(Colegas foristas, como o debate sobre política sempre é intenso aqui, mas sempre centrado apenas argumentos e não em experiências pessoais, gostaria de relatar minha própria experiência para ilustrar como o cotidiano pode ser mais útil do que as idéias. O moderador esteja à vontade para colocar este texto em outra seção se necessário).
Numa quente tarde de sábado, eu deixei minha tranqüila cidade na Grande São Paulo para me unir à uma grande multidão de desconhecidos, muitos deles ansiosos para expressar sua fúria. Era fevereiro de 2003, os Estados Unidos se preparavam para invadir o Iraque. E milhões de pessoas queriam ver Bush no inferno.
Aquela foi a primeira vez em que participei de um protesto. Sempre fui um sujeito sossegado, caseiro, avesso à grandes aglomerações. Por ironia do destino, naquele dia saí da minha condição natural de sossego direto para o maior protesto da história. Gritei, marchei, xinguei. Aplaudi quando lançaram tinta vermelha na Embaixada.
Mas a minha solidariedade para com os iraquianos era menor do que minha raiva. Eu tinha muita raiva, até a paz eu defendia com hostilidade. Foi assim durante toda a minha militância política. Raiva do capitalismo, raiva do governo brasileiro, raiva do “império americano”, raiva da “esquerda reformista”, raiva dos "porcos capitalistas", raiva da "mídia corporativa". Vivia em constante estado de tensão com o resto do mundo.
Não passei por fases intermediárias. Já comecei na extrema esquerda. Fui militante do coletivo Resistência Popular, uma união de pessoas que acreditavam num mundo sem hierarquias, sem governos, sem Estado, mas socialista. Perdi sábados inteiros em discussões intermináveis do Fórum do Anarquismo Organizado (FAO). Sim, fui um anarquista radical, crente na revolução global dos povos, no fim dos governos, na morte das bandeiras.
Tudo o que me cheirava autoridade era alvo do meu “ceticismo” radical. Eu questionei muito a religião dos meus pais, ao ponto de ouvir de um amigo “porra-louca” que estava exagerando. Mesmo assim, não cedi, quis ensinar a meus pais que sua visão de mundo era baseada em dogmas, em idéias absurdas, que precisavam de fé para acreditar naquilo tudo, pois não havia nenhuma prova racional da existência de Deus e outras coisas.
Ceticismo seletivo
Mas comecei a enxergar contradições gritantes entre meu discurso e meus atos. Convivi muito tempo com tais contradições, mas chegou um momento em que elas exigiam uma auto-justificativa da minha parte. Percebi que tinha duas opções: ou me tornava um cínico, passando por cima delas, ou as examinava racionalmente buscando uma solução.
A primeira contradição era a mais simples, porém, insolúvel. Meu ceticismo era seletivo. Eu criticava os dogmas alheios, mas mantinha os meus num pedestal. O problema é que, apesar de ter entendido isso, não podia fazer nada. Eu acreditava que as pessoas poderiam viver sem governo. Eu acreditava que chegaria o dia em que todos seriam absolutamente iguais. Sem tais crenças, não poderia ser um anarquista. Mas começava a ter dúvidas.
Outras crenças que considerava mais sólidas começaram a ruir diante dos meus olhos. A idéia central do anarquismo, que era possível viver de forma organizada contando apenas com a solidariedade voluntária, foi refutada pela própria realidade do coletivo político no qual militava. Depois, meus próprios atos refutaram minhas crenças.
Nós faziamos plenárias aos sábados, num espaço chamado Buenaventura Durruti, onde trocávamos informações sobre a atuação de cada um em suas diferentes “frentes”. Certa vez, um advogado que militava com movimentos sociais disse que não poderia mais freqüentar as plenárias porque começaria a fazer aulas de violão aos sábados.
Ele foi tratado como um egoísta, materialista, um mero idiota que queria trocar as tarefas revolucionárias por aula de violão. Porém, eu entendi o que estava em jogo. O sujeito trabalhava, militava, queria uma parte da sua vida só pra ele. Isso se chama individualidade, não egoísmo. Contudo, os que se diziam libertários lhe negaram tal direito. Você tem que pensar no coletivo, disse alguém. Primeiro, vem o interesse coletivo, depois o seu.
De repente, aqueles militantes que eu tanto admirava pareciam religiosos prontos a censurar os outros pelo pecado de querer uma vida própria, de ir atrás dos seus desejos. Enxerguei naqueles libertários verdadeiros moralistas. Entendi que toda a ideologia que precisa mobilizar as pessoas em prol de uma idéia de rendenção, precisa funcionar assim: acabando com a idéia de indivíduo. Era preciso convencer as pessoas que elas eram parte de algo maior, o coletivo, e que elas deveriam se sacrificar em nome dele. Fiquei cada vez mais enojado.
Eram muitas as semelhanças entre ideologia e religião. Quando topava com alguém que não comprava minhas idéias, imaginava que só havia duas opções: ou a pessoa não me entendeu ou era reacionária. Não havia meio-termo. Aliás, pra mim a vida era bem simples: ou você era um explorado, ou um explorador; se você não queria outro mundo, era conformado; se você não estava contra o capitalismo, era um alienado. O problema é que as minha crenças, meus dogmas, começaram a perder contato com a realidade. Não podia mais fingir o contrário.
