Taí uma coisa que eu nunca entendi. Mesmo quando, há muito tempo, numa galáxia muito distante, eu ainda era religioso, eu tinha um pouco de dificuldade para diferenciar "mente" e "alma". Tudo bem, fui instruído que, ao contrário da mente, a alma sobrevive à morte e é eterna. A mente também pode ser compreendida em termos de processos químicos acontecendo em nosso cérebro, enquanto que a alma nada teria a ver com física, química ou biologia, uma é um processo mecânico, mensurável, observável; a outra é uma coisa misteriosa, invisível, incompreensível… infalseável.
Certo, mas embora tenham conseguido me apontar duas diferenças fundamentais entre mente e alma aparentemente em todo o mais elas são a mesma coisa - a alma, pelo menos segundo os espíritas, tem memória, sentimentos, traumas, desejos, raciocínio, todos atributos da mente. A alma não passa então de uma mente sem cérebro, pairando no vazio, funcionando por meio de forças mágicas inescrutáveis - algo como uma música no vácuo, uma música que não é produzida por fonte alguma, não tem um meio de propagação e que mesmo assim pode ser escutada - o que obviamente fere, ou deveria ferir, a razão de qualquer pessoa com alguma educação científica, mas isso não vem ao caso.
O que vem ao caso é o uso constante que se faz do termo espiritualidade, mesmo entre ateus. Estava lendo
esta resenha do livro The God Delusion, de Richard Dawkins, escrita provavelmente por um ateu. Embora seja interessante, não precisam se dar ao trabalho de lê-la pois o trecho que interessa é somente o seguinte:
"Lack of religion does not necessarily mean lack of spirituality, does not mean my life lacks meaning or value. Just because my morals or meaning do not depend on God for validation does not mean I have no morals, nor that my morals are invalid, nor that my existence is meaningless."O que é essa tal de espiritualidade de que tanto se fala? Aquela espiritualidade do "Spiritual, but not religious" do Orkut? Se o espírito é igual em quase tudo à mente (e aquelas duas diferenças que citei não parecem ser caber aqui) do que se fala, quando se diz que alguém tem espiritualidade? Que ele tem mente? Que ele pensa? Se é assim é impossível se encontrar um ser humano normal que não tenha espiritualidade. Claro que uma abordagem literal do significado de uma palavra raramente trás significados satisfatórios, as palavras evoluem e seu conteúdo não pode ser todo contido em radical e alguns afixos.
Poderíamos então tentar encontrar uma definição nas próprias palavras citadas acima. Com uma lida podemos supor que para um ateu espiritualidade poderia significar ter uma vida com significado e valor. Nesse sentido eu mesmo poderia me considerar uma pessoa espiritualizada. Mas uma vez que para mim o espírito não passa de um absurdo em termos, um completo nonsense, me parece altamente contraditório, pelo menos simbolicamente, expressar que minha vida tem significado e valor através de um termo que para mim não tem significado e valor algum.
A outra possibilidade seria relacionar espiritualidade com moral. Eu acredito que a moral já está muito bem representada pelo substantivo moralidade. Direto, preciso, e sem recorrer a palavras que descrevem coisas ilógicas e sem sentido.
Não bastassem esses impedimentos estéticos em eu, como ateu, usar a palavra espiritualidade, há ainda um motivo de ordem prática e bem mundana até: se eu disser para um teísta que sou espiritual e ele me pergunta como assim um ateu pode ser espiritual eu vou responder o quê? Posso presumir que o religioso tem seu conceito de espiritual e que pare ele isso tem algum significado. A não ser que eu seja entusiasta da brincadeira de discutir semântica - coisa que eu definitivamente não sou, devo dar à palavra espiritual um definição que ele conheça, que ele aceite, e para uma pessoa religiosa e fácil presumir que o principal elemento que faz de uma pessoa espiritualizada é ter fé. O que poderia ter mais a ver com a espiritualidade do que a fé, se o próprio conceito de espírito reside na aceitação através da fé, e não da razão? Desculpem o trocadilho, mas retirar a fé da definição da espiritualidade não é como tirar a alma da palavra?
Chegando nesse ponto é que encontramos, na minha opinião, o maior problema no ateu se dizer espiritualizado, indiretamente e sem querer ele vai acabar dizendo que tem fé. Será um mal entendido, é claro, ele logo vai se explicar que quis dizer que quis dizer outra coisa e vai explicar o que quer que para ele significa espiritualidade. Mas essa não é uma intromissão mesquinha nossa de certa forma? O que é que essa palavra tem de tão bonito para querermos usá-la afina? Soa bem, é verdade, mas essa palavra é deles, é dos teístas, deixa ela lá. Não temos nada que ficar redefenindo palavras a nosso próprio gosto e usá-las por aí querendo ser entendidos. Ainda mais se não temos vergonha de nosso ateísmo, se não temos nada a esconder, se não procuramos um eufemismo atrás do qual póssamos nos esconder. Sendo assim, sugiro usarmos uma palavra que tem muito mais a ver com quem somos e no que acreditamos, uma palavra que a mim me parece o exato oposto da palavra espiritualidade, uma palavra muito mais bonita, com valor e significado. Essa palavra vocês já conhecem, só deviam usá-la com mais orgulho. A palavra é
racionalidade.
EDIT: Link concertado