Hanão, dito o Navegador (Hanno ou Hannon, Cartago, c. 500 a.C. —?440 a.C.) foi um almirante cartaginês que empreendeu na primeira metade do século V a.C. uma viagem de colonização e exploração pela costa atlântica da África, atingindo, pelo menos, a zona equatorial africana. Para além da notícia de um vulcão em actividade (provavelmente o Monte Camarões), deve-se a Hanão a primeira descrição nas culturas mediterrânicas, depois adoptada pela greco-latina, do gorila e das selvas tropicais.
Em data indeterminada da primeira metade do século VI a. C. (apontam-se datas que vão de 560 a 425 a.C.), quando Cartago estava no seu apogeu, foram organizadas expedições destinadas a conhecer e colonizar as costas atlânticas. Foram encarregues dessas tarefas Hanão, que deveria explorar as costas africanas para sul do Estreito de Gibraltar, e Himilco, que deveria explorar as costas europeias para norte daquele estreito. Seriam irmãos, embora tal possa ser em sentido não literal.
De Hímilco pouco se sabe, mas Hanão deixou um relato da sua viagem, conhecido, desde a antiguidade clássica, pelo Périplo de Hanão, gravado numa estela votiva (um ex-voto) no templo de Ba’al Hammon, em Cartago. Ba’al Hammon (ou Baal) era a principal divindade cartaginesa (nas traduções do Periplus aparece referido, por aculturação, como Cronos, deus da mitologia greco-romana).
(...)
Texto do Periplus Hannonis
O texto integral da versão conhecida do Périplo de Hanão, traduzido a partir da versão inglesa, é o seguinte (o nome dos lugares foi deixado na grafia greco-latina ou inglesa):
1. Os cartagineses ordenaram a Hanão que empreendesse uma viagem para além dos Pilares de Hércules e fundasse algumas cidades púnicas. De acordo com as ordens, ele navegou com 60 navios de 50 remos cada, transportando trinta mil homens e mulheres, com as provisões e outros equipamentos necessários.
2. Depois de, na nossa viagem, atravessarmos os Pilares de Hércules, e navegarmos durante dois dias para lá deles, fundámos a primeira cidade, a que chamámos Thymiaterion. Abaixo dela existe uma extensa planície.
3. Navegando de lá na direcção do oeste, chegámos a Soloeis, um promontório africano, que está coberto por árvores.
4. Aqui dedicámos um templo a Poseidon. Navegando para leste durante meio dia, chegámos a uma lagoa. Não era longe do mar e estava coberta com abundantes juncos longos, que elefantes e outros animais selvagens estavam comendo.
5. Depois de deixarmos a lagoa, navegámos por um dia. À beira-mar fundámos cidades, chamadas Karikon Teichos, Gytte, Akra, Melitta e Arambys.
6. Continuando a nossa viagem a partir daí, atingimos o Lixos, um grande rio que corre da África. Os lixitas, uma tribo nómada, estavam a pastorear o seu gado junto a ele. Permanecemos com eles por algum tempo e tornámo-nos amigos.
7. Para além do território deles, povos negros hostis ocupam uma terra plena de animais selvagens. Está rodeada pelas grandes montanhas de onde corre o Lixos. De acordo com os lixitas, povos estranhos habitam entre essas montanhas: homens das cavernas que correm mais rápido que cavalos.
8. Quando conseguimos que intérpretes lixitas nos acompanhassem, navegámos para sul, ao longo da costa desértica, durante dois dias. Depois de navegarmos para leste por um dia, encontrámos, no recesso de uma baía, uma pequena ilha, cuja circunferência era de cinco estádios. Deixámos aí colonos e chamámo-lhe Kerne. Pela duração da viagem, calculámos que esta ilha fique na posição oposta de Cartago, pois o tempo de navegação de Cartago até aos Pilares de Hércules, e de lá até Kerne, era o mesmo.
9. Navegando daí, atravessámos um rio chamado Chretes e atingimos uma baía que continha três ilhas maiores do que a de Kerne. Depois de um dia de navegação a partir dali, chegámos ao fim da baía, que era dominado por grandes montanhas, cheias de selvagens vestidos com peles de animais. Atirando pedras, eles impediram que desembarcássemos, e fizeram-nos afastar.
10. Partindo dali, chegámos a outro grande rio, muito largo, cheio de crocodilos e hipopótamos. Regressando daí, voltámos para Kerne.
11. A partir dali, navegámos para sul durante doze dias. Mantivemo-nos próximo da costa, inteiramente habitada por negros, que fugiam de nós quando nos aproximávamos. A sua língua era incompreensível, mesmo para os nossos lixitas.
12. No último dia ancorámos junto a umas altas montanhas. Elas estavam cobertas por árvores cuja madeira era aromática e colorida.
13. Navegando em torno das montanhas durante dois dias, chegámos a uma imensa baía, para além da qual, do lado de terra, estava uma planície. Durante a noite observámos grandes e pequenos fogos, dispersos por toda a parte, flamejando de tempo em tempo.
14. Tomando aí aguada, continuámos viagem durante cinco dias ao longo da costa, até que chegámos a uma grande baía, que de acordo com os nossos intérpretes era o Corno do Ocidente. Nela havia uma grande ilha, na qual existia uma lagoa, salgada como o mar, e nela outra ilha. Aqui desembarcámos. De dia não conseguimos ver nada a não ser floresta, mas durante a noite vimos muitos fogos acenderem-se, e ouvimos o som de flautas, o bater de címbalos e tambores e os gritos de uma multidão. Tivemos medo e os nossos adivinhos aconselharam que deixássemos a ilha.
15. Navegámos rapidamente para fora dali, passando ao longo de uma costa ardente cheia de incenso. Grandes torrentes de fogo vazavam no mar, e a terra era inacessível devido ao calor.
16. Rapidamente e com temor, navegámos para longe daquele lugar. Navegando durante quatro dias, vimos, à noite, a costa cheia de fogo. No meio havia uma grande chama, mais alta do que as outras, parecendo subir até às estrelas. De dia, verificámos que era uma grande montanha, a qual era chamada Carro dos Deuses.
17. Navegando dali ao longo das torrentes de fogo, ao fim de três dias chegámos a uma baía chamada Corno do Sul.
18. Neste golfo havia uma ilha, parecida com a primeira, com uma lagoa, no interior da qual havia outra ilha, cheia de selvagens. A maioria eram mulheres com o corpo coberto de pelos, a que os nossos intérpretes chamavam gorilas. Apesar de os termos perseguido, não pudemos apanhar nenhum macho: todos escaparam por serem grandes trepadores que se defendiam atirando pedras. Contudo, capturámos três mulheres, que se recusaram a seguir os que as tinham apanhado, mordendo-os e arranhando-os com as garras. Por isso, matámo-las e tirámo-lhes as peles, que trouxemos para Cartago. Não navegámos mais, pois as nossas provisões começavam a escassear.