A crença fundamental de que as pessoas são capazes de resolver seus próprios problemas, sem ter de apelar à uma autoridade constituída, era um destes dogmas. Ele se desmanchou quando cinco sujeitos, todos trabalhadores de construção, alugaram a casa vizinha à minha. Desde o começo, foram incômodos. Colocavam o som de seus carros nas alturas, não respeitavam horários, não tinham nem um pouco do chamado “semancol”.
Nos primeiros dias, meu pai foi um verdadeiro diplomata, conversou, pediu, explicou que as pessoas costumam dormir à noite. Não adiantou. Mas meus pais não queriam confusão, e sofremos em silêncio durante meses aquela tortura sonora. E eu ainda acreditava que eles recobrariam a consciência se pudessem entender que somos todos trabalhadores, da mesma classe social. Essa minha esperança ingênua caiu por terra no dia em que ligaram o som de todos os carros no último volume, só pra aborrecer mesmo. Queriam confusão, estavam implorando por isso.
Naquele dia, só eu e minha avó de 70 anos estavámos na casa. O diálogo estava fora de questão. Chamei a Polícia. Foi uma confusão mesmo. Piorou nos dias seguintes e só teve um fim quando descobrimos a empresa para qual trabalhavam, ameaçamos um processo. Deixaram a casa. Fiquei aliviado, mas não podia ignorar o detalhe.
Eu, o libertário da família, o defensor do anarquismo, o cara que ia contra todas as autoridades, pois bem, foi justamente eu quem chamou a Polícia. A partir daí, minha visão sobre a natureza humana deixou de refletir o mundo romântico da minha ideologia e passou a refletir a realidade dos defeitos, falhas de caráter, limitações e imperfeição que marcam todos os seres humanos. Não se pode confiar no bom senso alheio, pensei, é preciso haver alguém para arbitrar os conflitos. Não era mais anarquista, até tentava, mas não conseguia mais ser.
Percebi ainda que muitos amigos meus que sempre bradavam contra o capitalismo, não eram revolucionários coisa nenhuma. Eram apenas uns preguiçosos, sem projeto de vida. Alguns estavam há décadas no movimento estudantil, outros eram uma caricatura ambulante como um punk que conheci. O sujeito vivia defendendo a liberdade, mas não fazia uso dela: viveu sempre do mesmo jeito, no mesmo lugar, fazendo as mesmas coisas.
Quando fazia palestras em escolas (contra a Alca, por exemplo) sentia que as pessoas não se interessavam. Nós recorríamos aos textos sagrados que garantiam que elas eram apenas pobres vítimas da manipulação. Demorei para entender que as pessoas queriam apenas viver suas vidas, sem qualquer intenção viver sob um igualitarismo radical. Se fosse oferecida a elas, de um lado, a possibilidade remota de ascenção social e, do outro, uma sociedade igualitária, elas escolheriam a primeira. É óbvio, mas minha leitura binária da vida me impedia de ver isso.
As pessoas não eram alienadas, eram simplesmente auto-interessadas e, por isso, trabalhavam tanto. Depois de muito tempo, percebi que sem incentivo elas não teriam motivo para levantar da cama às 06h00.Compreendi que o capitalismo é o sistema mais adequado para canalizar todo o nosso egoísmo. É melhor lidar com as pessoas como elas são de fato, do que imaginar um sistema utópico na esperança de que elas mudem. Mais do que isso, entendi que para que meu anarquismo fosse realidade, seria preciso exigir das pessoas um alto padrão moral, elas teriam de ser altruístas, pacíficas, generosas, enfim, teriam de virar seres angelicais.
A Via Dolorosa
Porém, não era apenas uma questão de mudar a postura política. Quando você é um esquerdista utópico, todos os elemntos da sua vida estão ligados às suas crenças e valores, afinal, sua ideologia lhe oferece uma cosmovisão que abrange tudo e todos.
As pessoas que eu conhecia, as bandas que eu curtia, os livros que eu lia, os critérios que eu usava para qualificar algo como bom ou ruim, tudo isso estava conectado à minha leitura binária da vida. Acreditava, por exemplo, que um artista com acesso à mídia que não expressasse preocupações sociais era um “idiota reacionário”.
Sempre exigia as credencias políticas de alguém que acabava de conhecer. Em outras palavras, era uma criatura extremamente sectária. Não preciso dizer o quanto foi difícil me livrar das minhas crenças, era como se estivesse abandonando alguém, deixando minha casa, me enterrando vivo. Passei por uma fase de nilismo, enfrentei um pouco de depressão como alguém que sobreviveu à um desastre, mas perdeu todo o resto.
Isso é muito subestimado por quem tenta desconverter um radical. Não é fácil convencer alguém que fez do radicalismo um estilo de vida. O debate racional não basta. É preciso que a pessoa enfrente suas contradições, seus dogmas, abandone a utopia como único modo de vida. Não basta argumentos, precisa ter coragem.
De 2003 à meados de 2009, fui um militante revolucionário que lutava contra o mundo atual, queria transformar o mundo, exigia do mundo um alto padrão moral, que buscava outro mundo possível, que vivia em constante tensão com este mundo. Hoje, só quero que, na medida do possível, o mundo me deixe em paz. Não é um nilismo. É que, pela primeira vez em quase uma década, sinto que tenho uma vida para além da política. Tenho planos para o futuro que não envolvem o “coletivo”. Isso se chama individualismo. E é muito bom.