serviço militar, enquanto pessoas que apenas deplorem a violência correm o risco de ter de servir ao Exército? Por que igrejas não pagam impostos e eu, que também tenho um sistema de crenças e uma ética (na minha opinião muito melhores), não faço jus à mesma regalia?
Depois de ler isso, me veio à mente o tópico das Patricinhas Nazistas. É realmente curioso como mensagens de ódio e de discriminação são toleradas como 'liberdade de expressão' enquanto que a simples declaração da condição de ateu causa esse tipo de reação:
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O homem que possui a audácia de confessar que não acredita num Deus demonstra uma negligência de caráter moral e completa ausência de responsabilidade moral, assim ele nem mesmo deve ser ouvido ou acreditado numa corte de justiça de um país designado como cristão.
Corte Suprema do Tenessee (1871)
Há algo de errado no mundo... mas não dá pra saber exatamente o quê. Seria a Matrix??
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Offline FxF

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Re: Santa Ilusão
« Resposta #3 Online: 11 de Janeiro de 2007, 21:24:32 »
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Para colocar questões mais republicanas, por que um ministro religioso, apenas por ser religioso, fica livre do serviço militar, enquanto pessoas que apenas deplorem a violência correm o risco de ter de servir ao Exército? Por que igrejas não pagam impostos e eu, que também tenho um sistema de crenças e uma ética (na minha opinião muito melhores), não faço jus à mesma regalia?
Mas até que essa questão é simples.
Poder.
O mesmo ocorre com políticos, o Brasil é um bom exemplo onde eles tem esse benefício.
O que é poder político senão controle sobre mais pessoas?
E a religião é um meio perfeito para isso. Aliás, nesse caso haverá aqueles que terão fé até o fim dos tempos em você.
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Seria a Matrix??
Sim, as pessoas visão em um mundo de ilusão. Mas voluntariamente, seja por necessidade pela desgraça da vida ou até por lavagem cerebral.

 

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